A JBS foi alertada com uma semana de antecedência sobre funcionários intoxicados na unidade de Nova Veneza, no interior de Santa Catarina – mas ignorou os avisos até 25 colaboradores da unidade terem sido hospitalizados.
Segundo depoimentos à reportagem, os funcionários vinham reclamando de ardência nos olhos, dores de garganta e náuseas, no entanto foram ignorados pela chefia da unidade. A intoxicação ocorreu através dos vapores levantados pela água quente utilizada pela equipe de limpeza na higienização de máquinas e equipamentos.
O caso de Nova Veneza integra um conjunto de milhares de acidentes de trabalho ocorridos em unidades da JBS. Uma investigação publicada por O Joio e O Trigo no ano passado mostrou que 4.677 Comunicações de Acidentes de Trabalho, as CATs, foram emitidas pela empresa ao INSS apenas entre julho de 2018 e março de 2020 – uma média de sete acidentes por dia.
Os 25 funcionários que sofreram intoxicação tiveram Comunicações de Acidente de Trabalho registradas pela empresa no INSS sob a classificação X496 – “Envenenamento (intoxicação) acidental por exposição a outras substâncias químicas nocivas e às não especificadas”. O agente causador do acidente foi classificado nos registros como “substância química”, e a função desempenhada pelos colaboradores intoxicados foi assinalada como “abatedor”, apesar de as vítimas atuarem na limpeza noturna.
Na versão difundida pela JBS aos funcionários da unidade na época do acidente, a intoxicação teria sido causada pela utilização do cloro a granel – produto de limpeza adotado recentemente no processo de higienização dos equipamentos da planta. Porém, segundo depoimento de uma ex-funcionária envolvida diretamente no acidente, uma investigação conduzida pelo coordenador da unidade, pela técnica de segurança do frigorífico e pelos supervisores dos setores de tratamento de água e manutenção refutou a versão da empresa.
“Eles viram que a amônia vazou na tubulação da higienização e reagiu com o cloro granulado, que anulou o cheiro da amônia”, nos disse Jéssica Koguta, encarregada de turno de limpeza na época. “O pessoal não sentia o cheiro, então só apareciam as reações físicas”, explicou.
Koguta trabalhou no frigorífico por 11 anos, entre 2009 e 2020. Uma década apenas no setor de higienização noturna, onde atuou na função de encarregada até pedir demissão, em março do ano passado.
“Muitos sentiram enjoo, tontura, garganta muito seca e vermelhidão nos olhos, como se tivessem se queimado com solda”, contou Leonardo Damiani, então funcionário da JBS que estava presente no dia.
Um outro funcionário, que também testemunhou o episódio e ainda trabalha no frigorífico, disse à reportagem que os primeiros sintomas foram sentidos no momento da aplicação do cloro na sala: “Em poucos minutos, a nossa equipe toda estava intoxicada, com os olhos ardendo. Não dava para enxergar um palmo à frente”.
A água utilizada na limpeza noturna do frigorífico é misturada ao cloro em duas etapas: Uma primeira vez na torre da Estação de Tratamento de Água, ou ETA, da unidade, e uma segunda no chão de fábrica, pelos próprios funcionários da higienização.
O funcionário da limpeza responsável pela segunda diluição na época do acidente foi procurado pela reportagem e afirmou que as quantidades de cloro que vinham sendo aplicadas eram as mesmas de sempre. “A quantidade de cloro era passada para nós pelo setor de controle de qualidade. O que eles mandavam a gente fazia. Naquela época estávamos diluindo o mesmo de sempre”, diz.
Ele conta que em uma reunião de DDS, o Diálogo Diário de Segurança, realizada três dias antes da hospitalização, a técnica de segurança do frigorífico e o gerente da unidade responderam às reclamações dos funcionários afirmando que as causas da intoxicação estavam sendo investigadas e que o problema poderia ter sido causado pela diluição de cloro à granel feita na estação de tratamento de água. Após a reunião, a diluição de cloro feita no chão de fábrica foi suspensa, mas os sintomas de intoxicação persistiram.
De acordo com Koguta, a investigação conduzida pela JBS após o episódio concluiu que a amônia teria invadido a tubulação oriunda da ETA, em função de uma reforma malsucedida nos dutos da unidade – o problema não seria, portanto, o cloro à granel.
Koguta diz ter tomado parte na equipe que conduziu os estágios iniciais da investigação e ter tido acesso acesso às conclusões do trabalho por meio do coordenador da unidade e da técnica de segurança do frigorífico, que a orientaram a reportar incidentes que pudessem indicar um novo vazamento.
Segundo um levantamento realizado pelo Brasil de Fato, desde 2014 foram registrados pelo menos 11 vazamentos de amônia em diferentes frigoríficos da JBS, com mais de 300 funcionários afetados. A amônia é um gás tóxico, altamente solúvel em água, utilizado na refrigeração de grandes instalações industriais. De acordo com a Norma Regulamentadora 36 da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho, do Ministério da Economia, os frigoríficos devem ter sistemas de detecção, controle e evacuação para casos de vazamento da substância.
Procurada pela reportagem, a JBS negou que o vazamento tenha ocorrido. “A ocorrência em questão foi decorrente de procedimento técnico realizado pela Companhia, que prontamente adotou todas as medidas de segurança”, afirmou, garantindo que faz “sólidos investimentos em saúde e segurança em todas as suas unidades”.
Perguntamos à empresa qual foi o procedimento técnico mencionado, mas fomos avisados de que a companhia não fornecerá mais detalhes.
Multinacional ignorou avisos
Koguta diz ter relatado os sintomas que os funcionários da limpeza do frigorífico de Nova Veneza vinham apresentando desde quarta-feira da semana anterior, dia 14 de agosto de 2019. Ela também afirma ter sinalizado a possibilidade de um vazamento de amônia, já que os sintomas eram semelhantes a episódios anteriores que ela havia testemunhado no mesmo frigorífico da JBS.
“Eles não conseguiam deixar o olho aberto e não conseguiam respirar”, disse Koguta. “Foi aí que a gente começou a pedir para alguém ver o que estava acontecendo, já que não eram sintomas normais do cloro, tipo irritação nos olhos e tosse”.
A chefia, porém, rejeitou a possibilidade de vazamento e mandou que fossem feitas pausas periódicas no trabalho: “Eles diziam ‘trabalha até onde aguentar, quando não aguentar, desliga as mangueiras, aguarda baixar o vapor e depois volta’”.
“Nós passamos mais de oito dias recebendo cloro na cara”, resumiu uma funcionária que continua na empresa.
‘O médico não queria atender, porque não sabia por qual motivo a gente estava lá’.
Na quinta-feira, dia 22, por volta das 5h da manhã, o quadro dos trabalhadores intoxicados se intensificou a ponto de terem que ser levados ao hospital. “Eu comecei a tirar os funcionários da sala de corte, porque alguns estavam até vomitando ali dentro. Pedi para se encaminharem para o ambulatório da empresa, mas não tinham carro que os levasse ao pronto socorro”, disse Koguta.
Apesar de estar sob efeito da amônia, Koguta organizou a turma da limpeza e levou todos para o hospital com a ajuda de outro funcionário do frigorífico. “Eu peguei meu carro, peguei o carro de um amigo e pedi para ele me ajudar a levar todos. Acho que eu fiz umas quatro viagens”, completou a ex-funcionária.
No hospital, segundo relato dos trabalhadores, o médico de plantão, Fabrício Dall’Igna, afirmou que só atenderia os funcionários intoxicados na presença da gerência do frigorífico. “Fomos muito mal atendidos”, diz um funcionário que não quis se identificar. “O médico não queria atender, porque não sabia por qual motivo a gente estava lá, muito menos que tipo de produto tinha sido usado e por que não tinha nenhum representante da empresa junto”, contou outra funcionária.
Procurado pela reportagem, Dall’Igna afirmou que só precisava saber qual a substância responsável pela intoxicação para tratar os funcionários. “Não tinha ninguém grave, levaram mais por precaução. O que eles queriam era atestado, afastamento. Agora, negar atendimento, de maneira nenhuma”.
Segundo Célio Elias, vereador na cidade vizinha de Forquilhinha e ex-diretor do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Alimentação de Criciúma e Região, o Sintiacr, a equipe do hospital só começou a examinar os funcionários depois da chegada do sindicato e dos representantes da JBS. “Quando a empresa soube que eu estava no hospital, mandou todo o pessoal deles. Gerente, médico do trabalho, enfermeiros e técnico de segurança”, disse Elias. “Aí, o hospital começou a fazer o procedimento correto e medicar os trabalhadores.”
Por volta das 10h, os funcionários foram levados de volta para o frigorífico, onde receberam da empresa os medicamentos receitados no hospital e tomaram o café da manhã. A maioria teve direito a licenças médicas de dois a três dias. Alguns voltaram a trabalhar no sábado, dia 24. Koguta retomou o trabalho no dia seguinte.
Recorrência
Entre os casos semelhantes relatados pelo levantamento do Brasil de Fato, está um vazamento ocorrido na unidade JBS de Forquilinha, também no interior de Santa Catarina, a 15 quilômetros de Nova Veneza, em novembro de 2017.
Outro princípio de vazamento, que não consta no levantamento, ocorreu na própria unidade de Nova Veneza, em novembro de 2018.
Em 12 de agosto de 2019, apenas três dias antes de os funcionários da JBS em Nova Veneza sentirem os primeiros sintomas da intoxicação por amônia – e dez dias antes de serem levados ao hospital – o funcionário terceirizado Aparecido Raimundo da Silva, de 45 anos, morreu ao receber um choque elétrico trabalhando no telhado da unidade.
Em março de 2020, a Justiça do Trabalho de Santa Catarina chegou a determinar que as atividades da JBS em Nova Veneza e Forquilinha fossem interrompidas até que a multinacional adotasse medidas de proteção contra a covid-19 aos seus funcionários. A decisão foi revertida um dia depois, em tribunal.
No início de maio, o juiz Erno Blume, mesmo responsável por derrubar a ordem de interrupção de atividades em março, determinou que a JBS elaborasse um plano emergencial de contingência do coronavírus, realizasse busca ativa por colaboradores contaminados e afastasse todos os funcionários com sintomas da doença.
“Eu passava Natal, virada do ano, Dia das Mães, qualquer data que você possa imaginar lá dentro. Era um serviço muito maçante, muito torturante. A gente vê muita coisa errada. Eu estava realmente ficando doente”, contou Koguta. “Hoje, peço a Deus que me dê saúde para trabalhar no que eu puder, para não ter que voltar para lá”.
Correção: 8 de abril, 13h32
Uma versão anterior deste texto afirmava que Célio Elias é vereador de Nova Veneza. Ele é, na verdade, vereador da cidade de Forquilinha.
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