Fabiana Moraes

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Entre a cloroquina e o namastê: conheça a direita gratiluz

É um tipo bolsonarista que abriga o médico cloroquiner vegano, o artista consciente e elitista, a deusa New Age olavista, o liberal anti-máscara, etc.

Entre a cloroquina e o namastê: conheça a direita gratiluz

Entre a cloroquina e o namastê: conheça a direita gratiluz

Ilustração: Rodrigo Bento/The Intercept Brasil; Getty Images/iStockphoto

Escrevi há algumas semanas sobre um tipo típico do Brasil bolsonarista: o macho desgovernado, boy que acha bonito ser troglodita, urrar platitudes e postar tudo nas redes. Mas neste país de porteiras abertas para várias boiadas, o MD, é claro, não está sozinho: ele tem a companhia de outra cepa interessantíssima de persona, aquela que aqui chamarei de direita gratiluz, uma personalidade guarda-chuva que abriga outras várias individualidades, a exemplo do médico cloroquiner vegano, o artista consciente e elitista, a deusa New Age olavista, o liberal anti-máscara, etc.

Apesar de algumas sensíveis distinções, são muitas as características que os unem: jamais se pensam como conservadores e/ou retrógrados; não se percebem classistas; se apresentam como defensores da liberdade e do livre-arbítrio e como pessoas cansadas da política, muito “antissistema” e que não estão “nem à direita, nem à esquerda”. Amam a natureza, curtem uma boa vibração astral e não defendem ideologias. Pensam, antes de tudo, no “ser humano” (ainda que, em nome da “liberdade” de não usar máscara, possam infectar alguém com o coronavírus).

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Durante algumas semanas, naveguei por perfis da direita gratiluz no Instagram, Facebook e YouTube. Acompanhei palestras, vi algumas entrevistas, li trechos de livros. Em diversos momentos, senti real inveja das colegas do Intercept que estão investigando, por exemplo, o Cara da Casa de Vidro e os milicianos do Escritório do Crime. Isso porque encontrar sentido nas sinapses de boa parte da DG é quase um espancamento cerebral: elas reúnem em um mesmo balaio o arcanjo Miguel, o poder do gengibre, os espíritos obsessivos em Brasília, a gratidão, o amor, Deus, o xamanismo de boutique, a filosofia quântica, a holística, a bioenergética, o Mal (geralmente, o “Comunismo”), o Bem (geralmente, a Família e a Ética), a barra de access, a trilha na mata, o retiro, a respiração profunda, a “medicina transfeminista”, o poder dos cristais, os Espíritos, o Exu Veludo.

Há também nesse balaio um tanto de arrogância e de superioridade moral por parte de gurus e seguidores.

Navegando nessa deep web que por pouco não queimou meu computador, cheguei a um dos representantes desse nicho, o escritor, terapeuta e médium Robson Pinheiro, autor, entre outras obras, da trilogia “A política das sombras”, composta pelos livros “O Golpe”, “A quadrilha: o Foro de São Paulo” e “O partido”. Lançada em 2016, no mesmo ano do impeachment de Dilma Rousseff (informação que consta no material sobre os livros na internet), a trilogia é bastante famosa entre os seguidores de Pinheiro.

Entre a cloroquina e o namastê: conheça a direita gratiluz

O terapeuta e médium Robson Pinheiro se dirige em seus livros e palestras aos “homens de bem”.

Foro: Reprodução

Ele e Marcos Leão são os coordenadores do projeto chamado Guardiões da Humanidade, espaço no qual você pode fazer uma iniciação cósmica e se  preparar para trabalhar com os Agentes da Justiça Divina: para isso, basta se inscrever gratuitamente no curso e, ao indicar amigos para realizar a modalidade Premium, você passa a ser remunerado – sim, é o velho esquema da pirâmide.  “Este é um chamado para os homens de bem”, diz Pinheiro, em um vídeo de longos 16 minutos nos quais, antes de nos convidar para ganharmos uma grana enquanto alcançamos a plenitude do ser, ele critica o consumismo, o capitalismo e a vida moderna.

Além de “homens de bem”, outros termos também comuns à cavalaria conservadora bolsonarista e à grã-ordem lavajatista aparecem em falas do médium que escreve através do espírito de Angelo Inácio e de outros desencarnados mais célebres, como o ex-presidente Tancredo Neves (1910-1985) e o jornalista José do Patrocínio (1853-1905).

No canal que mantém no YouTube, com 139 mil inscritos, Pinheiro, poucos dias antes do primeiro turno das eleições presidenciais de 2018, fez um pronunciamento sobre a importância daquele momento, sempre pontuando que o voto é secreto e que cabia a cada uma e cada um votar “de acordo com sua consciência”. Com a voz pausada, ele declarou: “Nossa pátria é o Planeta Terra e nosso partido é o Brasil”. A frase, você lembra, é similar àquela que o então candidato Jair Bolsonaro bradava aos quatro cantos. O chamamento, é claro, foi captado: “Quem leu a Trilogia não tem dúvida em quem votar!”, diz um seguidor nos comentários; “GRATIDÃO! ROBSON! O BRASIL NUNCA MAIS SERÁ O MESMO! ”, diz, em maiúsculas e emojis, uma fã do médium; “OS ESPÍRITOS VÃO INTERFERIR NA PROGRAMAÇÃO FRAUDULENTA QUE JÁ ESTÁ COMPROVADA?”, preocupa-se uma terceira seguidora, repercutindo a teoria conspiratória ali espraiada por Bolsonaro.

(Os espíritos, infelizmente, estavam de folga naquele domingo).

No Instagram, o perfil (aberto) da médica generalista Marcela Moreira é outro bom exemplo do curioso mix da direita gratiluz. Lá, onde um post fala sobre elementos como a espiritualidade, a medicina e o feminino, a profissional faz campanha pelo tratamento precoce contra covid-19 (como se sabe, uma ficção exposta pelos próprios fabricantes de remédios usados no tal kit). Ela também chama atenção, nos seus Stories, para que nós, mulheres, ou melhor, deusas, não nos desconectemos de nossa energia YIN e propõe o “resgate de valores e conhecimentos esquecidos que auxiliam no desenvolvimento de um ser humano mais íntegro e conectado com sua natural essência”.

Estes “valores” esquecidos são bastante específicos e possuem na verdade uma relação com uma moral de sabor anacrônico, não com o que se vende como espiritualidade: é o “verdadeiro” papel do homem, o “verdadeiro” papel da mulher, a formação de uma “real” família. Um dos culpados pela destruição desse ecossistema, segundo a profissional, seria o feminismo. “Se o movimento fosse de elevação moral, espiritual das mulheres, dos homens, das crianças, de todos em geral, eu de fato apoiaria. Mas não é isso que acontece na realidade. O feminismo não auxilia as mulheres nem os homens a serem pessoas mais maduras espiritualmente e moralmente. Na verdade, o feminismo retira das mulheres os seus símbolos femininos, que são naturais delas próprias e as tornam mais masculinizadas. O mesmo acontece com os homens. Se tornam mais feminilizados.” Sim, apesar de médica, da educação formal superior, a profissional acredita em uma “essência” (uma verdade) relacionada à biologia, descartando assim a própria história e as mudanças culturais à nossa volta como formadoras de comportamentos e novas dinâmicas. Além disso, entende o feminismo como uma só entidade, sem diferenciações, sem geografias, sem cor e sem classe.

Moreira diz que há diferenças entre ser de direita e ser conservadora: no último caso, onde ela se localiza, o que vale é a salvar a humanidade de si mesma. “Se nós não tivermos os bons costumes que abafam a nossa pequenez inerente aos imaturos (grande maioria), a humanidade se auto-extermina. É a manutenção das virtudes que freia a pequenez espiritual e moral do ser humano, que na verdade está sendo destruída por movimentos modernos.”

Curiosamente, na mesma rede na qual posta sobre os “bons valores”, a médica repostou uma tuitada de Olavo de Carvalho na qual ele sugere que a “putada comunoglobalista” não hesitaria em matar metade do Brasil com o intuito de chamar Bolsonaro de genocida. Vale lembrar que fazem parte dos bons valores de Olavo chamar mulheres de “vagabunda”, “puta” e afins – foi assim que ele tratou a competente jornalista Letícia Duarte, por exemplo. Estaria o astrólogo apenas sendo “essencialmente” masculino?

Vale se conectar com a energia YIN das nossas deusas interiores e parar para pensar.

Antropóloga que estuda grupos bolsonaristas nas redes desde 2018, a pesquisadora Letícia Cesarino, da Universidade Federal de Santa Catarina, já observou essas identidades formadas por características (aparentemente) tão distintas entre si. “Isso tem sido percebido não só no Brasil, mas também nos EUA e é o que chamamos da metáfora da ferradura. Nela, as duas pontas do anti-establishment, ou do antissistema, vão tão longe que acabam se encontrando, elas se dobram e se aproximam. Não é exatamente uma convergência ideológica entre direita e esquerda, mas antes uma ressonância”, diz ela, alertando que entender práticas “zen” como necessariamente progressistas é enganoso. “Lembra da música California Uber Alles, dos Dead Kennedys? Eles tematizam ali, no final dos anos 70, os hippies nazistas de então.”

Nesse bolo holístico-fascista, o conspiracionismo de extrema direita do movimento norte-americano QAnon é central na discussão, lembra Cesarino (ela falou sobre o tema no ótimo podcast Roteirices). Um dos representantes mais conhecidos desses extremistas que acreditam em um satã que só será neutralizado pelos poderes de Trump é Jake Angeli, que se intitula como “Xamã Qanon”. Ele é o macho desgovernado que foi visto vestido de bisão e invadindo, em janeiro deste ano, o Capitólio em Washington. As práticas do QAnon evocam o termo “conspirituality”, uma mistura de conspiracionismo e espiritualidade que vem sendo debatida nos EUA e rendeu projetos como um interessantíssimo podcast (em inglês).

FILE - In this Nov. 5, 2020, file photo, Jacob Anthony Chansley, who also goes by the name Jake Angeli, a Qanon believer speaks to a crowd of President Donald Trump supporters outside of the Maricopa County Recorder's Office where votes in the general election are being counted, in Phoenix. In its annual report set to be released Monday, Feb. 1, 2021, the Southern Poverty Law Center said it identified 838 active hate groups operating across the U.S. in 2020. (AP Photo/Dario Lopez-Mills, File)

Jake Angeli, o macho desgovernado vestido de bisão que invadiu o Capitólio, se intitula como “Xamã Qanon”, numa mistura de conspiracionismo e espiritualidade.

Foto: Dario Lopez-Mills/AP Photo, File

O fato é que essas combinações de personalidades foram turbinadas mais do que nunca pela própria infraestrutura da internet: nelas, percebe Cesarino, autora do artigo “Identidade e representação no bolsonarismo, o algoritmo desmembra as pessoas em pequenas partes e recombina em identidades não necessariamente coerentes, mas sempre híbridas. “É o papel pesado da digitalização que vai construir identidades a partir de traços de consumo para gerar padrões de recomendação para anunciantes. Nessa mesma lógica, está a política e a espiritualidade. É o próprio colapso do contexto.”

A mão pesada da digitalização vai capturar, vejam só, mesmo aquelas e aqueles que, em nome do juízo e da espiritualidade, procuram se manter “fora” da internet. É o caso do artista e palestrante Eduardo Marinho, que possui uma significativa base de fãs e seguidores nas plataformas: um de seus perfis no Instagram, o @eduardomarinho.viacelestina (mantido por um apoiador), conta hoje com 386 mil seguidores, enquanto o documentário “Observar e Aprender” (2016) tem mais de 3,3 milhões de visualizações no YouTube.

Marinho vem há décadas circulando pelo país e falando, seja nas ruas, nos bares ou em auditórios, sobre desigualdade social, a crueldade de nossa elite política e econômica, os resultados desastrosos de uma sociedade que fomenta e privilegia a competição. São críticas extremamente necessárias e também bem comuns no campo da esquerda. Articuladas em nítida separação da esfera política e centradas na ação individual, no entanto, elas  vão se encontrar com o discurso perpetrado por bolsonaristas e afins: se no fim, “é tudo ladrão”, vamos quase todos em busca de um Messias. E estamos sentindo na pele que essa estratégia não dá certo.

Entre a cloroquina e o namastê: conheça a direita gratiluz

“Marinho diz que queria ‘entender o código’ das pessoas pobres.”

Foro: Reprodução/Instagram

Várias falas de Marinho apontam para isso: ele sugere sempre que a solução dos problemas não está no sistema político (“podre”), critica a medicina (“é patrocinada pelos laboratórios”, diz no documentário citado), critica o pensamento intelectual (“teórico não gosta de ir para a rua”, no mesmo doc). Assim, joga fora não só a água suja da banheira, mas também o bebê dentro dela, contribuindo para o discurso anti-universidade e anti-ciência que, por exemplo, foi propalado pelo infelizmente inesquecível ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub.

Assim, Marinho também fragiliza a universidade, que pode ser um caminho para amenizar a desigualdade social que ele critica (como professora de uma no interior de Pernambuco, vejo esse fenômeno acontecer constantemente). Também não aponta que uma maior participação de grupos que estiveram historicamente afastados da política institucional – mulheres, pessoas negras, pessoas indígenas, pessoas transsexuais, etc – seja uma das formas de modificá-la por dentro, em vez de simplesmente implodi-la. Foi esse sentimento de destruição que, no fim, nos trouxe Bolsonaro, e não há fractal, chá de hibisco, cordel ou jejum detox que neguem isso.

A romantização da pobreza e o elitismo também são marcas das celebradas falas de Marinho. Em uma aparição no programa Pânico, da Jovem Pan (forte apoiadora do presidente Bolsonaro), ele discorre sobre sua experiência de abandonar a classe média para viver nas ruas. “Eu queria não ter nada. Eu queria me aproximar dos pobres e não conseguia. Deles, eu só via olhar de igualdade quando estava com aspecto mendigo também”, diz em um trecho.

Em uma animação baseada em uma palestra do artista, publicada em dezembro de 2019 no perfil @eduardomarinho.viacelestina, ele explica que a pobreza (“estas pessoas”, como o artista se refere), por falta de acesso a uma melhor educação, tem “bloqueada” a capacidade da racionalidade. No lugar desta, a população de menor renda tem desenvolvida a sua “intuição”. Aqui, o homem que abandonou uma vida de conforto para construir uma existência na pobreza anti-sistema fomenta uma clássica hierarquização na qual pessoas pobres – e também mulheres – são conduzidas não também por suas capacidades racionais, mas pela emoção. Esse é um argumento classista, machista e racista já visto no discurso de nomes como Paulo Guedes, para quem filho de empregada doméstica e de porteiro não devia entrar na universidade. No artigo “A emoção é negra, a razão é helênica?, o pesquisador Deivison Faustino analisa justamente essa questão pelo viés racial.

A questão é que o charme e o apelo de ser contra-tudo-que-está aí não nos oferecem alternativas palpáveis de ação e, sem elas, continua tudo-o-que-está-aí. A maioria da população brasileira, que vive na pobreza, gostaria de ter à mão alguns “confortos” possíveis à classe média brasileira da qual Marinho preferiu sair – e não estou falando aqui de carros, geladeiras e processadores, mas de saneamento básico, saúde e segurança, por exemplo.

“Essa atitude anti-sistema repete que a ‘verdade está em mim”, no individual. A ‘verdade está no meu grupo’, está naquilo que a mídia não mostra. Boa parte do apelo desses influenciadores está em atrair as pessoas com esse discurso, esse populismo, que é o que vai atrair as pessoas também para Bolsonaro. É um discurso palpável e atrativo para as pessoas”, diz Letícia Cesarino.

A nota engraçada é que parte da direita nazi-new age já foi mapeada também nas internets da vida: o perfil “Eu não aguento mais o jovem místico” vem fazendo uma compilação interessante, baseada no humor, desse mimo que a contemporaneidade nos deu. A eles, por terem garantido pelo menos umas risadas durante essa árdua pesquisa, eu só posso dizer uma coisa: gratiluz.

*Todos os perfis citados nesta coluna foram contatados para entrevistas, mas apenas a médica Marcela Moreira enviou suas respostas até o fechamento da coluna.

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