John Heylings, ex-cientista da Imperial Chemical Industries, em seu escritório no Parque de Ciência e Inovação da Universidade Keele, em Newcastle-under-Lyme, na Inglaterra, em 15 de março de 2021.

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Syngenta sabia dos riscos de agrotóxico que matou 100 mil pessoas, mas preferiu lucrar

Ex-cientista da Syngenta diz que seus avisos sobre o paraquate não foram adiante por uma 'conspiração dentro da empresa para manter isso em segredo'.

John Heylings, ex-cientista da Imperial Chemical Industries, em seu escritório no Parque de Ciência e Inovação da Universidade Keele, em Newcastle-under-Lyme, na Inglaterra, em 15 de março de 2021.

No Brasil, o Centro de Valorização da Vida tem voluntários disponíveis 24h por dia para oferecer apoio por chat ou pelo telefone 188.

Jon Heylings tinha 34 anos quando descobriu o caderno que mudaria o curso de sua vida. Um Cientista Júnior na Imperial Chemical Industries (ICI), Heylings o encontrou em 1990, enquanto tentava resolver um mistério. Especialista em toxicologia, ele tinha chegado na empresa três anos antes para liderar uma equipe que trabalharia para reduzir os riscos à saúde provocados pelos produtos da ICI que continham o pesticida paraquate. Ele passou muito tempo testando formulações que pareciam mais seguras. Mas o estranho era que a empresa não os colocou no mercado. Querendo saber como a ICI escolheu as concentrações químicas na versão do pesticida que vendia, Heylings fez algumas pesquisas nos arquivos corporativos. Lá, ele encontrou o velho caderno de anotações que Michael Rose, um cientista sênior da empresa, havia escrito à mão anos antes.

Heylings conhecia Rose e viu suas descobertas, que eram conhecidas dentro da empresa como o “Rose Report”, ou Relatório Rose. A ICI usou o relatório para justificar a concentração na qual adicionou um produto químico chamado PP796 a seus produtos de paraquate.

Mas os números e gráficos que Heylings viu no caderno não sustentavam a conclusão que Rose recomendou em seu relatório oficial. “Quando comparei os dados em seu relatório com os dados originais de ensaios clínicos de produtos farmacêuticos, percebi que eram diferentes”, Heylings disse ao Intercept. “Muito diferentes.” Embora uma análise precisa devesse considerar todos os resultados de um experimento, Rose escolheu o que era conveniente. “Ele excluiu alguns dados e inseriu outros.”

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O jovem cientista decidiu que deveria informar seus chefes – cuidadosamente. “É um risco criticar os gerentes seniores, sabe?” ele disse recentemente. “Não era algo para ser discutido durante o café.”  Então Heylings escreveu um memorando mostrando os problemas com os dados e explicando que, pelos seus cálculos, a concentração de PP796, um aditivo que protege contra envenenamento, deveria ser 10 vezes maior do que o valor no Relatório Rose – e 10 vezes maior que a quantidade no Gramoxone, o produto de paraquate mais vendido da ICI. Enviou o memorando para seu gerente, que lhe garantiu que o enviaria para a equipe sênior de agroquímicos. Satisfeito por ter feito a coisa certa, Heylings trabalhou mais 18 anos na empresa.

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Documentos internos da ICI que fazem parte do processo nos EUA, fotografados no escritório de Jon Heylings, na Inglaterra, em 15 de março de 2021.

Foto: Philip Hatcher-Moore para o Le Monde

O memorando de Heylings, escrito em 1990 e o Relatório Rose, elaborado pela primeira vez em 1976, estão entre os 400 documentos revisados para esta investigação, que o Intercept conduziu em colaboração com o jornal francês Le Monde. Mais de 350 desses documentos foram divulgados pela Syngenta, a sucessora da ICI, e outros réus no curso de um litígio em andamento sobre a responsabilidade das empresas por danos pessoais devido à exposição ao paraquate. As organizações sem fins lucrativos Public Eye e Unearthed, uma afiliada do Greenpeace, que pesquisou extensivamente o paraquate e o PP796, forneceu cerca de três dúzias de outros. Todos juntos, as milhares de páginas de notas rabiscadas, letras manchadas, e atas de reuniões, muitos dos quais são marcados como “segredo da empresa” e “confidencial”, contam a história da intransigência corporativa em face de um produto perigoso mas lucrativo. Algo que Heylings descreve como “uma conspiração dentro da empresa para manter isso em segredo.”

A Syngenta afirma que a concentração de PP796 que Rose calculou, ainda usada em muitos dos produtos hoje em dia, é segura. “Nossos detratores deturparam e descaracterizaram intencionalmente um número limitado de documentos, que normalmente fazem parte de um diálogo completo sobre o design do produto, e se concentraram neles, fazendo falsas acusações relacionadas ao peso que damos ao custo ao considerar a segurança” escreveu Saswato Das, porta-voz da Syngenta, em um e-mail.

Mas, nos mais de 40 anos desde que Rose fez seus cálculos, muitos dos próprios cientistas da ICI questionaram suas afirmações. E durante esse tempo, dezenas de milhares de pessoas morreram de envenenamento por paraquate.

O assassino rápido

O paraquate é um produto que mata ervas daninhas rapidamente. O químico perturba as membranas celulares das plantas, e interfere no processo de fotossíntese, de modo que os efeitos podem ser vistos dentro de algumas horas. Por funcionar com tanta rapidez, o paraquate foi celebrado como um avanço significativo quando foi introduzido nos anos 1960. Desde então, milhões de toneladas do herbicida foram usadas nos EUA. Mais de 4,5 mil toneladas foram pulverizadas em milho, soja, uvas, e outras frutas e vegetais em 2017, no último ano em que os dados ainda estavam disponíveis. E o uso do paraquate está aumentando agora, conforme com os dados do U.S. Geological Survey.

O problema com o paraquate – ou um dos problemas – é que o químico que mata plantas tão eficientemente é também extremamente tóxico para os humanos. As pessoas que bebem acidentalmente somente um pouco do produto frequentemente morrem logo depois. Apenas um copo de shot é suficiente para acabar com uma vida. Aliás, diferente dos outros venenos, o paraquate não tem antídoto. Por ser tão letal, milhares de pessoas usaram o pesticida para se suicidar. Apenas dois anos depois do seu lançamento em 1962, foram relatados envenenamentos na Irlanda e Nova Zelândia. Logo depois, os suicídios foram responsáveis pela maioria das mortes causadas por paraquate.

Em 1968, a ICI encontrou uma solução possível para o que chamava de “problema de envenenamento por paraquate”, quando um cientista sugeriu adicionar ao químico à Gramoxone que iria induzir vômito. Embora inicialmente a empresa tenha optado por não seguir a estratégia de adicionar um emético aos seus produtos, em parte porque era cara demais, em 1972 a empresa voltou à ideia quando os casos de envenenamento começaram a aumentar. Naquele ano, o Centro de Venenos do Reino Unido recebeu 59 ligações sobre o paraquate, conforme seu diretor, Roy Goulding, disse aos cientistas da ICI em uma reunião realizada no ano seguinte. Seis pessoas morreram por ingerir o pesticida, incluindo duas crianças, Goulding disse ao grupo, implorando para “fazer algo rapidamente.”

Um médico que viu um homem saudável morrer após beber o paraquate chamou o pesticida de ‘o assassino mais mortal desde a bomba atômica’.

A pressão para interromper as mortes por paraquate aumentou junto com os envenenamentos. Nos primeiros dois meses de 1974, duas pessoas nos EUA, mercado crítico para a empresa, já haviam morrido depois de ingerir o pesticida. Uma mulher se matou usando-o. E um adolescente de 17 anos morreu no Havaí após ter bebido acidentalmente paraquate que havia sido derramado em um refrigerante. Até então, o problema também havia surgido em outras partes do mundo, incluindo Holanda, Alemanha, França, Dinamarca e Japão (o paraquate também foi pulverizado em campos de maconha no México na década de 1970, graças ao governo dos EUA, que esperava matar as plantações e, em vez disso, criou um grande problema de saúde sobre a “maconha de paraquate”).  Na Irlanda, onde 92 pessoas morreram após ingerir o paraquate entre 1967 e 1977, um médico que viu um homem saudável morrer após beber o paraquate chamou o pesticida de “o assassino mais mortal desde a bomba atômica.”

Mas talvez a maior motivação para a ICI começar a usar um químico que obrigaria o corpo expulsar o paraquate veio da EPA, a agência de proteção ambiental dos Estados Unidos. Em 1975, ICI e Chevron Chemical Co., que fabricava, distribuía, e vendia os produtos de paraquate para a ICI até 1986, tomaram conhecimento que a EPA estava tão preocupada sobre a segurança do pesticida que estava considerando iniciar um novo processo de avaliação que poderia resultar em sua retirada do mercado. “A equipe legal da EPA aproveitaria qualquer boa oportunidade para tentar cancelar formalmente o uso de paraquate”, disse L. R. Stelzer, que trabalhava para a Chevron, que também é ré no litígio atual, aos seus colegas na época. Duas semanas depois, a ICI criou um plano para adicionar o PP796 ao Gramoxone.

A droga havia sido escolhida porque, durante ensaios clínicos de seu potencial como tratamento para asma, os participantes relataram que causava o vômito. A empresa decidiu que o PP796 deveria ser colocado no Gramoxone numa concentração de 0,05%, e procurou patenteá-lo “em todos os principais países do mundo”, como deixou claro em um documento marcado “segredo da empresa.”

Esta estratégia permitiria à ICI não apenas manter e expandir suas vendas de paraquate em mercados onde a regulação era um risco, mas também criar um novo mercado lucrativo para o próprio emético. Governos em todo o mundo, assim como a Organização para a Alimentação e Agricultura das Nações Unidas, que supervisiona as normas internacionais de pesticidas, acabariam por exigir a inclusão de PP796 nas formulações de paraquate mantendo a concentração em torno de 0,05%. Como a ICI patenteou não apenas o PP796 mas também outros componentes que executavam a mesma função, a empresa podia vender o PP796 para outras fabricantes de pesticidas. O único obstáculo? Naquele nível, o PP796 não era particularmente eficaz em evitar que as pessoas morressem.

Syngenta sabia dos riscos de agrotóxico que matou 100 mil pessoas, mas preferiu lucrar

Um gráfico do caderno de Michael Rose, cientista da ICI, que Heylings recuperou nos arquivos da companhia em 1990.

Documento: apresentado pela Syngenta no processo.

Ninguém vomitou

Apenas uma semana após a ICI introduzir sua estratégia internacional para usar o emético, um cientista da Chevron, Richard Cavelli, destacou o fato de que a ciência não apoiava a decisão de introduzir o químico na concentração indicada, como um documento produzido pela Chevron deixou claro no processo. A ICI indicou para Cavalli que as pessoas vomitariam dentro de 15 minutos após beber o PP796, mas ele notou que os dados mostravam algo diferente: “até onde eu posso ver, ninguém vomitou em 15 minutos.”

Foi somente uma semana depois que Rose escreveu o relatório que forneceria o embasamento que a empresa precisava para justificar sua decisão – o mesmo relatório que seria encontrado por Haylings mais tarde. Rose afirmou que os humanos eram mais sensíveis ao PP796 do que os cachorros e macacos usados para testar o emético, e que por isso os humanos precisariam de uma dose menor para vomitar.

Cavalli, no entanto, não viu essa evidência: “Não tenho confiança que a EPA aprovaria esta droga como um inerte dado a falta de informação indicada”, concluiu. E, de acordo com um memorando de 1976 escrito por Cavalli, Rose não tinha visto os dados humanos que ele escreveu em seu relatório; os dados estavam sobre uma microficha, e todas as cópias haviam sido destruídas.

Nada disso impediu Rose de esboçar uma curva que indicava que a concentração de 0,05% – uma dose que, como funcionários da empresa observaram em um documento marcado como “segredo” deste mesmo ano, “não resultaria em um aumento grande no custo do Gramoxone” – impediria efetivamente as mortes por envenenamento de paraquate. Inicialmente, a EPA rejeitou a ideia de adicionar PP796 ao paraquate. “Têm jeitos melhores para induzir o vômito – enfiando o dedo na garganta, por exemplo”, escreveu um cientista ao Chevron em 1977. Mas no seguinte, a ICI introduziu o componente em diversos outros países, com a esperança de que a nova formulação resultasse em menos mortes e produzisse dados que convenceriam os reguladores americanos de que o paraquate era bastante seguro para permanecer no mercado.

Em resposta a perguntas para este artigo, a Chevron escreveu numa declaração enviada por e-mail que “a Chevron Chemical Company foi pioneira em muitos programas de gerenciamento que permitiram aos clientes usar com segurança seus produtos, incluindo o paraquate. Estes esforços incluíram a primeira linha direta privada de controle de veneno, a primeira tampa à prova de crianças, programas de treinamento de aplicadores e fazendeiros, kits de tratamento de emergência para envenenamento por paraquate e guias médicos, e rótulos de produtos que ultrapassaram os requisitos regulamentares.” A declaração também disse que “a Chevron Chemical Company submeteu todos os dados clínicos sobre os humanos e animais que eram necessários e relacionados ao paraquate para a EPA, que aprovou a formulação que usava o emético.”

‘É importante que esperanças indevidas não sejam levantadas sobre o que o PP796 pode alcançar toxicologicamente.’

Em 1981, evidências do Reino Unido e do Japão deixaram claro que, embora estivesse fazendo algumas pessoas vomitarem, o PP796 não era o salva-vidas que a empresa queria. “Nenhuma evidência estatística sugeriu de que o emético reduziu o número de mortes com o produto”, escreveu um cientista da ICI chamado Peter Slade em 1981, num memorando divulgado por Syngenta no processo. “Na melhor das hipóteses, apenas umas poucos pessoas sobreviveram ao envenenamento por paraquate por causa da inclusão do emético.” Os resultados não foram melhores na então Samoa Ocidental. Enquanto algumas pessoas que tomaram a nova versão de paraquate vomitaram, “o início precoce do vômito após a ingestão de paraquate não desempenha um papel na redução da mortalidade, ” observou um relatório interno marcado “altamente confidencial.

Slade avisou seus colegas contra deturpar o papel do químico. “É importante que esperanças indevidas não sejam levantadas sobre o que o PP796 pode alcançar toxicologicamente e, igualmente, que as autoridades não sejam ativamente induzidas a pensar que a formulação emética vai ‘resolver’ o problema com o paraquate”, notou Slade.

Embora não esteja claro qual empresa o forneceu, a EPA recebeu informações que sugeriam que o PP796 tornaria o paraquate mais seguro, que foram citadas na decisão da agência em 1982, quando optou por não seguir em frente com uma investigação e uma possível proibição. A decisão permitiu que as futuras formulações incluíssem o PP796 e observou: “o emético adicionado vai induzir o vômito rapidamente, assim reduzindo o tempo de absorção e exposição”.

De fato, apenas um mês antes, uma investigação que nunca foi publicada, escrita por um cientista da ICI chamado T. B. Hart e uma funcionária do Serviço Nacional de Informação sobre Envenenamentos, Amanda Bramley, mostrava ainda mais problemas com a ideia que o PP796 estava salvando vidas. “Ainda não fomos capazes de avaliar totalmente a eficácia de uma formulação emética na redução da mortalidade”, escreveram os autores, após analisar 262 incidentes de envenenamento por paraquate que ocorreram no Reino Unido entre janeiro de 1980 e fevereiro de 1982.

Outros funcionários da empresa também começaram a perceber a ineficácia do emético no Gramoxone. “Parece-me que precisamos de um emético potente que causa vômito 5 minutos após a ingestão de uma dose potencialmente letal de paraquate”, escreveu um cientista chamado Lewis Smith em 1984. Smith sugeriu aumentar a quantidade em cinco vezes, mas isso não aconteceu.

Não surpreende que, em todo o mundo, pessoas continuassem a morrer por beber o paraquate. Suicídios e envenenamentos acidentais foram relatados na China, Índia, Itália, França, e em toda a África e América do Sul, diz a organização suíça sem fins lucrativos Public Eye. Na Malásia, onde o pesticida foi usado para controlar ervas nas plantações de seringueira, houve 253 mortes somente em 1986. O paraquate também representou uma crise particular no Japão, onde foi usado para suicídio e, por meio de bebidas batizadas com paraquate colocadas em máquinas de venda automática, como arma de assassinato.

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Uma fábrica da Syngenta em Schweizerhalle, área industrial perto de Basel, Suíça, em 14 de novembro de 2020.

Foto: Fabrice Coffrini/AFP via Getty Images

Uma variedade de opções

Quando Heylings chegou à ICI como jovem cientista, a empresa já arranjava outra solução para o “problema ‘empresarial’ provocado pelo abuso suicida/homicida do produto”, como disse um documento de 1987. Como a adição do baixo nível de PP796 não impedia os envenenamentos, a empresa decidiu desenvolver formulações menos letais que manteria em segredo a não ser que os reguladores pedissem para remover o produto.

“O executivo aprovou a estratégia de desenvolver formulações alternativas para a comercialização ‘nas prateleiras’ a fim de oferecer uma ‘variedade de opções’ ao setor de assuntos regulatórios quando enfrentassem uma crise regulatória do paraquate”, explicou o documento de 1987. Estas opções incluíam uma fórmula liquida identificada como “b”, ao menos cinco vezes mais diluída do que a formula no mercado, e “c”, uma versão sólida que poderia “levar a uma redução nos níveis das doses em casos de suicídio”.

Embora Heylings não soubesse na época, a ICI já tinha explicado claramente por que não usava estas versões mais seguras: “a introdução das formulações b ou c destruiria a base de lucro do paraquate”. E o lucro foi considerável. Em 1987, os produtos de paraquate produzidos pela ICI eram usados em 140 países. A empresa vendia 13,6 mil toneladas de paraquate por ano, o que totalizou 90,7 mil toneladas.

‘A introdução das formulações b ou c destruiria a base de lucro do paraquate.’

Em 1990, um gerente da ICI chamado R. A. Morrison afirmou o compromisso da empresa em proteger o lucro do paraquate. Era possível criar uma nova versão com menos paraquate por volume, como reconheceu Morrison em um memorando de abril em 1990, fornecido ao Intercept por Public Eye e Unearthed, mas isso custaria mais para produzir e enviar. Em volume, o PP796 custava oito vezes mais para ser produzido do que o mesmo de paraquate. Além disso, apontou ele, aumentar a concentração exigiria a construção de novas instalações de manufatura. Enquanto a empresa desenvolvia uma versão mais diluída do pesticida para vender no Japão, onde o paraquate enfrentava uma possível retirada de circulação, era considerado caro demais em outros países. “Nesse nível de diluição, os custos de formulação e embalagem seriam aumentados e o uso do produto pelos agricultores reduziria significativamente devido à inconveniência a granel e aos preços mais altos”, Morrison escreveu em outubro daquele ano, de acordo com outro memorando fornecido por Public Eye e Unearthed. “Não vemos razão para mudar proativamente nossas formulações atuais.”

Em uma resposta enviada por e-mail, a Syngenta negou que o custo influenciou em suas decisões sobre a concentração do químico: “rejeitamos a sugestão que, no desenvolvimento deste produto, Syngenta e seus predecessores tivemos qualquer motivo senão encontrar o nível mais apropriado de emético no paraquate para melhor abordar o risco de ingestão acidental e deliberada.”

A empresa também questionou a responsabilidade da companhia pelos suicídios do paraquate.  “As pessoas se matam por razões sociais, ambientais, e econômicas”, escreveu Das, uma porta-voz da Syngenta. “Quase todas as inovações modernas – edifícios, pontes, ferrovias, produtos farmacêuticos, automóveis, máquinas e produtos usados para proteger colheitas – têm sido usadas para o suicídio. Acreditamos que a sociedade precisa abordar as raízes dos problemas e se concentrar na saúde mental, e não privar o mundo de tecnologias importantes, que melhoraram o bem-estar humano em geral.”

‘A restrição dos meios funciona porque os impulsos suicidas são frequentemente transitórios, com duração de apenas minutos ou horas.’

As razões pelas quais as pessoas se matam com o paraquate parecem semelhantes aos motivos pelos quais escolhem se matar por outros meios. Conforme um estudo de 2009 que avaliou os casos de 250 pessoas internadas em um hospital sul-coreano após ingerir o pesticida, os motivos incluíam: pessimismo, problemas familiares, problemas econômicos, depressão, doenças crônicas, vício de jogo, problemas escolares e relacionamentos amorosos.

Certamente, as empresas não podem ser responsabilizadas pelo sofrimento dessas pessoas. Mas existem pesquisas que mostram que o banimento de pesticidas particularmente letais pode reduzir o número de pessoas que se matam. No Sri Lanka, a taxa de suicídio aumentou dramaticamente com a introdução de pesticidas perigosos na década de 1960 e começou a diminuir quando o país começou a banir alguns desses pesticidas, incluindo o paraquate, nas últimas duas décadas. “A restrição dos meios funciona porque os impulsos suicidas são frequentemente transitórios, com duração de apenas minutos ou horas”, escreveu Michael Eddleston, um toxicologista especializado em suicídios com pesticidas. Eddleston afirma que houve mais de 14 milhões de suicídios por ingestão de pesticidas desde que o mais tóxico desses produtos foi introduzido na década de 1950.

Os Estados Unidos representam uma pequena parte do total. Houve 18 mortes por paraquate entre 1983 e 1992, diz o livro “Paraquate Poisoning” (Envenenamento por Paraquate, em tradução livre). Uma parcela da razão pela qual há tão poucos suicídios de paraquate nos EUA é que as pessoas que pretendem se matar têm mais aceso a armas.

CAMPO MOURAO, PR - 22.09.2020: HERBICIDA PROIBIDO ASSOCIADO AO PARKINSON - Herbicide, with Paraquat compound banned in Brazil since 2017 for being associated with Parkinson's disease. The ban began on Tuesday (22). In 2017, Anvisa gave 3 years to present

Um herbicida com paraquate, que está proibido no Brasil desde 2017 por estar associado à doença de Parkinson, é mostrado em Campo Mourão, Brasil, em 22 de setembro de 2020.

Foto: Dirceu Portugal/Fotoarena/Alamy

Uma ameaça aos negócios

Depois de confrontar seus chefes com o Relatório Rose em 1990, Heylings começou a trabalhar em um produto do paraquate mais seguro que havia chegado ao mercado, uma versão do pesticida nomeada Gramoxone Inteon. Esta formulação continha PP796 em nível três vezes superior ao que orientava o Relatório Rose e incluía um outro componente que iniciava a solidificação no estômago, o que tornava o corpo menos suscetível a absorver o químico letal.

O novo produto melhorou ligeiramente a taxa de sobrevivência das pessoas que ingeriram o pesticida. Um estudo de 2008 com 586 pessoas que ingeriram o paraquate no Sri Lanka descobriu que 63,3% das pessoas que beberam Gramoxone Inteon morreram, em comparação com 72,9%das pessoas que beberam a formulação do pesticida que incluía o emético numa concentração mais baixa e não tinha o componente solidificante. A Syngenta percebeu que o aumento da taxa de sobrevivência poderia levantar questões desconfortáveis, algumas das quais foram apresentadas pela empresa em uma lista de possíveis perguntas que a mídia poderia perguntar. Entre as questões, estava a seguinte: “o desenvolvimento do Gramoxone Inteon foi motivado pelas próprias dúvidas [da Syngenta] sobre a segurança do Gramoxone?” Os porta-vozes da empresa foram instruídos a responder “não”.

De qualquer forma, o governo do Sri Lanka não ficou convencido pelos dados do estudo de 2008 do Gramoxone Inteon, e proibiu o paraquate nesse mesmo ano. Também era tarde demais  para mudar as opiniões na Europa. Em 2005, a Suécia desafiou a aprovação do paraquate pela União Europeia, com base nos envenenamentos “incuráveis” e em outro problema: a conexão entre o paraquate e a doença de Parkinson.

As evidências dessa conexão surgiram pela primeira vez na década de 1980. O neurologista Canadense André Barbeau documentou uma associação “muito forte” entre o mal de Parkinson e o uso de pesticidas, incluindo o paraquate, em 1985. Agricultores de apenas 32 anos foram diagnosticados com o distúrbio neurodegenerativo debilitante, que é tipicamente visto em pacientes mais velhos, conforme outro médico descrito na revista Neurology dois anos depois. O governo sueco chamou a atenção para um estudo de 2002 mostrando que ratos expostos ao paraquate desenvolveram uma condição semelhante à de Parkinson, além de um estudo de 1990 que descobriu que pessoas que haviam se envolvido em pulverização química tinham seis vezes mais chances de contrair a doença.

Enquanto outros países estavam se livrando do pesticida, o uso do paraquate estava aumentando nos Estados Unidos.

Em 2003, a Syngenta começou a criar uma defesa contra essa ameaça. Em um documento interno produzido no litígio, a empresa explicou sua estratégia para lidar com as evidências crescentes de neurotoxicidade, que considerou “uma ameaça aos objetivos de negócios do paraquate da Syngenta”. O gerente regulatório global da Syngenta aconselhou medidas para “controlar qualquer impacto potencial no Gramoxone” e “mudar o foco das pesquisas sérias da doença de Parkinson para outros fatores ambientais”. No entanto, em 2007, o Tribunal de Justiça da UE proibiu o pesticida.

Enquanto outros países estavam se livrando do pesticida, o uso do paraquate estava aumentando nos Estados Unidos. Os envenenamentos também continuavam. De acordo com o Sistema de Dados de Incidentes do EPA, houve 181 incidentes de envenenamento por paraquate e 27 mortes entre 1990 e 2014. Uma dessas mortes foi a de um menino de 15 meses que bebeu paraquate colocado em um recipiente de Gatorade – o que trouxe a atenção de Heylings de volta ao pesticida em 2018.

Nessa altura, Heylings, que havia deixado a Syngenta uma década atrás, era professor de toxicologia e havia fundado sua própria empresa de toxicologia, que havia recentemente obtido um contrato com o governo do Reino Unido para estudar como o cabelo e a pele poderiam ser descontaminados de vários produtos químicos. Um deles, por coincidência, foi o paraquate. Embora a nova empresa de Heylings tenha obtido alguns contratos com a Syngenta, ele não trabalhava com paraquate por mais de uma década. Enquanto lia a literatura recente, ele encontrou uma página no site da EPA que documentava vários casos de envenenamento por paraquate, incluindo o do menino de 15 meses, que viveu 13 dias após beber paraquate antes de sucumbir à falência renal e falência hepática.

Logo se inteirou que o Gramoxone Inteon – a versão um pouco mais segura do pesticida que ele passou anos testando – havia sido retirado do mercado. Com os detalhes da morte da criança em sua mente, ele buscou seu antigo empregador e solicitou um encontro. Em outubro de 2018, ele se reuniu com alguns funcionários da Syngenta e lhes falou sobre suas preocupações de que a concentração do emético não fosse eficaz. Heylings explicou os dados que viu no bloco de notas e estava convencido de que pelo menos algumas das pessoas com quem ele estava falando estavam percebendo, pela primeira vez, que tinha um problema com PP796. “Esses caras estavam, sabe, de boca aberta, muito nervosos”, lembra Heylings.

A Syngenta o convidou para uma segundo encontro no qual a empresa compartilhou uma análise de dados sobre o PP796 que reconhecia o “pequeno número de pessoas” envolvidas na pesquisa e a fragilidade científica do processo de Rose. “Ao estimar a dose emética para humanos, Rose reconheceu claramente que havia ‘dados limitados disponíveis no homem’. Ele parece ter inspecionado visualmente os dados e tirado suas conclusões, em vez de usar qualquer procedimento estatístico.” Ainda assim, concluiu o relatório, um outro artigo científico, escrito por dois especialistas britânicos em envenenamentos e publicado em 1987, mostrou que o nível que Rose havia calculado era eficaz.

No entanto, esse artigo também é questionável, de acordo com Unearthed and Public Eye. Em uma investigação não publicada, as organizações descobriram que o artigo de 1987 não revelou que a maioria dos sujeitos da pesquisa, embora apresentada como tendo tomado Gramoxone, na verdade havia ingerido produtos que tinham concentrações mais altas do emético e concentrações mais baixas de paraquate. O resultado foi que, novamente, o emético parecia mais eficaz do que realmente era. “Fiquei chocado”, disse Laurent Gaberell do Public Eye. “É altamente enganoso, para dizer o mínimo. Não há absolutamente nada neste estudo que possa provar a eficácia do emético no Gramoxone.”

‘É altamente enganoso, para dizer o mínimo. Não há absolutamente nada neste estudo que possa provar a eficácia do emético no Gramoxone.’

Em uma reunião subsequente com cinco executivos da Syngenta, Heylings mais uma vez contou a história do antigo notebook e apresentou slides explicando que a ciência original que havia estabelecido o nível de PP796 no paraquate era imprecisa. Depois disso, de acordo com Heylings, as relações ficaram mais frias.

O toxicologista teve uma última reunião com seu ex-empregador em abril de 2019. Ele disse que esperava que isso levasse a empresa a abrir um inquérito independente sobre suas alegações. “Por que não dizer, ‘Jon, vou te dizer o que faremos. Reuniremos especialistas externos em venenos e nos sentaremos em um hotel, examinaremos tudo isso e deixaremos o presidente de uma equipe de investigação tomar uma decisão.’ E eu teria dito: ‘Excelente! Estou feliz com isso!’”

Em vez disso, a Syngenta enviou a Heylings um documento que contestava categoricamente suas afirmações sobre o PP796 e o ??Relatório Rose. “Não há evidência de deturpação associada ao relatório de pesquisa de 1976, e simplesmente não existe razão para acreditar que o autor teria motivo para forjar os dados”, disse o documento não assinado.

Mais tarde naquele ano, Heylings abordou o gerente de análise química do paraquate do EPA com suas evidências. O gerente lhe disse que deveria abordar o assunto com a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação. A FAO disse a Heylings que revisaria a concentração de PP796 em produtos de paraquate, que ainda está no nível definido pelo Relatório Rose. A organização internacional ainda não revisou suas especificações.

Em um e-mail de 2019, o gerente de revisão do paraquate da EPA também disse a Heylings que incluiria seu relato detalhado dos problemas com o PP796 num documento público sobre o paraquate. Mas seu memorando não foi incluído no arquivo dos documentos disponíveis ao público. Quando questionado sobre o motivo de as informações enviadas em 2019 não terem sido tornadas públicas, o porta-voz da EPA Ken Labbe escreveu em um e-mail para o Intercept dizendo que “essas informações não foram incluídas por engano, devido a mudanças de rotina na equipe”.

“A agência está rapidamente se certificando de que nenhuma informação comercial confidencial (CBI) esteja incluída na documentação fornecida pelo Dr. Heylings”, acrescentou Labbe. “Se não houver CBI, o EPA postará imediatamente a documentação na pauta de revisão do registro do paraquate. Das, o porta-voz da Syngenta, negou que qualquer pessoa da empresa tenha pedido ao gerente de revisão do paraquate ou a qualquer outro funcionário da EPA para não incluir a apresentação de Heylings na pauta pública.

Em seu e-mail para o Intercept, a empresa também negou enfaticamente que o PP796 fosse ineficaz na concentração do Relatório Rose. Quanto à ideia de que uma concentração mais alta de PP796 pode tornar o paraquate menos letal, “hoje, eminentes especialistas médicos desaconselham altos níveis eméticos por preocupações que possam aumentar a toxicidade”, escreveu Das. “A opinião médica evoluiu nos 30 anos desde que Jon trabalhou pela primeira vez neste produto.”

De acordo com a Syngenta, a empresa investigou – e rejeitou – as alegações de Heylings. “Nossos cientistas investiram centenas de horas examinando suas preocupações, correspondendo e discutindo-as com ele”, escreveu Das. “O argumento de Heylings de que aumentar o nível de emético melhora a segurança do produto é excessivamente simplista; a realidade é complexa e a opinião médica e científica moderna não apoia o ponto de vista de Heylings. ”

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Heylings em seu laboratório na Universidade Keele, em Newcastle-under-Lyme, Inglaterra, em 15 de março de 2021.

Foto: Philip Hatcher-Moore para o Le Monde

A próxima luta

E é assim que, mais de 30 anos depois de encontrar o caderno, Heylings, agora com 65 anos, se encontra em guerra com seu antigo empregador. O ex-funcionário da empresa pode esperar uma luta árdua. Na última década, as evidências que associam o paraquate à doença de Parkinson aumentaram. Syngenta, Chevron e outros fabricantes do pesticida estão prestes a ir a julgamento na ação coletiva em Illinois, que foi movida em nome de pessoas que desenvolveram a doença após a exposição ao paraquate. Heylings já deu depoimento no litígio e disse que espera testemunhar como perito designado pelos demandantes no julgamento, que está programado para começar em maio.

A Syngenta também contesta veementemente a ideia de que o paraquate causa o mal de Parkinson. “O peso da evidência científica não mostra nenhuma ligação causal entre a exposição ao paraquate e o desenvolvimento da doença de Parkinson”, escreveu Das ao Intercept. “Levamos essas reivindicações a sério e pretendemos nos defender vigorosamente contra elas”.

Heylings, que se descreveu ao Intercept como “uma pessoa bastante civilizada”, disse que também não vai fugir. “Se eu decidisse abandonar isso agora, como me sentiria em 10 anos?” No entanto, o professor está enfrentando uma empresa que tem vastos recursos para gastar na defesa de seu pesticida. A Syngenta, que teve mais de US$ 13 bilhões em vendas em 2019, é agora uma subsidiária da ChemChina, empresa química nacional da China, que a comprou em 2016 por US$ 43 bilhões. É importante notar que a Suíça, onde a Syngenta ainda é sediada, e a China estão entre os mais de 50 países que baniram o paraquate.

‘Em primeiro lugar, nunca deveríamos ter usado paraquate.’

Nos EUA, onde a EPA agora está revisando seu registro, o uso do paraquate ainda está crescendo. No ano passado, como parte desse processo, a agência propôs novas medidas de segurança para o pesticida: a proibição da aplicação aérea de paraquate para todos os usos, exceto a dessecação do algodão; limitação da taxa máxima em que pode ser aplicada para alfafa; e a exigência de um aviso, no rótulo da embalagem, sobre sua propagação. De acordo com cientistas independentes, essas mudanças não são suficientes.

“Em primeiro lugar, nunca deveríamos ter usado paraquate”, disse Nathan Donley, cientista sênior do Center for Biological Diversity, que aponta para o impacto devastador do pesticida na vida selvagem e também nos humanos. “A ciência é muito clara sobre a ligação com a doença de Parkinson.” Ainda assim, Donley permanece cético de que a EPA irá removê-lo do mercado. A lei que rege a regulamentação de pesticidas, a Lei Federal de Inseticidas, Fungicidas e Rodenticidas, usa uma análise de custo-benefício que permite à agência ignorar os danos diante do benefício econômico de um produto. E o paraquate tem se tornado cada vez mais útil para matar ervas daninhas que se tornaram resistentes a outro pesticida perigoso, o glifosato. Donley descreve a substituição de um produto químico perigoso por outro como “a esteira de pesticidas”.

Enquanto isso, as pessoas ainda estão sendo envenenadas pelo paraquate. Nos EUA, o agrotóxico causa pelo menos uma morte por ano desde 2012, de acordo com um estudo de 2019 de Donley. Ninguém tem uma contagem definitiva de todas as pessoas que morreram por ingerir paraquate. Mas Eddleston, o toxicologista que estudou extensivamente o pesticida, estima que houve “dezenas de milhares de mortes por envenenamento com paraquate, possivelmente mais de 100 mil”.

A Syngenta diz que lamenta essas perdas. “Achamos comovente que pessoas tenham sido prejudicadas pela ingestão acidental ou intencional de paraquate, um produto que ajuda os agricultores a produzir alimentos. Temos empatia com a dor daqueles que perderam entes queridos. Ninguém deveria ter que lidar com a perda intencional da vida de um ente querido.”

Heylings diz que os verá no tribunal.

Esta reportagem foi produzida em colaboração com Stéphane Horel, do jornal Le Monde.

Tradução: Elias Bresnick

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