O bolsonarismo segue apostando suas fichas na batalha de narrativas para turvar o debate público e tentar faturar politicamente. A tática deu muito certo na última eleição, quando as mamadeiras de piroca circulavam em grande escala pelo WhatsApp. Mas agora, diante de uma conjunção de crises — sanitária, política e econômica—, essa estratégia parece estar perdendo força.
Quando uma narrativa proposta pelo gabinete do ódio perde a batalha, uma outra fresquinha já está no ponto para substituí-la. O cientista de dados Fabio Malini, especialista em comunicação política nas redes sociais, identificou esse padrão nas redes bolsonaristas. No ano passado, as milícias virtuais da extrema direita investiram pesado em propaganda antivacina, mas foram soterradas pela realidade dos fatos e tiveram que mudar de narrativa. Enquanto Bolsonaro boicotava as vacinas, seu adversário político João Doria corria atrás delas.
O presidente havia prometido que não compraria a Coronavac e chegou a provocar o governador paulista por querer o que ele chama de “vacina chinesa” — alimentando a paranoia anti-China. A derrota nessa batalha foi acachapante: hoje 84% dos brasileiros querem se vacinar. E, vejam só que beleza, até a mãe de Bolsonaro e o seu vice-presidente foram vacinados com a “vacina chinesa”.
Perdida essa batalha, as redes bolsonaristas passaram então a ser alimentadas por uma nova narrativa negacionista, dessa vez direcionada contra o lockdown.
Em março de 2021, tendo que engolir à seco o sucesso da coronavac, Bolsonaro mudou a rota. Abraçou para estrangular o termo lockdown, rotulando-o como medidas contra o trabalhador.
O lockdown passou a ser o centro da retórica negacionista de Bolsonaro. E anima seus apoiadores. pic.twitter.com/bqOGAK5sgM
— Fabio Malini (@fabiomalini) March 31, 2021
Assim como as vacinas, o lockdown é consenso entre cientistas como saída para diminuir a circulação do vírus. O presidente sabe disso, mas segue apostando no negacionismo como arma política. Mesmo não havendo lockdown de verdade em quase nenhum lugar do país, Bolsonaro trata como se houvesse. As medidas de isolamento adotadas pela maioria dos governadores e prefeitos estão aquém do recomendado por especialistas.
Mas a narrativa contra a medida serve para jogar a população contra governadores e pintar Bolsonaro como um aliado do povo que quer trabalhar. No início de março, o presidente publicou os valores dos repasses aos estados, o que levou as redes bolsonaristas a investirem na ideia de que os governadores sumiram com a grana que o presidente teria enviado para combater a pandemia. É mentira. Os repasses são uma obrigação constitucional e apenas uma pequena parte deles é destinada à saúde.
Malini deu a dica: “digite lockdown no Instagram, YouTube, Facebook, Twitter. Há amplo domínio bolsonarista, com vídeos (principalmente) servindo tal igual o cinema nazista”. Fiz isso no YouTube e me deparei com uma enxurrada de vídeos atacando o isolamento social. Mas o que mais me chamou a atenção foi uma música anti-lockdown produzida por bolsonaristas em janeiro. A produção é precária, mas claramente houve investimento de dinheiro nela. Cafona como tudo o que vem do bolsonarismo, o videoclipe traz militantes famosos nas redes de extrema direita. Eles aparecem tirando a máscara de proteção contra o vírus enquanto cantam que o “lockdown não ajudou nem nos ajudará”.
Ao que parece, o genocídio já tem um hino oficial. Até a presidente da CCJ, Bia Kicis, aparece no clipe segurando o livro da Constituição e, em outro momento, mostrando uma placa com os dizeres “Supremo é o povo”. A parlamentar nesta semana defendeu o policial que foi assassinado depois de atirar contra seus colegas devido, ao que tudo indica, a um surto paranoico alimentado pelas teses bolsonaristas anti-lockdown. O policial foi chamado de “herói” por Kicis, que incitou outros policiais a se rebelarem contra seus comandantes, os governadores.
Nesta semana, as redes bolsonaristas passaram a circular a informação de que a primeira-ministra da Alemanha, Angela Merkel, teria se desculpado por decretar um lockdown no país. Era mentira, claro. Merkel realmente se desculpou e recuou após decretar lockdown durante a Páscoa, mas foi por ter tomado a decisão de maneira precipitada e sem tempo para adequação das regras. Nesta semana, a Alemanha anunciou que entrará em novo lockdown. Bolsonaro reproduziu a mentira sobre Merkel e disse que os governadores e prefeitos que defendem medidas de restrição estão “matando a população”. Também afirmou: “Eu não fecho nada. A vida é tão importante quanto a questão do emprego” — como se os mortos por covid pudessem bater o cartão de ponto.
Como registra Malini, “o sucesso de Bolsonaro, em parte, é fruto da covardia dos prefeitos e governadores que não decretam as restrições rígidas do lockdown. E, assim, os casos continuam altos. Óbitos, idem. E cresce a quebradeira geral de pequenos empreendimentos”. O negacionismo bolsonarista tenta emplacar a ideia de que a quebradeira econômica se deu por conta das medidas de isolamento social e que o nosso corajoso presidente estaria enfrentando os políticos velhacos corruptos para defender os pequenos comerciantes e do povo que quer trabalhar.
Araraquara, interior de São Paulo, foi uma das raras cidades em que o lockdown total foi decretado. Desde 21 de fevereiro, quando a variante P1 foi identificada, o prefeito impôs forte restrição de circulação e funcionamento do comércio. O transporte público foi suspenso e até mesmo serviços essenciais, como mercados, tiveram severas restrições. O resultado foi imediato: os postos de saúde e UTIs ficaram menos sobrecarregados. E enquanto o estado de São Paulo batia recordes com um aumento de 40% dos óbitos, Araraquara teve uma queda de 58% no mesmo período. No último dia 26, a cidade não registrou nenhum óbito por covid-19. Nas redes sociais, bolsonaristas passaram a atacar o prefeito, que é do PT. Até ameaça de morte ele recebeu. A ciência salva vidas enquanto o bolsonarismo mata.
Na semana de aniversário do golpe militar, data exaltada pelo bolsonarismo, a jornalista de saúde Mariana Varella lembrou da epidemia de meningite na década de 1970. O regime militar censurou as informações sobre a doença, que começou como um surto, mas acabou virando uma epidemia. Médicos e sanitaristas foram proibidos pelos militares de dar entrevistas. Jornais e revistas estavam autorizados a falar sobre o assunto com a condição de que se omitisse os números da epidemia. Os milicos conseguiram abafar a epidemia por um tempo. Mas depois que a doença migrou da periferia para os bairros nobres e começou a matar os ricos de São Paulo, o regime teve que admitir a crise sanitária. Para Varella, “sem comunicação efetiva, a população não sabe o que fazer, como se proteger. Informação clara é essencial em saúde pública”.
O passado e o presente mostram que não há mentira que se sustente por muito tempo diante da avassaladora realidade dos fatos. Assim como a narrativa antivacina foi derrubada, a do lockdown também será. As redes já não são mais dominadas pelo bolsonarismo. O trabalho do gabinete do ódio perdeu boa parte daquele apoio orgânico de antes e hoje é a oposição ao negacionismo que ocupa a maior parte dos espaços virtuais.
As verdades já estão vindo à tona: o que salva vidas e favorece a retomada da economia em tempos de pandemia são as vacinas, um auxílio emergencial decente, lockdown e boa comunicação com a população — tudo o que Bolsonaro e suas milícias digitais boicotaram até aqui. O controle das narrativas, última arma do bolsonarismo, parece estar enferrujando.
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