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Vacina da covid-19: guerra das patentes vai escancarar se Congresso apoia você ou a indústria farmacêutica

Projetos de lei podem facilitar o acesso a vacinas e medicamentos para a covid-19. Mas, para isso, deputados e senadores terão que peitar empresariado.

Vacina da covid-19: guerra das patentes vai escancarar se Congresso apoia você ou a indústria farmacêutica

A crise do coronavírus

Parte 156


Vacina da covid-19: guerra das patentes vai escancarar se Congresso apoia você ou a indústria farmacêutica

Foto Ilustração: Rafael Henrique/SOPA Images/LightRocket via Getty Images

Preste atenção no que acontecerá nos próximos dias no Congresso. É na Câmara e no Senado que o Brasil discutirá se vai aprovar a quebra de qualquer tipo de patente relacionada a vacinas, medicamentos e tratamentos de covid-19. Parece óbvio: em um cenário de emergência como o que vivemos, deveria ser obrigatória a aprovação de qualquer ferramenta que facilite o acesso a insumos e produção de conhecimento, como é o caso da quebra de patentes. Mas não é o que está acontecendo.

Apesar de terem sido financiadas com vultosas montanhas de dinheiro público, a produção de vacinas ainda é um conhecimento fechado da indústria farmacêutica. E quem mais sofre com isso somos nós, os países pobres e em desenvolvimento, que dependemos das megacorporações e dos seus países para liberar o conhecimento de produção e ditar os preços de um recurso essencial no combate à pandemia.

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Na Câmara, o PL 1.462/2020, que propõe a suspensão temporária de patentes para vacinas, medicamentos, equipamentos de proteção individual, os EPIs, e qualquer outro insumo utilizado no combate e no tratamento do coronavírus, será avaliado pela Comissão de Seguridade Social e Família nesta quinta-feira, 8 de abril. No Senado, os PLs 12/2021 e 1.171/2021, que serão reunidos, obrigam os titulares de patentes a cederem ao poder público informações sobre produção e distribuição de medicamentos e vacinas e também quebram temporariamente as patentes. Eles devem ser votados no plenário ainda hoje.

A primeira iniciativa foi o PL 1.462/2020, apresentado coletivamente por 11 deputados federais de vários partidos de matizes políticas tão distintas quanto PT, PSD, Cidadania, DEM, PP, PSL, PROS, PCdoB e PSDB. Desde abril do ano passado, quando foi protocolado, ele ganhou apoio de várias organizações, inclusive o Conselho Nacional de Saúde – que afirma que os monopólios “permitem a apenas uma empresa impor preços elevados e inacessíveis para milhões de pessoas”.

Para produzir vacinas ou medicamentos, as indústrias farmacêuticas patenteiam tudo o que conseguem – não só produtos, mas também processos. Isso dificulta a reprodução e a recriação de seus produtos – o que, segundo as empresas, garante incentivo para que elas continuem investindo em pesquisa e inovação. Assim, com o absoluto controle sobre a produção de seus medicamentos e insumos, elas podem ditar as regras do mercado. E o preço.

Os PLs apresentados na Câmara e no Senado querem mudar isso enquanto durar a pandemia. Eles concedem uma “licença compulsória” que permite a exploração de patentes e pedidos de patentes para utilizar tecnologias úteis para a vigilância, prevenção, diagnóstico e tratamento, incluindo medicamentos, testes e equipamentos de saúde.

Não é uma ideia nova. Canadá, Chile, Equador, Colômbia, Alemanha e Israel já fizeram alterações legislativas do tipo. Essa é, inclusive, uma recomendação do relatório do Painel de Alto Nível do secretário-geral das Nações Unidas, me disse Jorge Bermudez, médico e chefe do Departamento de Política de Medicamentos e Assistência Farmacêutica da Fundação Oswaldo Cruz.

Mas só agora, depois de um ano de pandemia, é que o Brasil começa a avançar nesse debate. O primeiro PL, o da Câmara, foi apresentado no dia 2 de abril de 2020, quando ainda achávamos que a quarentena duraria 40 dias e só 84 pessoas tinham morrido. E ali ficou. Enquanto o projeto pairava sobre a mesa de algum burocrata e as tratativas para a vacina esbarravam na incompetência e no descaso do governo federal, a indústria farmacêutica começou a se mexer. Três associações que representam as empresas enviaram ofícios ao ex-presidente da Câmara, Rodrigo Maia, se manifestando contra o projeto de lei.

A argumentação da indústria repete a fórmula de outros debates sobre acesso ao conhecimento. Diz que a quebra de patentes não facilitará o acesso aos remédios, que dará insegurança jurídica e que comprometerá a ciência e a inovação no Brasil – resultando, em um cenário extremo, na fuga desse setor do país. Dramático.

A Associação Brasileira de Propriedade Intelectual afirmou que o argumento de que a quebra de patentes facilitaria o acesso “carece de veracidade”, porque “não existe nesse momento de pandemia nenhuma inovação em se tratando de insumos farmacêuticos ativos” e que o “licenciamento compulsório não promove a transferência do conhecimento para acelerar a produção”. A Interfarma, Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa, argumenta na mesma linha: diz que a justificativa para o projeto de lei “baseia-se numa suposição”, porque a maior parte dos possíveis tratamentos para a covid-19 “está associada a moléculas antigas e, portanto, não estariam sujeitos à proteção por patente”.

Mas vai além: diz que a patente é um mecanismo necessário para “criar incentivos econômicos para pesquisa e desenvolvimento de novos tratamentos”. O cenário seria catastrófico: “projetos de lei como os aqui mencionados resultam em um risco de desestimular, não somente o setor de fármacos, mas outros setores produtivos, que também possuem pedidos de patentes no Brasil. Caso o país dê indícios de não respeitar a proteção à inovação, haverá fuga de grandes investimentos em pesquisa e inovação”.

“É uma premissa falsa”, me disse Bermudez, comentando a argumentação das farmacêuticas. Para ele, é preciso diferenciar custo e preço dos produtos. “Cada vez mais os preços elevados das tecnologias mais novas não representam recuperação de custos em pesquisa e desenvolvimento, mas recuperação de outros investimentos. As patentes representam monopólios que permitem arbitrar preços elevados, muitas vezes abusivos”.

Além disso, foi dinheiro público que financiou boa parte das vacinas. Três exemplos: o governo dos EUA financiou a vacina BioNtech/Pfizer com uma injeção de US$ 550 milhões. Já a Moderna recebeu US$ 955 milhões. E a Oxford/AstraZeneca, mais de US$ 1,2 bilhão do governo do Reino Unido. Seria justo que dinheiro público financiasse conhecimento público, né? Mas não. Essa injeção de grana vai garantir muito lucro para as farmacêuticas e para seus financiadores, sobretudo fundos de investimento e milionários capitalistas. No caso da vacina de Oxford, por exemplo, só 6% dos lucros ficarão com a universidade.

O retorno financeiro é uma questão de tempo: as farmacêuticas já prometeram aos investidores que o preço das vacinas deve subir em um futuro próximo.

A subserviência do governo federal

Os projetos do Legislativo são o mais perto que estamos de peitar a indústria farmacêutica, que insiste em manter fechado o conhecimento sobre a produção de vacinas e fármacos essenciais – mesmo em um cenário de emergência como o que vivemos. Se depender do governo Bolsonaro e sua política externa subserviente aos EUA (agora órfã de Trump, mas essa é outra história), nos ficaríamos reféns dos interesses dos ricos.

Fomos o único país em desenvolvimento a se posicionar contra a suspensão de patentes para vacinas de covid na Organização Mundial do Comércio, a OMC. A proposta, apresentada pela Índia e pela África do Sul em outubro do ano passado, pretendia suspender temporariamente algumas cláusulas do Trips, acordo internacional que regula propriedade intelectual, para facilitar o acesso a processos e insumos farmacêuticos relacionados à pandemia. “A covid provou que o sistema de propriedade intelectual não funciona. Não foi projetado para lidar com pandemias. Tenho esperanças que isso nos colocará no caminho para falar sobre como reformar o sistema de propriedade intelectual para reagir às necessidades das pessoas dos países membros. Porque esta não é a única pandemia que enfrentaremos”, disse, na época, o conselheiro da OMC Mustageem De Gama.

Pelo menos 57 países membros da OMC co-patrocinaram o projeto, e outros 50 o apoiaram. O Brasil não. Na reunião de janeiro, ficou em silêncio; em março, nosso representante bradou explicitamente contra, afirmando que o Trips já permite o chamado “licenciamento compulsório” em casos de emergência e que a proposta da Índia e África do Sul é ampla demais. O governo deve se alinhar à chamada “terceira via”, uma proposta apresentada pela OMC para resolver o impasse que prevê mecanismos voluntários. Afrouxa, mas não resolve. Os interesses das corporações farmacêuticas continuarão prevalecendo: são elas que determinam as condições, escopo e as empresas aptas a serem licenciadas.

Segundo Bermudez, existem hoje no mundo mais de 2 mil solicitações de patentes de medicamentos relacionados com a pandemia. Se qualquer uma delas for aprovada, seríamos obrigados a comprar do detentor das patentes pelo preço que ele determinasse – um processo, além de caro, também demorado e cheio de etapas.

Se aprovado agora, os projetos de lei já poderiam permitir que o Brasil importasse e, ao mesmo tempo, produzisse tecnologias que hoje são protegidas. Os efeitos poderiam ser imediatos: “no caso das vacinas para covid-19, o Brasil poderia trazer para o território nacional a produção de vacinas de maior reprodutibilidade e menor complexidade”, diz Bermudez. Ele afirma “não ter dúvidas” de que o licenciamento compulsório facilitaria a concorrência e acesso a esses produtos. “Estaremos priorizando a vida antes dos interesses comerciais”.

Uma série de ritos de tramitação de projetos de lei precisa ser acelerada para que as propostas sejam aprovadas em tempo hábil para surtir efeito na vacinação dos brasileiros. Embora os dois tenham entrado na pauta, nenhum deles foi considerado urgente pela presidência das casas. Sem isso, o processo de discussão pode se arrastar por meses. É por isso que, nesta semana, o Legislativo vai mostrar se está disposto a peitar o poderoso lobby farmacêutico. O governo federal já mostrou que não.

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