Sabemos que o caos sanitário instalado no Brasil criou, especialmente nas lotadas UTIs públicas, contos diários de terror. Mas um dos efeitos da ausência de lockdown, combinado com pouco auxílio emergencial e o forte incentivo de nomes como Bolsonaro a aglomerações, vem sendo ainda pouco observado: as mortes por procedimentos malsucedidos realizados por técnicos, médicos, enfermeiros.
Não, não é culpa desses profissionais. É antes de tudo resultado da ausência de um plano nacional de combate ao coronavírus, exigindo o chamado de gente sem a experiência adequada para trabalhar em UTIs superlotadas. De fevereiro de 2020 até janeiro de 2021, 21.401 leitos de UTI dedicados exclusivamente ao atendimento de pacientes da covid-19 foram abertos em hospitais públicos e privados em todo o Brasil. Para dar conta desses milhares de leitos, vários projetos e programas de contratação emergencial de profissionais de saúde foram criados, a exemplo do “O Brasil Conta Comigo”, do governo federal (o mesmo que, após provocar o fim da parceria com médicos cubanos no país em 2019, reincorporou, ano passado, 1.012 deles por conta da pandemia).
“Nas UTIs onde trabalho, a maioria das pessoas não está morrendo por covid, mas por erro nos cuidados. Não é só médico recém-formado, mas enfermeiros, técnicos inexperientes, pessoas sem a mínima noção do que é um paciente grave, que não sabe ver quando a ventilação mecânica está desconectada, por exemplo. A culpa não é delas, mas da gestão que os coloca lá”, diz o intensivista Felipe, que trabalha atualmente em dois hospitais públicos e dois hospitais privados em Recife e no Agreste de Pernambuco.
É comum, por exemplo, a presença de médicos que não sabem intubar ou realizar drenagem torácica nos pacientes com pneumotórax (ar acumulado que causa pressão nos pulmões, comum em pacientes mais graves com covid-19). “A consequência é a morte por erros e isso vai ser dificilmente comprovado algum dia. É alguém que não fez algo básico, que manejou medicamento errado ou de forma não adequada”, continua. O intensivista diz que os casos são mais comuns nos hospitais públicos, mais lotados que os privados. “Às vezes, são dez médicos na UTI, mas só três sabem realmente intubar”.
Enfermeira com 21 anos de experiência em hospitais públicos e privados pernambucanos, Adriana confirma a realidade descrita pelo médico. “Tem muita gente que não tem a noção de nada, não sabe preencher um cadastro, não sabe ler uma prescrição ou a dosagem dos medicamentos. Profissionais sem a noção básica dos sinais vitais, de quando a pessoa está normal ou está morrendo, em choque. Uma amiga enfermeira viu um paciente com covid-19 se agravando, piorando, e percebeu que ele precisava intubar. O médico não tinha notado e também não sabia fazer o procedimento, e ela é que foi orientando. Tudo deu certo, e ele agradeceu muito”, conta.
Clínico geral que já atuou em dois hospitais de campanha recifenses, Tiago chama atenção para outro elemento eloquente nos tantos casos atuais de erro médico no ambiente das UTIs: o cansaço extremo. “Todo mundo da saúde está em um momento de exaustão física e mental. E aí surgem os vários problemas, aumenta a chance de erro assistencial. Não é necessariamente por incompetência, imperícia. É exaustão mesmo.”
Assim como Felipe e Adriana, Tiago cita como erros comuns que levam pacientes à morte a medicação inapropriada ou remédios em pacientes trocados. “O colapso no sistema de saúde reflete no colapso do profissional de saúde, que trabalha em condições extremas”, continua ele, que relata choros repentinos de colegas – e dele próprio – no ambiente de trabalho. “A sensação é de esgotamento e de desrespeito, principalmente por parte do governo federal, que negligencia a catástrofe que a gente vive. Nossa rotina segue de cabeça para baixo enquanto parte da população parece seguir uma vida normal.” Felipe conta que, trabalhando um ano em UTI, conseguiu almoçar apenas cinco vezes. “Nenhuma delas antes das 17h”.
Antes da pandemia, um estudo do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar da Universidade Federal de Minas Gerais, o Iess da UFMG, já indicava a gravidade da questão do erro médico no Brasil, um assunto pouco visibilizado: cerca de 55 mil pessoas morrem por ano – seis pessoas por hora – por conta de procedimentos malsucedidos. O estudo foi feito com base em registros de prontuários de 182 hospitais do país, de abril de 2017 a março de 2018. Só um novo levantamento, feito agora, no contexto da pandemia, pode mostrar a realidade desse tipo de morte nos hospitais brasileiros – mas, como lembrou Felipe, dificilmente a causa da morte será lançada no atestado de óbito. “De jeito nenhum o médico vai dizer que aquela pessoa morreu por conta de uma insuficiência respiratória causada não pela covid, mas por uma má ventilação, por um erro dele, por exemplo.”
Soma-se a essa verdadeira roleta-russa da sobrevivência nas UTIs a falta de medicamentos, este um assunto que vem sendo mais publicizado para o público: são vários os relatos de pessoas intubadas agressivamente (o procedimento chega a quebrar os dentes dos internados) por falta, por exemplo, de bloqueadores neuro-musculares, que “amolecem” o corpo e facilitam a intubação.
Em um grupo de WhatsApp formado por intensivistas de todo o estado, as conversas dão uma pequena ideia da tensão gerada pela ausência dos produtos nas UTIs, com médicas e médicos tentando encontrar maneiras de atender pacientes mais vulneráveis, como os hipertensos. No grupo, as mensagens revelam que os hospitais deixam de atender pacientes com covid-19 por falta de papel (!) e computadores para o registro de prescrições. Faltam fraldas e seringas também, assim como acompanhamento noturno de pacientes nas unidades de terapia intensiva. Um médico comenta: “E n é por má vontade das enfs, é porque não tem como duas fazerem isso o tempo todo”. Depois, complementa: “Tendo 50 técnicos que faziam isso” (a grafia foi mantida como nas mensagens). Medicamentos muito básicos como a heparina, um anticoagulante que evita trombose – muito comum em pacientes com covid-19, que inflama os pequenos vasos – também somem com frequência (o glossário abaixo ajuda a entender a gravidade da situação).
“O interessante é que muitas vezes o fornecedor é um só, mas os medicamentos faltam apenas para o setor público, e não para os hospitais privados”, diz Adriana, que vê falta de transparência por parte dos últimos em relação, por exemplo, a informações como a lotação das UTIs. Desde o agravamento da pandemia no país, os hospitais privados mostraram-se pouco receptivos à ideia de ceder leitos para o setor público. “Os pacientes covid têm uma margem de contribuição muito menor, muito ruim” disse, em entrevista à Folha, Claudio Lottenberg, do Instituto Coalizão Saúde e o Conselho da Sociedade Beneficente Israelita Albert Einstein.
No final de março, o Senado aprovou o PL 1010/2021, que cria o Programa Pró-Leitos. Nele, é previsto o incentivo a pessoas jurídicas que usarem recursos próprios para a contratação de leitos de UTI da rede privada para uso do SUS. O presidente Jair Bolsonaro tem até o dia 26 deste mês para sancionar ou não a proposta.
A Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp), de fato, atuou de forma contrária às requisições de leitos. Em nota para a coluna, alega que a estratégia “trazia risco de desorganização para o sistema suplementar” e defendeu que cada caso fosse resolvido “no diálogo”. Dados da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib) mostram que o apartheid social brasileiro se reflete nas UTIs: nelas, morrem 29, 7% de pacientes que dão entrada com covid-19. Considerando somente as UTIs públicas, o número sobe para 52,9%, 78% a mais que nas particulares.
Assédio e silenciamento
Os profissionais de saúde entrevistados aqui pediram para não serem identificados com seus nomes verdadeiros por medo de retaliações. Todos já foram constrangidos pelas chefias ou ex-chefias. Tiago, que postou sobre os problemas em UTI pela qual passou, foi chamado até a sala da diretoria. “Queriam saber por que eu estava postando sobre as questões do hospital”.
Felipe concedeu entrevista a um jornal pernambucano falando sobre os problemas de desabastecimento de remédios nos hospitais estaduais, mas a matéria foi barrada pela direção da empresa – a jornalista que o entrevistou informou que o conteúdo causaria desconforto no âmbito do governo do estado. Essa interdição veio na rasteira de uma matéria no G1 (publicada em 8 de abril) na qual lemos a respeito de pacientes intubados acordando por falta de sedativos. No texto, o médico intensivista Arthur Milach, coordenador da UTI-Covid do Hospital Eduardo Campos da Pessoa Idosa e médico diarista do Hospital de Referência Unidade Boa Viagem Covid-19, ambos no Recife, conta que os hospitais chegam a levar de 48 a 72 horas para conseguir novas remessas de drogas. A exposição do problema desagradou: os dois médicos ouvidos pela coluna dizem que alguns dos colegas presentes na matéria foram posteriormente interpelados pelas direções dos hospitais.
Desde que passou a externar seu descontentamento com as gestões das UTIs, Felipe também passou a ser assediado. “Pedem silêncio, dizem para você só se comunicar no privado, que você tem que jogar em equipe. Quem não pensa assim pode acabar ‘ficando de fora’. Soltam ameaças sutis, lembram que são chefes de outros serviços, que você pode se prejudicar lá na frente. É bullying moral mesmo.” O médico já levou cartão vermelho de um hospital no qual trabalhou: pediu para ser realocado, mas foi demitido. Em outro, o diretor deixou de recebê-lo. “Virei persona non grata.”
Ironicamente, procurar a chefia imediata da unidade de lotação é justamente uma das orientações que a Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco, a SES, sugere aos profissionais assediados. Mas, a partir tanto dos relatos dos médicos quanto da enfermeira, essa atitude está fora de questão: ela mais expõe que protege. A pasta, por meio de nota enviada para esta coluna, ainda informa que denúncias podem ser formalizadas junto a Secretaria Executiva de Gestão do Trabalho e Educação em Saúde ou mesmo a Ouvidoria, além do Ministério Público e conselhos de classe.
A SES-PE não reconhece a falta de capacitação profissional como um problema nas unidades de terapia intensiva. Do início da pandemia até agora, 9.862 vagas foram abertas em Pernambuco para profissionais de saúde – destas, 336 foram para médicos intensivistas. Os chamados aconteceram por meio de concurso público e de seleções públicas simplificadas, visando atender também os 1.604 leitos de UTI abertos em todas as regiões do Estado. Assim, na contabilidade, são quase cinco leitos para cada médico e médica intensivista (4,77). Mas, segundo a secretaria, todos os profissionais obedecem a recomendações da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib), que atualmente, “flexibiliza as exigências legais com relação às qualificações médicas no intuito de garantir a assistência especificamente nesse cenário de pandemia.” Informa ainda que os profissionais novos são supervisionados por médicos especialistas, que seguem o protocolo de Manejo Clínico do Paciente com Covid-19. A partir não só dos profissionais ouvidos aqui, mas também das conversas no grupo de WhatsApp, fica claro que estas medidas não são suficientes para evitar os tantos erros nas UTIs – e a raiz de todos eles começa lá fora, onde vemos um chefe de estado sem máscara, feliz da vida e se aglomerando em meio a dezenas de pessoas.
A maioria delas, caso se contamine e desenvolva gravemente a covid-19, vai para uma UTI pública. Ele, não.
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