Negros, mulheres e trans puxaram votos para a esquerda em 2020, mas ficam de fora de articulações de Lula

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Negros, mulheres e trans puxaram votos para a esquerda em 2020, mas ficam de fora de articulações de Lula

Ex-presidente foi a Brasília para reuniões com políticos, mas não reservou espaço para vozes consagradas nas urnas no ano passado.

Negros, mulheres e trans puxaram votos para a esquerda em 2020, mas ficam de fora de articulações de Lula

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva passou a semana passada em Brasília. Na capital, iniciou articulações entre o PT, outros partidos de esquerda e antigos aliados do centro e da direita. Em conversas fechadas e mantidas em sigilo até antes de ocorrerem, Lula se sentou com os deputados federais pelo Rio de Janeiro Marcelo Freixo, do Psol, e Alessandro Molon, do PSB.

Também esteve com Fabiano Contarato, senador pela Rede do Espírito Santo, que espera filiar ao PT e fazer candidato a governador no ano que vem. Tomou cafezinhos com Gilberto Kassab, do PSD, e o ex-presidente José Sarney, do MDB, que têm em comum o talento de amoldar suas convicções para se encaixarem e terem poder em qualquer que seja o governo do momento.

Lula cumpriu seus compromissos em Brasília acompanhado pela presidente do PT, Gleisi Hoffmann, o ex-ministro e ex-candidato a presidente Fernando Haddad e os deputados federais petistas José Guimarães, do Ceará, e Paulo Teixeira, de São Paulo. As pessoas nominadas nestes dois últimos parágrafos têm algo em comum: são todas brancas. E, à exceção de Gleisi, todos homens.

O volume recorde de votos em pessoas negras, mulheres e transexuais foi possivelmente a melhor notícia para a esquerda em 2020, mas os protagonistas dessa renovação não têm sido chamados para sentar à mesa para traçar a rota da principal candidatura de oposição para a Presidência da República em 2022.

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“Nosso Biden brasileiro é um senhor de [quase] 80 anos que tem lastro político gigante, uma bagagem política enorme e que tem lá os seus favoritos”, disse a vereadora carioca Tainá de Paula, do PT, fazendo referência ao presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, que uniu correntes antagônicas do Partido Democrata para se eleger presidente. “[Para] Furar a bolha do Lula, estar na mesa com Lula, só se você já for conhecido dele ou de alguém que tenha acesso a ele”.

Candidaturas de transexuais tiveram votação recorde e conquistaram 25 cadeiras nas câmaras de 22 cidades – quatro vezes mais que em 2016. Pessoas negras passaram a ser 44% dos vereadores das capitais brasileiras. Mulheres negras tiveram votação expressiva e conquistaram mandatos até em cidades conservadoras como Curitiba. A ampliação do espaço para essas vozes em parlamentos Brasil afora foi celebrada como a renovação da esquerda.

É o caso de Tainá. Eleita ano passado com 24.881 votos, nona maior votação para a Câmara do Rio de Janeiro, ela é negra, bissexual, foi criada na Praça Seca, bairro pobre da zona oeste, e conseguiu se formar arquiteta e urbanista. A eleição de Tainá foi saudada como a renovação de um partido que envelhece e encolhe no estado. Mas nem isso bastou para que fosse chamada pela cúpula petista para opinar nos rumos da candidatura presidencial. É algo que ela tem em comum com todas as outras pessoas entrevistadas para esta reportagem, que me disseram não haver espaço para sejam ouvidas, opinem e ajudem a definir os rumos de seus partidos.

Para Tainá, a exclusão das lideranças negras, feministas e LGBTQIA+ no debate é estrutural, e algo que partidos de esquerda e direita têm em comum. “A misoginia, o racismo e as limitações econômicas fazem com pessoas que ainda não estão no mainstream político tenham mais dificuldade para entrar no tabuleiro”, ela analisou.

Lula e o ex-presidente José Sarney, senador pelo MDB, conversaram sobre a eleição de 2022 na semana passada, em   Brasília.

Foto: Divulgação/Ricardo Sutckert/PT

“Sim, sinto falta da voz trans [nas conversas que definem a candidatura presidencial]. São conversas que dão a tônica desse processo que está se iniciando. O olhar de uma pessoa trans, de uma mulher negra, é fundamental”, disse a vereadora trans Isabelly Carvalho, do PT, eleita ano passado em Limeira, interior de São Paulo.

“Temos lutado para que nossos mandatos consigam ser uma expressão política dessa renovação, nos conectado diretamente com os movimentos sociais, e esperamos que pela força mesmo a gente consiga se impor nesse processo”, afirmou Matheus Gomes, do Psol, integrante da bancada de vereadores negros de Porto Alegre. Ambos relataram haver “aproximações” com deputados estaduais e federais de seus partidos, mas nunca uma discussão sobre candidaturas em 2022.

Gomes reconhece a importância histórica das antigas lideranças partidárias de esquerda, mas cobra uma renovação que ocorra de dentro para fora. “No debate intelectual do Brasil, hoje, os livros mais vendidos, as músicas mais ouvidas, o que está representando o sentimento da nova geração é uma rebeldia de homens e mulheres, da população LGBTQIA+, da população de periferia contra a estrutura racista do nosso país. Então ou a esquerda se conecta com esse sentimento ou não vai ter condição de superar de fato as ideias reacionárias que se instalaram no país”, disse.

Restrito à cúpula

No começo de abril, Lula escolheu quadros históricos do PT para organizar os trabalhos eleitorais da sigla. A missão do grupo é buscar nomes e alianças nos estados e buscar formas de aumentar a bancada de deputados do partido. Além de dar votos e força no Congresso, isso engorda os fundos partidário e eleitoral da legenda.

O ex-presidente escalou apenas nomes da executiva do PT, ou seja, do alto escalão do partido, como Romênio Pereira, Joaquim Soriano, Gleide Andrade, Jilmar Tatto, Gleisi Hoffmann, José Guimarães, Paulo Teixeira e Fernando Haddad. Os últimos quatro estiveram em boa parte das agendas de Lula por Brasília junto com nomes do centrão da política como PSD, PL e MDB.

“Foi muito importante para mim, pessoalmente. [E] acho que para o PT é muito importante restabelecer as conversações com as forças políticas desse país. Fazia tempo que não tinha reuniões com partidos políticos, [e em Brasília] conversei com vários”, disse Lula em um vídeo divulgado pelo Twitter ao final da agenda na capital federal.

“A gente precisa voltar a conversar com todo mundo. Conversar com empresários, conversar com sindicatos, conversar com os trabalhadores, conversar com os partidos políticos, para que a gente possa ter certeza que estamos trabalhando para recuperar a democracia no nosso país e voltarmos a ter um país feliz onde as pessoas todas possam viver em paz”, disse Lula, falando ao lado de Gleisi. Na lista de “conversas necessárias” do ex-presidente, chama atenção a falta de pessoas como Tainá de Paula ou Isabelly Carvalho.

Segundo o ex-presidente, as conversas em Brasília giraram em torno de vacinação contra a covid-19, renda, crédito para pequenas empresas e políticas para criação de empregos. Mas o que ele não contou é que também conversou sobre nomes e quadros para eleição de 2022.

Entre os arranjos que começam a tomar forma há um que envolve Marcelo Freixo. A esperança é de que haja uma união na esquerda para que o deputado pelo Psol seja candidato ao governo do estado, com apoio de nomes de centro, como o ex-presidente da Câmara, Rodrigo Maia, ainda no DEM, mas de saída para o PSD. Oficialmente, o presidente do Psol, Juliano Medeiros, diz que o tema só será tratado no partido de maneira definitiva na convenção de setembro deste ano.

No arranjo da esquerda, considera-se também que Alessandro Molon disputará uma cadeira no Senado. O objetivo é a um só tempo retomar um terreno para a esquerda e sufocar os Bolsonaro em seu ninho, o Rio. E, por tabela, derrotar ramificações do bolsonarismo, como milicianos, evangélicos de extrema direita e militares.

O desejo é que a frente fluminense sirva de palanque para candidaturas nacionais – ou seja, mais de uma – contra Jair Bolsonaro em 2022. Assim, a importância do encontro mereceu a divulgação de uma foto feita pelo fotógrafo pessoal de Lula, Ricardo Stuckert. Sentados à cabeceira de uma mesa de vidro, Freixo e Lula se cumprimentam. Em volta deles, três homens e duas mulheres – todos brancos – assistem.

Freixo e Lula se cumprimentam durante encontro em Brasília: ausência de negros à mesa incomodou novas lideranças da esquerda.

“Talvez por ser uma movimentação inicial não pensaram muito, talvez tenha sido uma foto espontânea. Mas tem coisas que a sociedade não aceita mais: não ter mulher, não ter negro”, me disse Carol Dartora, do PT, a primeira mulher negra a se eleger vereadora na terra natal da Lava Jato, Curitiba.

“Se o partido não souber lidar com isso, vai arriscar algo que não precisaria. Bastaria um olhar um pouco mais sensível, um pouco mais inteligente, sobre o desejo da sociedade brasileira”, desabafou Dartora. Antes mesmo de tomar posse, ela recebeu uma ameaça de morte. Não é caso isolado: outras vereadoras negras e transexuais também estão sendo ameaçadas por grupos neonazistas.

Marielle, presente?

Lula aproveitou a tour por Brasília para formalizar o convite para que o senador Fabiano Contarato, atualmente na Rede, se filie ao PT. Se efetivada, a mudança abrirá espaço para negociação de sua candidatura ao governo estadual. O senador é o candidato com que o PT sonha para disputar o governo do Espírito Santo, atualmente nas mãos de Renato Casagrande, do PSB. O estado é uma das joias do partido de nome socialista, mas que, na verdade, abriga até políticos de direita.

Delegado de polícia, homossexual e progressista, Contarato é a exceção à regra entre a leva de policiais de extrema direita que receberam mandatos políticos em 2018. Um desses é Daniel Silveira, um brucutu cujo grande feito intelectual foi quebrar uma placa em homenagem à vereadora Marielle Franco, assassinada com o motorista Anderson Gomes em março de 2018, durante um comício do então candidato a governador Wilson Witzel, e que foi preso por atentar contra a democracia. O assassinato de Marielle fez multiplicar o alcance das pautas que ela defendia e gerou herdeiras.

Uma das herdeiras políticas de Marielle Franco, a deputada estadual Renata Souza, do Psol fluminense, é direta ao dizer que a discussão sobre os caminhos da esquerda “está nas mãos dos mesmos grupos de sempre” – ou seja, nas de homens brancos. “E esses grupos ignoram, efetivamente, as mulheres pretas que estão aí se consolidando no espaço da política. Isso é muito ruim”, ela falou. “Não somos ouvidas nos debates que definem a política no Rio de Janeiro e no Brasil”.

Outra é Monica Benicio, a arquiteta que era casada com Marielle e foi eleita vereadora no Rio pelo Psol em 2020. “Há que mudar as práticas. Acho ótimo que se fale em nome da Marielle, que se usem blusas, que finquem uma bandeira com o rosto da Marielle na Lua, acho ótimo. Mas é importante também que a gente não perca de vista que as nossas ações precisam transformar a sociedade para que Marielles não sejam assassinadas. Pelo contrário, para que Marielles possam ter seu potencial de vida aplicado para dentro da sociedade com direito de existir. Com garantia e segurança para que existam”, disse.

“Para isso ser colocado em prática, é preciso coragem para abrir mão de determinados privilégios. E isso dói, né? Acho que a gente falar sobre isso é urgente, mas é doloroso. A questão de abrir mão de privilégios hoje é um debate que não é feito”, afirmou Monica.

Curiosamente, é no PDT, cujos representantes não foram chamados às conversas com Lula em Brasília, que uma das vereadoras trans eleitas em 2020 diz ser ouvida a respeito do pleito presidencial. Trata-se de Duda Salabert, que saiu das urnas como a vereadora mais votada na história de Belo Horizonte (37.613 votos) e que, por isso, caiu nas graças do presidenciável Ciro Gomes.

“O meu é um caso de exceção, com certeza. Pela votação, que nos dá esse capital político, e porque eu tento fazer um discurso identitário mostrando que é um debate estruturante na sociedade. Articulo esse debate ligado à moradia, por exemplo”, ela relatou.

Apadrinhada pessoalmente por Ciro, ela pleiteia um assento na executiva do partido, que irá ratificar a provável candidatura presidencial do político cearense, e também já conversa sobre disputar um cargo em Brasília. “A transfobia também existe nos partidos. Quando fui convidada, foi Ciro Gomes, e não o PDT, quem disse que eu teria assento em qualquer instância que eu quisesse no partido”, disse. Atualmente, Salabert é vice-presidente municipal e estadual da legenda.

Alheio a isso, um articulador de Lula na cúpula do PT, que conversou com o Intercept na condição de anonimato, disse estar otimista com o cenário e as conversas travadas em Brasília. A tese brandida no entorno do ex-presidente é a de que Lula representa o partido de maior força política da esquerda na América Latina, tem todas as condições de vencer em 2022 e, assim, irá naturalmente aglutinar outras forças do campo em torno de si.

Horas depois de Lula deixar Brasília, grupo de deputados do Psol lançou manifesto pedindo candidato do partido à presidência.

Questionamos a assessoria do ex-presidente Lula – que funciona à parte da do PT – sobre a falta de vozes de negros, mulheres e transexuais nas conversas para 2020. Ela nos respondeu que “o ex-presidente Lula recuperou seus direitos políticos de forma definitiva há 26 dias e se encontrou em Brasília com lideranças partidárias de vários setores e embaixadores para conversas políticas sobre a situação atual do Brasil”.

“Não houve encontro com movimentos sociais ou sindicais em Brasília, com quem o ex-presidente se reúne constantemente, antes, durante e depois de ser presidente, inclusive quando Lula não tinha direitos políticos, porque eles não ficam em Brasília”, diz a nota da assessoria de Lula. A assessoria do ex-presidente disse ainda que o deputado federal Vicentinho, que é negro e um dos fundadores da Central Única dos Trabalhadores, a CUT, acompanhou a visita de Lula ao embaixador da África do Sul, e que Gleisi Hoffmann esteve em todas as reuniões na capital.

O PT também respondeu com nota, em que afirma ter “atitude diante da sub-representação política e social dos negros, mulheres e LGBT”. “A vitalidade destes movimentos no PT foi confirmada nas eleições municipais do ano passado, quando pela primeira vez os vereadores eleitos do partido declaram-se na maioria negros e pardos e houve crescimento na representação de mulheres e militantes LGBT”, afirma o partido, que diz ainda que “a prioridade” das conversas em Brasília foi tratar “da luta contra a pandemia, pela vacina, do auxílio emergencial de R$ 600 e do impeachment de Bolsonaro”. Não é verdade: as eleições também ocuparam tempo considerável nas conversas.

Já o Psol, a quem fizemos as mesmas perguntas, informou que “não há articulações para 2022″. “Todos os diálogos em curso têm como propósito fortalecer as lutas de 2021, por vacina, volta do auxílio emergencial e impeachment [de Bolsonaro]. E essas conversas são conduzidas pelos membros eleitos das instâncias partidárias”, diz a nota.

O fato é que, além das vozes ouvidas nesta reportagem, há outros insatisfeitos com a restrição dos debates sobre 2022 às cúpulas partidárias. Uma ala do Psol lançou na segunda-feira, 10, à noite, um manifesto pedindo a candidatura do deputado federal Glauber Braga, do Rio, para presidente.

Uma coisa é certa: o Brasil de 2022 será um país muito diferente do de 2002.

 

Correção: 12 de maio, 8h50

Uma versão anterior deste texto trazia um sobrenome incorreto para o deputado federal Glauber Braga, do Psol do Rio. O erro foi corrigido.

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