Áudios: Funcionário da Basf é vítima de homofobia e pressionado a trabalhar ou se demitir

'As pessoas são ruins'

Áudios: Funcionário da Basf é vítima de homofobia e pressionado a trabalhar ou se demitir

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Aplausos ecoaram na sala do cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais do Subdistrito São Pedro, em Salvador, na Bahia, na tarde do dia 14 de dezembro de 2018. Lá, Paulo Henrique Borile Alves e Leonardo Cassiano Borile Alves assinaram a certidão, trocaram as alianças e comemoraram “um dos melhores dias da vida” deles: o casamento.

Para o casal, a certidão do matrimônio não era só um papel ou uma formalidade. O ato representava, principalmente, o selo do amor dos dois homens, mas também era um gesto político, que fica até hoje enquadrado na parede da casa “para que todos possam ver”.

Mas o dia da união foi o último em que o casal viveu em paz. Assim que Paulo enviou a certidão de casamento para empresa onde trabalhava como operador de processos de produção, a Basf, uma das maiores empresas químicas do mundo, o pior pesadelo da vida deles teve início. Agressões homofóbicas, depressão profunda, represálias e uma longa batalha judicial contra a multinacional, que chegou a pressioná-lo a pedir demissão ou continuar trabalhando – de bico fechado – conforme mostram áudios obtidos pelo Intercept.

“Ou você por livre e espontânea vontade quer sair da companhia ou você continua trabalhando”, afirmou um gerente de RH identificado como Fernando. A médica da empresa referendou logo após a reunião com o RH: “eu acho importante você tentar compreender essa situação. Você pode sofrer isso a sua vida inteira. Infelizmente, é assim. As pessoas são ruins. É cultural”. Paulo nunca mais pisou na Basf, e agora tenta na justiça a condenação da empresa por danos materiais e morais com uma indenização que, ao todo, ultrapassa R$ 45 mil.

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Ilustração: Elisa Pessôa para o Intercept Brasil

‘Brincadeira de mau gosto’

Paulo e Leonardo nunca esconderam a relação. Leonardo, por muitas vezes, levava Paulo até a porta do serviço e se despedia, como qualquer casal. Mas evitavam postar fotos em redes sociais ou “chamar atenção”.

O problema foi quando, por questões burocráticas, Paulo enviou os novos documentos aos recursos humanos da Basf, para registrar que estava casado. Dois dias depois, a notícia de que Paulo tinha casado com outro homem teria, segundo o seu relato, tomado os corredores e vestiários da sede da empresa no Morumbi, zona sul de São Paulo. O casamento de Paulo tinha virado o assunto da firma, sempre sob o tom de chacota.

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Paulo afirma que não sabia disso até um de seus melhores amigos presenciar a homofobia. Curtindo um dia de praia em Salvador, ainda na lua de mel, o químico conta que recebeu um telefonema. “Era meu amigo dizendo que já estava sendo assunto no fretado da empresa. Ele tinha ouvido meu supervisor me zoando, dizendo que eu estava na Bahia dando o cu”, me contou Paulo, engasgando com o próprio choro. “[O casamento] Era pra ser uma construção de felicidade, mas não tivemos um minuto de paz”.

No dia em que voltou da licença, Paulo conta que foi acionado para uma reunião com um gerente do setor onde trabalhava na Basf. “Ele me disse que o caso estava tomando proporção dentro da empresa. Ele tentou abafar aquilo, pedindo que eu não rebatesse, me dando um ‘cala boca’. Ainda justificou dizendo que os ataques eram ‘brincadeira de mau gosto’ dos colegas de trabalho”, lembrou.

A ‘brincadeira de mau gosto’ tomou dimensões inaceitáveis no dia a dia. Se Paulo sentava à mesa com alguém, as pessoas levantavam. Se ele entrava no vestiário para se trocar, os homens saiam, ele lembra. “Eu me sentia um doente, alguém com uma doença contagiosa. Eu via, todos os dias, pessoas em rodinha fazendo chacota comigo. Eu chegava pra perguntar alguma coisa, e o pessoal saia correndo com medo de eu ouvir ou fazer alguma coisa”.

O impacto das agressões recorrentes na vida de Paulo foi avassalador. Ele desenvolveu transtornos de ansiedade, ataques de pânico, depressão, taquicardia e gastrite, além de outras doenças relacionadas ao excesso de peso. Ele chegou a engordar 35 kg em seis meses.

Desde então, faz acompanhamento médico com psicólogo e psiquiatra, tomando cinco medicações ao dia. O diagnóstico de uma das psiquiatras de Paulo, doutora Virgínia Soares Feitosa, é de “sintomas de humor rebaixado, afeto lábil, crises e agudizações disfuncionais e pensamentos de morte associados”, conforme conta em um relatório médico de 5 de março de 2020.

Áudios: Funcionário da Basf é vítima de homofobia e pressionado a trabalhar ou se demitir

Laudo psiquiátrico aponta transtornos mentais decorrentes de ‘problemas sofridos em ambientes de trabalho’.

Afastado do serviço para cumprir parte do tratamento médico, em novembro, Paulo conta que começou a ter seu diagnóstico questionado pela empresa. Ele recebeu, então, um telegrama, em que o RH o informava que ele seria demitido.

Foi quando ele decidiu formalizar uma denúncia interna na ouvidoria. A queixa subiu até a direção-executiva da empresa. Em fevereiro de 2019, a vice-presidente da Basf no Brasil, Gisela Pinheiro, marcou uma reunião com Paulo.

O clima do encontro foi de pressão, conforme conta Paulo. Numa mesa larga de escritório, ele, Gisela e outros seis executivos começaram a conversar sobre os ataques homofóbicos na companhia.

A vice-presidente usou, segundo ele, um discurso corporativo, admitiu que as ofensas estavam erradas e prometeu dar “repreensões verbais” ou até demitir os agressores. “Está errado. A gente não pode dar detalhes da investigação porque o jurídico vai me dar uma bronca”, disse Gisela.

Dias depois, foi a vez de uma reunião com o RH da empresa, que deu início ao inverso do que Gisela Pinheiro havia prometido. O gerente de RH, identificado apenas como Fernando, começou o encontro oferecendo a Paulo um contrato para o pedido de demissão, que deveria ser assinado por ele.

No acordo, além de uma proposta financeira de R$ 5 mil, conta Paulo, havia uma cláusula que garantia eximir a empresa de culpa: “Se eu assinasse o acordo, dizia que não poderia questionar a empresa futuramente de nada que tivesse acontecido”. Ele se negou a assinar.

O gerente de RH, então, rebateu, conforme comprova o áudio da reunião: “Isso [as agressões homofóbicas] não tem o que fazer… Só tem duas coisas para fazer: ou você por livre e espontânea vontade quer sair da companhia ou você continua trabalhando”.

Contrariado, Paulo saiu da reunião com o RH e foi direto para a consulta médica com a profissional de saúde da empresa, dentro da sede. Lá, os conselhos absolutamente ofensivos a Paulo continuaram. “Eu acho importante você tentar compreender essa situação. Você pode sofrer isso a sua vida inteira. Infelizmente, é assim. As pessoas são ruins. É cultural”, disse a médica, conforme revela o áudio.

Foi a última vez em que Paulo colocou os pés na sede da multinacional.

Desde então, ele acionou um advogado e deu início a uma batalha contra a dezena de advogados que representam a Basf na justiça. O processo corre em segredo na esfera trabalhista. Uma nova audiência presencial está marcada para outubro.

O advogado Moisés Carvalho da Silva, que representa Paulo na justiça, defende uma ‘punição exemplar’. “A Basf pouco se importa com seus colaboradores. Para ela, todos não passam de números. Meu cliente foi vítima de comportamentos execráveis, totalmente inadmissíveis devendo a empresa ser condenada de modo exemplar”.

Basf diz ter demitido agressor e que repudia discriminação

Em nota, a Basf disse que “repudia veementemente e não tolera qualquer ato de violência ou discriminação”. A empresa afirmou que demitiu um dos funcionários que fizeram comentários homofóbicos contra Paulo e que “imediatamente ofereceu apoio ao colaborador”.

“Além de desligar o supervisor diretamente envolvido, a companhia advertiu os demais colaboradores da área de produção em questão e reforçou internamente suas políticas de diversidade pautadas pelo respeito que exige dos seus funcionários e parceiros. Apesar do apoio oferecido ao colaborador, bem como a possibilidade de transferência para outras localidades, mesmo fora de São Paulo, o colaborador não aceitou e segue com seu contrato de trabalho suspenso, sobre o qual não podemos divulgar mais informações por conta de sigilo legal”, disse a multinacional.

A companhia ressaltou que está realizando treinamentos e orientações internas voltadas à “valorização e à inclusão das pessoas” no ambiente de trabalho. “Ao lado de outras empresas, aderiu desde o início à carta ‘10 Compromissos da Empresa com a Promoção dos Direitos LGBTI+’, elaborada pelo Fórum de Empresas e Direitos LGBTI+, do qual é signatária”, concluiu a Basf.

Correção: 13 de abril de 2021, 17h20
Ao contrário do que estava no texto, a Basf não demitiu o funcionário vítima de homofobia. O demitido foi um dos responsáveis pelas ofensas. Paulo foi pressionado se demitir ou continuar trabalhando. E o áudio da reunião com a Gisela é de 2019, não de 2021. O texto foi corrigido.

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