No ano passado, quando a pandemia dava sinais de arrefecimento, o presidente Jair Bolsonaro recusou uma série de ofertas para comprar vacinas. Da Pfizer, negou 70 milhões de doses, que teriam sido entregues até dezembro. Disse não várias vezes às 100 milhões de doses da Coronavac que o Butantan prometia para dezembro de 2020. Agora, o preço das irresponsáveis recusas começa a ficar claro: pelo menos 90 mil mortes poderiam ter sido evitadas se o presidente tivesse comprado as vacinas na hora certa.
O cálculo de vidas perdidas foi feito com um modelo matemático criado por pesquisadores da USP, do Instituto Butantan e da FGV que leva em consideração variáveis como eficácia, cobertura e velocidade de vacinação, além de número de casos e óbitos já registrados. A fórmula está em um artigo, ainda inédito, que foi submetido à revista científica “Theoretical Biology and Medical Modelling” e está em revisão.
No cálculo, feito no final do ano passado – portanto, antes da segunda onda e do surgimento das novas variantes do coronavírus –, eles estimaram em mais de 40 mil as vidas perdidas pelo primeiro mês de atraso na vacinação por causa da recusa do governo. Agora, pedimos a um dos autores, Eduardo Massad, médico e professor da Escola de Matemática Aplicada da Fundação Getúlio Vargas, a FGV, que atualizasse a conta, levando em consideração o cenário atual. E o resultado é ainda pior: “pelo menos 90 mil óbitos poderiam ter sido evitados até o final de 2021 se as ofertas da Pfizer e do Butantan tivessem sido aceitas”, ele me falou.
No segundo semestre do ano passado, o presidente da Pfizer, Albert Bourla, enviou uma carta a Bolsonaro em que quase implora para que o presidente aceite a oferta de 70 milhões de doses. “Quero fazer todos os esforços possíveis para garantir que doses de nossa futura vacina sejam reservadas para a população brasileira, porém celeridade é crucial devido à alta demanda de outros países e ao número limitado de doses em 2020”, ele escreveu.
Bourla afirma no documento que sua equipe havia se reunido com representantes dos Ministérios da Saúde e da Economia e da Embaixada do Brasil nos Estados Unidos para apresentar a proposta. “Sabendo que o tempo é essencial, minha equipe está interessada em acelerar as discussões sobre uma possível aquisição e pronta para se reunir com Vossa Excelência ou representantes do Governo Brasileiro o mais rapidamente possível”, disse o executivo. Mas não recebeu sequer uma resposta.
Na época, Bolsonaro negou qualquer acordo, criticando as cláusulas do contrato com o laboratório. “Lá na Pfizer, está bem claro lá no contrato: ‘nós não nos responsabilizamos por qualquer efeito colateral’. Se você virar um jacaré, é problema seu, se você virar super-homem, se nascer barba em alguma mulher aí, ou algum homem começar a falar fino, eles não têm nada a ver com isso”.
Já o Instituto Butantan fez diferentes ofertas. A última delas prometia o fornecimento de 100 milhões de doses da Coronavac a partir de dezembro.
Em outubro, o então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, em uma reunião com governadores, chegou a anunciar o investimento na Coronavac. Mas foi desautorizado na sequência pelo presidente Jair Bolsonaro, que tomou a decisão de não comprar a “vacina chinesa”.
A VACINA CHINESA DE JOÃO DORIA
– Para o meu Governo, qualquer vacina, antes de ser disponibilizada à população, deverá ser COMPROVADA CIENTIFICAMENTE PELO MINISTÉRIO DA SAÚDE e CERTIFICADA PELA ANVISA.
– O povo brasileiro NÃO SERÁ COBAIA DE NINGUÉM. (continua).
— Jair M. Bolsonaro (@jairbolsonaro) October 21, 2020
O contrato com o Butantan só foi assinado no dia 7 de janeiro. Já as negociações para a compra da vacina da Pfizer só foram iniciadas no começo de março. O acordo para a compra de 100 milhões de doses, anunciado no dia 19 daquele mês, previa a entrega de 13,5 milhões de doses entre abril e junho e, das 86,5 milhões de doses restantes, entre julho e setembro. Os termos do acordo eram os mesmos que a Pfizer tinha imposto antes – ou seja, com a recusa, Bolsonaro sequer conseguiu melhores condições. Só atrasou a chegada das doses. Depois, ainda quebrou o contrato ao divulgar o acordo, que tinha uma cláusula de confidencialidade – o que pode vir a nos custar a perda das doses.
Em 14 de abril, o ministro da Saúde Marcelo Queiroga prometeu uma entrega escalonada de 15,5 milhões de doses da vacina da Pfizer entre abril e junho, antecipando a entrega de 2 milhões do total de doses contratadas para o primeiro semestre. O bolsonarismo alardeou que conseguiu “antecipar” a entrega das vacinas para o final de abril – quando, na verdade, elas poderiam estar imunizando brasileiros desde dezembro.
Uma semana depois, o ministro anunciou que a vacinação dos grupos prioritários só terminará de acontecer em setembro – e não mais em maio. Jogou a culpa no atraso da entrega das doses previstas no consórcio Covax Facility. Não mencionou as recusas do chefe.
500 mil mortos em 2021
Eduardo Massad calcula que, se as 170 milhões de doses estivessem disponíveis a partir de dezembro, o Brasil poderia ter começado janeiro vacinando a uma velocidade de 2 milhões de pessoas por dia. Ou seja: estaria aplicando num só dia todas as doses que a Pfizer vai “antecipar” para abril, mas que só devem chegar no braço das pessoas nos primeiros dias de maio. Até essa quarta, 21 de abril, mais de três meses depois de iniciada a vacinação, o Ministério da Saúde registrava 33,4 milhões de doses aplicadas em todo o país. Em média, pouco mais de 300 mil doses por dia.
O pesquisador afirma que os erros do governo são “inúmeros” e “enormes”, mas a recusa das vacinas é o que melhor permite calcular o impacto da política negacionista de Bolsonaro sobre a pandemia. “O fato de a gente não ter 170 milhões de doses para começar o mês de janeiro é um fato claro, sobre o qual eu consigo fazer estimativas, projeções”.
No cálculo original, feito no final do ano passado, os pesquisadores estimaram que o Brasil teria um total de 300 mil mortes até o final de 2021. Este número foi ultrapassado no dia 24 de março – até a publicação desta reportagem, mais de 381 mil pessoas morreram de covid-19. Como o cenário piorou muito, agravado pelas novas variantes, falta de lockdown, e vacinação lenta, a nova estimativa é de que o país feche o ano com 500 mil óbitos. A maior parte das 90 mil pessoas que já morreram e que ainda vão morrer por falta de vacinas está nessa diferença de 200 mil vítimas a mais.
Pior: para Massad, a dimensão do estrago ainda está subestimada. “Nós vamos fechar o mês de abril com 400 mil [mortes]. Ou seja, pode passar, muito, de 500 mil […], e as vacinas só vão começar a chegar para valer no segundo semestre”.
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