Na semana em que o Brasil chegou perto de 400 mil pessoas mortas por covid-19 e a CPI da Covid foi aberta para investigar a conduta do governo no enfrentamento à pandemia, o Conselho Federal de Medicina celebrava uma conquista: desde 2020, o CFM barrou na justiça mais de 200 ações que permitiriam a contratação de médicos formados no exterior. No pior momento da pandemia, a entidade escolheu comemorar o impedimento de que mais profissionais de saúde pudessem trabalhar no Brasil.
Manifestações como esta, publicada em 27 de abril no Twitter, são comuns em todas as redes sociais da entidade. Elas demonstram quais discussões mobilizam o CFM durante a maior crise sanitária da história do Brasil.
Mais de 200 ações individuais e outras 10 ações coletivas que pretendiam viabilizar a contratação de pessoas com diplomas obtidos no exterior sem o Revalida foram barradas na Justiça pelo CFM, desde o início de 2020. pic.twitter.com/XcuEiqop3g
— CFM (@medicina_cfm) April 27, 2021
Para clinicar no país, profissionais formados no exterior, estrangeiros ou não, precisam fazer uma prova, o Revalida. A última vez que o governo revalidou diplomas foi em 2017.
No ano passado, a primeira etapa do exame foi realizada, e 2.402 médicos foram aprovados. A segunda etapa, no entanto, não avançou. Sem poder regularizar seus diplomas, os profissionais formados no exterior esperam pela oportunidade de trabalhar.
Dada a gravidade da pandemia e o colapso do sistema de saúde, ações emergenciais individuais e coletivas foram movidas na justiça pedindo a desobrigação do Revalida e a contratação desses médicos.
O Intercept contatou todas as unidades do Ministério Público Federal no Brasil e mapeou casos assim no Amazonas, no Pará, no Acre, no Sergipe e em Santa Catarina, além de um pedido coletivo de governadores do Nordeste.
O Inep, responsável pela aplicação da prova, disse ao que está “engajado na realização da segunda etapa do exame” e alegou que a pandemia dificulta a execução do Revalida, que tradicionalmente acontece em ambulatórios hospitalares.
A autarquia federal vinculada ao Ministério da Educação não deu prazo para o novo exame, mas informou que o “edital da segunda etapa do Revalida será divulgado tão logo sejam definidos os dias e locais de prova que atendam aos protocolos de segurança sanitária emitidos pelo Ministério da Saúde”. O Inep ainda acrescentou que cogitou fazer o exame até em hotéis para evitar aglomerações em hospitais.
Pressão política
O CFM mobilizou, em abril deste ano, médicos para vetar qualquer flexibilização no Revalida. “Dois PLs que tramitam na Câmara dos Deputados podem permitir que portadores de diplomas obtidos no exterior possam atuar como médicos no Brasil SEM PASSAREM NO REVALIDA”, diz o texto de uma plataforma online criada para disparo direto de mensagens para contas de deputados federais.
Em 2019, o órgão já havia feito o mesmo para vetar trechos da Medida Provisória 890 – um deles, sobre a flexibilização do Revalida. E aí até a sociedade civil foi chamada a participar.
“Os 475 mil médicos inscritos nos CRMs [conselhos regionais de medicina] receberam nesta segunda-feira (21) um e-mail [do CFM] pedindo que acessem uma plataforma especialmente criada para permitir o envio de mensagens aos políticos”, diz um texto publicado no site da Sociedade Brasileira de Pediatria em 22 de outubro de 2019.
Quem se cadastrou na plataforma, médico ou não podia enviar a seguinte mensagem ao presidente Jair Bolsonaro, a fim de que se manifestasse “A FAVOR do veto que impede a realização do Revalida em escolas privadas, mantendo esse processo sob responsabilidade do Estado”.
O Conselho Federal de Medicina disse que norteia as suas posições segundo os critérios do Revalida e da lei 13.959/2019. Sancionada por Bolsonaro, a regra instituiu o Revalida “com a finalidade de incrementar a prestação de serviços médicos no território nacional e garantir a regularidade da revalidação de diplomas médicos expedidos por instituição de educação superior estrangeira e o acesso a ela”.
Em condição de anonimato, um médico membro da entidade desabafou com a reportagem. “Se eles estivessem preocupados com quem frequenta o SUS, já tinham se posicionado para que o exame de revalidação acontecesse. Mas a campanha é para não revalidar, e isso diz tudo”, falou.
Questionado sobre a relação da instituição com o Congresso Nacional, o CFM afirmou que “acompanha a tramitação de projetos de interesse da medicina, da saúde e dos pacientes”.
Em 8 de outubro de 2019, a médica e conselheira do CFM pelo estado do Piauí, Yascara Pinheiro Lages Pinto, usou o Facebook para enaltecer a articulação do conselho no Congresso Nacional. Já naquele ano, a entidade tentava barrar tanto o trabalho de médicos sem registro no Brasil quanto projetos de lei que apontavam novos caminhos para a revalidação do diploma.
Ela chegou a se encontrar com a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, para debater o tema. Em outra ocasião, no final daquele ano, esteve com a senadora e advogada Soraya Thronicke, do PSL do Mato Grosso do Sul, para “impedir atuação de quem não faz revalidação de diploma para obter CRM [o registro profissional da categoria médica no Brasil]”.
Pinto é defensora do tratamento precoce e da autonomia médica, termo que vem sendo usado pelo conselho para defender profissionais que receitam remédios comprovadamente ineficazes para a covid-19. Por liberar médicos para prescrever remédios sem eficácia, o CFM pode ser investigado pela CPI da Covid.
Sobre o tratamento precoce contra a covid-19, o Conselho Federal de Medicina segue defendendo a prescrição, que não é recomendada pela Organização Mundial de Saúde, a OMS.
“Até o momento, não há estudos científicos, com metodologia inconteste, que comprovem o efeito de medicamentos na fase inicial da covid-19, antes da manifestação de sintomas graves da doença”, afirmou à reportagem.
Baseado nisso e no parecer 04/2020 da instituição, o CFM “entende que o médico na ponta e o paciente, mediante Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, terem autonomia, de forma conjunta, para decidirem qual a melhor opção terapêutica para tratar os casos diagnosticados”.
“É impressionante como as lideranças do CFM gastam tempo discutindo como defender abertamente o tratamento precoce, que não tem base científica, mas não agem para ajudar na pandemia. É um ultraje”, disse o médico, ainda em condição de anonimato.
Em seu site, o CFM também deixa claras suas prioridades. Em um levantamento realizado pelo Intercept, entre 2020 e 2021, foram publicados 50 posts sobre o Revalida e sete sobre a liberdade para receitar cloroquina e hidroxicloroquina. No mesmo período, não houve nenhum post em defesa do lockdown.
“Existe um trabalho muito forte da cúpula do CFM para barrar tudo, como posicionamentos contrários ao governo. O CFM sempre foi muito conservador, nunca foi a favor de políticas públicas, de minorias, da defesa do SUS. Mas nunca tivemos um CFM fascista como agora”, disse outro médico integrante da entidade. À reportagem, ele pediu para não ser identificado.
Em 2019, o site da instituição noticiou: “a pedido do CFM, presidente Jair Bolsonaro veta realização do Revalida em faculdades privadas”.
Em uma live promovida em janeiro de 2020 pelo Conselho Regional de Medicina da Bahia, o Cremeb, o então vice-presidente da entidade e conselheiro do CFM Júlio Cesar Vieira Braga mostrou a capilaridade das ações do CFM para impedir outras saídas à revalidação do diploma, em universidades, procuradorias e entidades como a Associação Brasileira de Educação Médica, a Abem.
Alternativas são barradas
O Conselho Federal de Medicina defende o Revalida, prova realizada pelo Inep, como única opção para profissionais formados no exterior.
Em uma parceria entre os Ministérios da Educação e da Saúde, o Revalida foi criado em 2011 para “simplificar” o processo de aferição da equivalência curricular e a aptidão para o exercício profissional da medicina no Brasil daqueles que se formam no exterior.
Até aquele momento, as universidades públicas eram as únicas aptas a revalidar diplomas. Cada instituição elaborava a própria prova e escolhia a banca. O processo para participar do exame também era diferente. Do candidato, exigia-se mais documentos, que mitigava possíveis fraudes, segundo o Instituto Nacional de Convalidação do Ensino Estrangeiro, o Icespe.
Hoje, o candidato precisa estar em situação legal no país, ter CPF, enviar imagem do diploma (frente e verso) e ter o diploma expedido e autenticado por universidade estrangeira reconhecida no país de origem, de acordo com o Gov.br.
Segundo um levantamento do Icespe, até 2012, eram 88 instituições aptas a realizar o exame, mas apenas em quatro ele era oferecido anualmente – duas no Nordeste: Universidade Federal do Rio Grande do Norte e Universidade Federal da Paraíba; uma no Centro-Oeste: Universidade Federal do Mato Grosso; e uma no Sudeste: Universidade Federal de Minas Gerais.
“As universidades se mantiveram inertes durante muito tempo, e o Inep apareceu”, disse o advogado Emídio Ferrão, presidente do Icespe. “[O Revalida] foi uma boa tentativa de agilizar, porque a revalidação da prova precisa ser feita, mas a ineficiência do serviço público não permitiu”, analisou.
Desde então, o Inep realizou sete edições do Revalida, ou uma prova anual, até 2017. No ano passado, aplicou a primeira fase do exame de 2020.
De acordo com um documento judicial obtido pelo Intercept, o Inep afirmou que, na prova de 2017, houve muita judicialização de participantes sem diploma. Por isso, o resultado do Revalida daquele ano só foi publicado dois anos depois.
No mesmo documento, o Inep menciona a escalada de inscrições para justificar atrasos. Entre 2011 e 2017, o número de inscritos saltou 1.183%, de 677 para 8.015 inscritos. Foram 24.327 inscrições no total – alguns tentaram realizar a prova sete vezes, segundo o Inep. Desses, 18,4% foram aprovados.
“Com isso, o Inep deparou-se com o desafio de atender ao crescente quantitativo de participantes em um prazo adequado à finalidade de criação do Revalida, considerando os recursos humanos disponíveis”, lê-se no documento.
“O Revalida é um teste e uma das maneiras de revalidar o diploma, não a única. E essa é a minha tarefa árdua”, explicou Ferrão. Com mais de três décadas de experiência em direito público, ele crê que as universidades poderiam retomar a revalidação.
Por isso, o Icespe fez uma proposta a elas durante o terceiro trimestre do ano passado: que cada uma realizasse sua prova de revalidação de diploma, com uma banca de profissionais selecionados por elas e que os custos ficassem a cargo com o próprio Icespe. Segundo Ferrão, a entidade é mantida por mais de 1.300 membros associados e recebe doações.
Dezoito universidades demonstraram interesse, mas depois alegaram ter parceria com o Revalida.
“Sem opções de trabalhar, o candidato vai judicializar. É isso se torna um ciclo sem fim”, avaliou o presidente do Icespe. Depois da proposta da entidade de Ferrão, o CFM e o Inep ajuizaram ações questionando a legitimidade do Icespe para realizar provas em universidades federais.
Mais uma vez, a revalidação do diploma encalhou. Mais uma vitória do Conselho Federal de Medicina nesta pandemia.
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