Ministério da Saúde cede à indústria de alimentos e atrasa combate a doenças crônicas

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Ministério da Saúde cede à indústria de alimentos e atrasa combate a doenças crônicas

Secretário da pasta abre exceção para incluir argumentos de gigantes da alimentação em documento que visa prevenir doenças como hipertensão e diabetes.

Ministério da Saúde cede à indústria de alimentos e atrasa combate a doenças crônicas

Contra as boas práticas que a condução da coisa pública prevê, o secretário de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, Arnaldo Medeiros, atendeu a um pedido da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos, a Abia, e atrasou a divulgação do próximo plano estratégico para combate às doenças crônicas não transmissíveis, elaborado após consulta pública.

A decisão do chefe da Secretaria de Vigilância em Saúde, a SVS, provocou um mal-estar entre funcionários da área técnica, que o acusam de má gestão. Também escreve mais uma página nos registros de interferência das empresas de alimentação em políticas sanitárias.

Depois de sucessivas tentativas barradas pelos técnicos da pasta, a Abia — que representa empresas como BRF, Bunge, Danone, McDonald’s e Nestlé — obteve uma audiência com Medeiros em 4 de março deste ano para tratar da edição de 2021-2030 do “Plano de ações estratégicas para o enfrentamento das doenças crônicas e agravos não transmissíveis no Brasil”.

Na reunião, a associação de empresas afirmou que queria, mas não conseguiu participar da consulta pública sobre o documento. Além disso, criticou a forma como ela foi elaborada. As informações constam na ata do encontro, obtida pela reportagem de O Joio e O Trigo por meio da Lei de Acesso à Informação, a LAI.

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Márcio Maciel, diretor de Assuntos Institucionais e Inteligência Competitiva da Abia, justificou a ausência nas discussões do plano dizendo que “não conseguiram encaminhar sugestões por não se sentirem seguros com o curto prazo estipulado”.

A consulta pública foi aberta inicialmente pelo período compreendido entre 30 de setembro e 29 de outubro do ano passado. Para permitir maior participação de interessados, o tempo de recebimento de contribuições foi estendido até 30 de novembro, perfazendo 62 dias ao todo — que é considerado um longo prazo para práticas do tipo, segundo fontes que conhecem o processo e que falaram em condição de anonimato.

O Ministério da Saúde informou a esta reportagem, em nota enviada pela assessoria de imprensa, que a consulta pública “contou com ampla participação da sociedade”. Contabilizou contribuições vindas de 17 estados e do Distrito Federal, feitas por cidadãos, entidades públicas e privadas, como universidades, fundações, sociedades científicas e, também, empresas e associações. Ainda assim, a Abia nem procurou ou quis participar.

Apesar disso, Medeiros atendeu ao chororô da indústria de alimentos, afirmando que “o plano não será publicado sem a contribuição” da Abia, conforme a ata da audiência de março.

Ao tomar a decisão, o secretário ainda declarou que a associação de empresas é “representante ativo e relevante para a construção de políticas públicas, acenando com uma questionável, no mínimo, proximidade entre os interesses público e privado. Em consonância com o secretário, Maciel, o diretor da Abia, disse que a entidade tem uma “parceria de longa data” com o Ministério da Saúde.

Na reunião, ficou acordado que as contribuições da Abia deveriam ser enviadas por escrito, em um ofício — que ainda não aconteceu.

Até esta quarta-feira, 19 de maio, o plano de combate a doenças crônicas não foi publicado, mesmo que a versão anterior já esteja ultrapassada. Por enquanto, há apenas uma versão parcial do documento, não consolidada, acessível no site do Ministério da Saúde.

A demora da Abia para se manifestar levanta entre técnicos da pasta, ouvidos sob condição de anonimato — por temerem represálias —, a suspeita de que a indústria alimentícia não quer deixar os seus objetivos claros neste caso.

Um dos propósitos seria desincentivar o uso do termo alimentos ultraprocessados nos rótulos e embalagens. Outro, o de evitar expor a relação do maior consumo de produtos das empresas associadas com o aumento dos índices de obesidade no país nas últimas décadas. Caso a entidade remeta um ofício por escrito, teria, então, que assumir publicamente uma postura anticientífica e antissaúde.

Procurada por meio de sua assessoria de imprensa para comentar o desfecho da reunião com a SVS, a Abia não retornou aos contatos desta reportagem.

Abia contra o uso do conceito ultraprocessados

O conceito de alimentos ultraprocessados é uma pedra no sapato das corporações alimentícias. Oriundo da teoria da Classificação Nova de Alimentos, datada de 2009, o termo abrange grande parte do portfólio de produtos das empresas afiliadas à Abia. O consumo de ultraprocessados está relacionado ao desenvolvimento de diversas doenças crônicas não transmissíveis e, também, ao ganho de peso corporal.

Confrontada com o crescente de evidências científicas que ligam os ultraprocessados a problemas de saúde, a postura da Abia é tergiversar. Faz isso ao dizer que o combate às doenças crônicas precisa de uma abordagem mais ampla, e, não raro, usa argumentos que sugerem que esses problemas de saúde são resultado de condutas individuais, como a falta de atividade física na população.

Essa, aliás, não é a primeira vez que a Abia investe contra o uso do conceito alimentos ultraprocessados. Desde a publicação do Guia Alimentar para a População Brasileira, em 2014, a indústria nacional se queixa da utilização desse termo científico. Como mostramos, o então presidente da Abia, Edmundo Klotz, já naquela época, tentou engavetar a publicação do Guia Alimentar, pressionando o ministro Arthur Chioro — que, por sua vez, não cedeu.

Em setembro do ano passado, a associação tentou outra vez, mas o tiro saiu pela culatra. Articulou com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, o Mapa, um pedido de reedição do Guia Alimentar para a População Brasileira.

O objetivo era conseguir a revisão do uso do termo alimentos ultraprocessados. O conceito chegou a ser chamado de “algo cômico” em um ofício do Mapa ao Ministério da Saúde, a despeito de seu uso cada vez mais consolidado no meio científico. Sob intensas críticas de cientistas, profissionais de saúde e organizações da sociedade civil, a iniciativa não vingou.

A investida da indústria de alimentos sobre o Ministério da Saúde, portanto, não é bem uma novidade. O que muda, nesse caso, é o fato de funcionários do alto escalão da pasta estarem dispostos a atender de pronto aos pedidos das corporações. O presidente-executivo da Abia, João Dornellas, já disse, em um evento da indústria realizado em junho de 2019, que a eleição de Jair Bolsonaro era uma chance de aproximação entre o governo federal e as empresas.

Em alguns estados, essa aproximação desejada por Dornellas já é uma realidade. Em São Paulo, como mostramos recentemente em O Joio e O Trigo, o representante da Abia foi indicado pelo governador João Doria, do PSDB, para ser o presidente do Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional de São Paulo, o Consea-SP.

Ele foi eleito para o cargo após uma articulação do setor empresarial com o Executivo paulista garantir o seu nome como o mais votado de uma lista tríplice chancelada por Doria. Controversa, no mínimo, a escolha provocou intensas críticas de organizações da sociedade civil. Apesar de o resultado não ter sido divulgado oficialmente, Dornellas já presidiu o primeiro encontro do Consea-SP em 15 de abril.

Consequências internas e externas

Após a decisão de Medeiros favorável à Abia, a então coordenadora-geral de Vigilância e Agravos Não Transmissíveis do Ministério da Saúde, a nutricionista Luciana Monteiro Vasconcelos Sardinha, pediu demissão. Ela era uma das principais integrantes do quadro técnico da pasta contrárias a atender às demandas da Abia.

De acordo com o relato de colegas — que falaram sob a condição de não serem identificados —, Sardinha se opunha à ideia de receber sugestões no plano de combate a doenças crônicas após o encerramento da consulta pública.

A resistência da nutricionista, cuja experiência é de mais de 20 anos no planejamento e execução de políticas de saúde pública, rendeu-lhe represálias. A interlocutores, ela disse que se sentiu pressionada pelo chefe da SVS a ceder aos caprichos da Abia.

A decisão do secretário de se reunir com a associação foi a gota d’água para Sardinha colocar o cargo à disposição, segundo outros servidores do Ministério da Saúde ouvidos pelo Joio. A exoneração da coordenadora foi publicada em 22 de março deste ano.

Considerando a trajetória, a conduta de Medeiros é um tanto incomum. Seu currículo mostra que ele é um pesquisador com experiência em instituições públicas, tendo ocupado postos em universidades e hospitais universitários.

Medeiros é graduado em química, com mestrado pela Universidade Federal de Minas Gerais, a UFMG, e doutorado pela Universidade de São Paulo, a USP. Apesar de chefiar a área de vigilância em saúde, tem um perfil clínico, de especialidade em abordagens individuais, e não epidemiológico — isto é, de abordagens coletivas.

Ele chegou à SVS após ser entrevistado e contratado pelo então ministro e general da ativa do Exército Eduardo Pazuello. O secretário foi indicado ao cargo por um dos líderes do bloco de deputados federais denominado de “centrão”, informa reportagem do site Poder 360.

A estranha cumplicidade entre Medeiros e Abia levanta a suspeita de infrações à Constituição e ao Código Penal. Essa é a opinião do advogado e doutorando em filosofia do direito pela USP, Victor Barau, que comentou, a pedido desta reportagem, as implicações do caso sem ser informado dos nomes e dos postos dos atores envolvidos. “O problema é se existem ganhos de vantagens diretas ou indiretas para um ou para ambos os lados da relação”, ele diz.

Quando um agente público quebra um rito administrativo habitual e favorece um determinado ator privado, há implicações. O servidor em questão pode ser investigado por dois motivos, segundo o advogado. Tanto por não cumprir os preceitos de impessoalidade, previstos no artigo 37, da Constituição Federal (sobre a moralidade pública), quanto por infração do artigo 321, do Código Penal, que versa sobre patrocinar interesse privado no meio público.

“Em tese, poderíamos caracterizar o que foi apurado até aqui como atos que poderiam ser caracterizados como crime de advocacia administrativa. Ou até mesmo de improbidade administrativa, por se atentar contra princípios da administração pública ante a ausência de transparência necessária a tais atos oficiais, ou até mesmo, se for o caso, por tal regulação implicar numa afetação de preços de mercado”, afirma o advogado.

“Daí que toda essa situação, a meu ver, justificaria uma análise mais detalhada e aprofundada sobre o assunto pelas autoridades judiciárias competentes para se apurar a conduta dos agentes públicos envolvidos e os atores sociais que participaram de tais atos”, conclui Barau.

Questionado por meio da assessoria de imprensa sobre a motivação do encontro do titular da SVS com a Abia, o Ministério da Saúde não respondeu até o fechamento desta reportagem.

Em um e-mail enviado a esta reportagem, a SVS limitou-se a informar que o “plano de ações estratégicas para o enfrentamento das doenças crônicas e agravos não transmissíveis no Brasil” está atualmente “em fase de diagramação” e “assim que for concluído será divulgado pela pasta”.

Indústria e doenças crônicas

Por mais que a Abia diga que não, tentando tapar o sol com a peneira, o corpo de evidências científicas que mostram a relação do consumo de ultraprocessados com o desenvolvimento de doenças crônicas e o ganho de peso corporal tem se tornado mais robusto e consolidado nos últimos anos. Para não deixar dúvida, alguns exemplos desses alimentos são macarrões instantâneos, bolachas, doces, embutidos, entre outros.

Recentemente, um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) mostrou, em um artigo científico, que 65% dos alimentos industrializados no Brasil contêm açúcares adicionados à formulação. Para obter esse percentual, os autores do estudo, integrantes do Núcleo de Pesquisas de Nutrição em Produção de Refeições (NUPPRE), analisaram as informações contidas nos rótulos de 4.805 produtos disponíveis na loja de uma grande rede de supermercados do país.

O achado da pesquisa soma-se a outros indícios do uso excessivo de açúcar pela população brasileira, ao lado do maior consumo de alimentos ultraprocessados, conforme mostram alguns indicadores, como a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do IBGE.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda para adultos um consumo diário de até 50 gramas do ingrediente. A mediana de açúcar adicionado encontrado nos produtos analisados pelo estudo era de 18,2 a cada 100 gramas — a mediana é uma espécie de cálculo de média, usado em estatística para corrigir eventuais distorções na base da amostra.

Entre os alimentos com açúcares adicionados estavam até alguns que supostamente são considerados de melhor qualidade. Na verdade, não são, mas costumam ser propagandeados dessa maneira.

“Muitos alimentos que têm esse halo saudável como, por exemplo, produtos lácteos e barras de cereal — um terço delas é açúcar — não são tão saudáveis quanto as pessoas imaginam que sejam”, comenta Tailane Scapin, uma das autoras do estudo, doutoranda do programa de pós-gradução em nutrição da UFSC e do NUPPRE.

No Brasil, o consumo de alimentos ultraprocessados vem em uma crescente nas últimas duas décadas. De 12,6% do total de calorias adquiridas para consumo em casa pelas famílias brasileiras entre 2002 e 2003, esses itens saltaram para 18,4% entre 2017 e 2018, de acordo com as informações mais recentes da Pesquisa de Orçamento Familiares, a POF, do IBGE.

Entre outras explicações, um dos motivos para essa tendência é a diminuição no preço dos ultraprocessados e o aumento do custo da comida in natura e minimamente processada.

Paralelo a isso, no mesmo período, os índices de obesidade e excesso de peso deram um salto. A obesidade passou de 9,6% entre homens e 14,5% entre mulheres em 2002-2003, segundo a POF, para 22,8% entre homens e 30,2% entre mulheres, informa a medição da Pesquisa Nacional de Saúde.

Nas duas categorias, o sobrepeso também disparou de 43%, no início dos anos 2000, para mais de 60% no período mais recente. Como se sabe, o excesso de peso é um fator de risco para diversas enfermidades.

Anteriormente à pandemia de coronavírus, as doenças crônicas não transmissíveis correspondiam à principal causa de morte no Brasil. Apresentavam, em 2017, uma taxa de 172,4 mortes a cada 100 mil habitantes, um patamar bem superior às provocadas por doenças infecciosas (36,1 a cada 100 mil) e causas externas (77,6 a cada 100 mil).

Não custa lembrar que todas essas condições crônicas assinaladas também estão, reconhecidamente, relacionadas aos casos mais graves de covid-19 e à maior mortalidade de uma doença que já matou mais de 430 mil brasileiros, segundo o site covid.saude.gov.br.

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