AS REGRAS INTERNAS SECRETAS do Facebook para moderar o termo “sionista” permitem que a rede social suprima as críticas a Israel em meio a uma onda de abusos e violências praticados pelo país, segundo pessoas que analisaram essas políticas.
As regras estariam em vigor desde 2019, o que aparentemente contradiz uma alegação feita pela empresa em março, de que ainda não teria decidido se “sionista” seria um termo usado como sinônimo de “judeu” ao verificar um possível “discurso de ódio”. As políticas, obtidas pelo Intercept, regem o uso de “sionista” em postagens não apenas no Facebook, mas em todos os aplicativos associados, incluindo o Instagram.
Tanto o Facebook quanto o Instagram enfrentam acusações de censura na esteira da ampla e arbitrária exclusão de postagens recentes de usuários pró-Palestina com críticas ao governo israelense, incluindo aquelas que documentavam ocorrências de violência de Estado por parte de Israel.
Israel e Gaza foram tomadas por intensa violência desde a semana passada. As tensões tiveram início em meio a protestos dos palestinos contra as remoções planejadas na parte ocupada de Jerusalém Oriental, com o objetivo de abrir espaço para colonos judeus. Em dado momento, as forças de segurança israelenses invadiram o complexo da mesquita Al Aqsa, na cidade velha de Jesuralém, um dos lugares mais sagrados do Islã. O grupo militante palestino Hamas respondeu com disparo de foguetes contra Israel. Israel, por sua vez, iniciou intenso bombardeio aéreo e ataques de artilharia contra a Palestina ocupada na Faixa de Gaza, e teria deixado mais de 200 pessoas mortas, incluindo 63 crianças. No mínimo 1,5 mil palestinos foram feridos. Segundo relatos, em Israel teriam morrido dez pessoas em decorrência dos confrontos, incluindo duas crianças, deixando mais de 500 feridos.
“O Facebook alega que sua política em relação ao termo ‘sionista’ diz respeito à segurança dos judeus”, disse ao Intercept Dani Noble, da organização Jewish Voice for Peace [Voz Judaica pela Paz], que analisou as regras. “Porém, de acordo com o trecho da política de conteúdo, aparentemente os tomadores de decisão do Facebook estão mais preocupados em blindar os colonos israelenses sionistas e o governo de Israel da responsabilidade por esses crimes.”
Embora nenhum dos casos de remoção de conteúdo pelo Facebook ou pelo Instagram tenha sido vinculado de forma inequívoca ao termo “sionista”, usuários e ativistas pró-Palestina ficaram alarmados com o desaparecimento de postagens e os avisos de violação de políticas ao longo da última semana. O Facebook declarou que a súbita exclusão de conteúdo profundamente perturbador documentando a violência do Estado israelense teria sido, como frequentemente a empresa alega, apenas um grande acidente. A representante da companhia, Sophie Vogel, em um e-mail enviado ao Intercept, colocou a culpa pelas postagens apagadas, muitas delas sobre as recentes tentativas dos colonos israelenses de se apropriarem de moradias palestinas, em uma inespecífica “falha técnica ampla” no Instagram e em uma série de exclusões “equivocadas” e “erros humanos”.
Outra representante, Claire Lerner, declarou: “Permitimos a discussão crítica sobre sionistas, mas removemos ataques contra eles quando o conceito permite inferir que a palavra esteja sendo usada como sinônimo de judeus ou israelenses, ambas características protegidas pela nossa política contra o discurso de ódio”. Ela acrescentou: “Nós reconhecemos que esse debate é delicado, e que a palavra ‘sionista’ é frequentemente usada em discussões políticas importantes. Nossa intenção nunca é prejudicar o debate, mas assegurar que estamos permitindo o máximo de expressão possível, ao mesmo tempo em que mantemos a segurança da comunidade.”
O Facebook não comentou sobre o momento de implementação das regras e a aparente contradição com suas declarações públicas de que essa política ainda estaria sob análise e não estaria ativa.
Enquanto algumas postagens de palestinos no Facebook e no Instagram simplesmente desapareceram, o que tornaria plausível a possibilidade de um problema técnico, outros relatam terem recebido uma notificação de que suas postagens teriam sido removidas por violarem regras corporativas contra “símbolos ou discurso de ódio”. Essas supostas violações constituem apenas uma das proibições retiradas da biblioteca de documentos internos do Facebook, que supostamente ditam para seu público de bilhões de pessoas o que é permitido e o que deve ser excluído.
Embora a empresa alegue que suas decisões de conteúdo são cada vez mais tomadas automaticamente por máquinas, Facebook e Instagram ainda dependem de uma legião de terceirizados mal remunerados em todo o mundo, a quem são delegadas as decisões de apagar ou preservar postagens usando uma mistura de juízo de valor individual e aplicação de intrincados manuais de regras, fluxogramas e exemplos hipotéticos. O Facebook já havia sido desonesto quanto à questão de acrescentar ou não “sionista” a uma matriz de termos usados para proteger categorias de pessoas, ao dizer a ativistas palestinos em uma videoconferência, em março, que ainda “não havia decisão” sobre o assunto. “Estamos pesquisando se em certos contextos limitados é correto considerar que a palavra sionista pode ser usada para substituir ‘judeu’ em alguns casos de discurso de ódio”, declarou a gestora de direitos humanos do Facebook, Miranda Sissons, no Fórum de Ativismo Digital da Palestina. Aparentemente, isso não é totalmente verdade (não foi possível entrar em contato com Sissons para esclarecimentos).
Exemplos Inacreditáveis para os Moderadores
Um trecho de um dos manuais internos de regras analisado pelo Intercept guia moderadores de conteúdo do Facebook e do Instagram pelo processo de determinar se postagens e comentários usando o termo “sionista” constituiriam discurso de ódio.
Um moderador do Facebook disse que a política “dá muito pouco espaço de manobra para criticar o sionismo” num momento em que exatamente essa ideologia está sendo alvo de avaliação detida e intensos protestos.
Em termos estritos, “sionismo” se refere ao movimento que defendeu historicamente a criação na Palestina de um Estado judeu, ou uma comunidade, e atualmente defende a nação que surgiu desse impulso, Israel. Um sionista é uma pessoa que participa do sionismo. Embora “sionista” e “sionismo” possam ser termos carregados, usados algumas vezes por pessoas abertamente antissemitas como um sinônimo disfarçado de “judeu” e “judaísmo”, essas palavras também têm significado histórico e político inequívoco, e usos claros, legítimos e não-odiosos, inclusive no contexto de críticas e debates sobre o governo de Israel e suas políticas. Nas palavras de um moderador do Facebook que conversou com o Intercept sob a condição de anonimato para preservar seu emprego, a política, na prática, “dá muito pouco espaço de manobra para criticar o sionismo” num momento em que essa exata ideologia está sendo alvo de grandes atenções e intensos protestos.
O texto da política sobre “sionista” é apenas um curto trecho de um documento bem maior que guia os moderadores pelo processo de identificação de uma grande variedade de classes protegidas e de discursos de ódio associados a elas. Ele dá instruções aos moderadores “para determinar se ‘sionista” está sendo usado como sinônimo de israelense/judeu”, o que sujeitaria a postagem à exclusão. O Facebook diz que atualmente não considera “sionista” uma categoria protegida específica. O texto é o seguinte:
Quais são os indicadores para determinar se “sionista” está sendo usado como sinônimo de israelense/judeu?
Usamos os seguintes Indicadores para determinar Sinônimo de judeu/israelense:
quando conteúdo principal explicitamente menciona judeu ou israelense e comentário contém “sionista” como alvo combinado a ataque de discurso de ódio e não há outro contexto disponível então presumir judeu/israelense e excluir.Exemplos:
Excluir: Conteúdo Principal, “Colonos israelenses se recusam a deixar casas construídas em território palestino”; Comentário, “Fodam-se os sionistas!”
Nenhuma ação: Conteúdo Principal, “Movimento sionista faz 60 anos; Comentário, “Sionistas são terríveis, odeio todos”Em cenários de comparações visuais ou textuais consideradas desumanizantes em que haja referência a “ratos”, as referências a sionista(s) deverão ser consideradas sinônimo de “judeu(s)”?
Sim, apenas nessas condições por favor considere “sionista(s)” como substituto de “judeu(s)” e aja de forma adequada.
Os críticos comentaram que o primeiro exemplo está atrelado a um exemplo frequente e muitas vezes violento de ocorrência do mundo real – a tomada de moradias palestinas por colonos israelenses – quase sempre praticada com justificativas baseadas em ideologia sionista ou em políticas do governo israelense baseadas no sionismo. Os ativistas que questionam as regras do Facebook sobre o termo “sionista” se preocupam com a possibilidade de que denúncias dessas ações e políticas de Estado sejam consolidadas como discurso de ódio contra judeus, o que dificultaria fazer qualquer crítica a Israel nas redes.
“O absurdo, a futilidade e a natureza politizada dessa política do Facebook devem ter ficado agora claros como o dia, à medida que testemunhamos a limpeza étnica na Jerusalém ocupada, e a nova guerra contra a população sitiada de Gaza”, declarou Dima Khalidi, diretora do grupo de defesa de direitos “Palestine Legal” [Palestina Jurídica]. “O problema fundamental é que o sionismo é uma ideologia política que justifica exatamente o tipo de expulsão forçada de palestinos – que torna alguns palestinos triplamente refugiados – que vemos agora em Sheikh Jarrah e outras regiões ocupadas de Jerusalém Oriental”.
Assista ao documentário que Israel não quer que você veja
Colonialismo e Colonizadores
Os críticos dizem que a decisão do Facebook de se concentrar em “sionista” como identidade étnica oculta o fato de que o termo descreve uma escolha ideológica concreta, e ignora como palestinos e outros passaram a usar essa palavra no contexto de sua opressão histórica por Israel. Esse foco inibe o próprio discurso político e os protestos em âmbito mundial que o Facebook alega estar protegendo, entende Jillian York, diretora de liberdade de expressão internacional na organização Electronic Frontier Foundation [Fundação Fronteira Eletrônica] e crítica de longa data das práticas de moderação de conteúdo do Facebook. “Considerando que ‘sionista’ é usado como autoidentificação, seu uso por judeus e outros (incluindo cristãos evangélicos) demonstra que não se trata simplesmente de um sinônimo para ‘judeu’, como o Facebook vem dando a entender”, explicou ela ao Intercept. “Além disso, seu uso na região é distinto – palestinos o utilizam como sinônimo de ‘colonizador’, não de ‘judeu’.” A política constitui uma forma de “excepcionalismo” ideológico em relação ao sionismo, segundo York, um tratamento que não é dado a outras identidades políticas como o socialismo e o neoconservadorismo “em decorrência de pressões políticas e de outros tipos”.
Embora o Facebook tenha afirmado que nenhuma postagem no Instagram sobre a recente violência israelense foi removido a pedido do governo de Israel, o país frequentemente faz tais pedidos à empresa, que os acata em grande medida. Além disso, brigadas de voluntários pró-Israel espontaneamente organizadas, muitas vezes coordenadas pelo aplicativo de telefone Act.IL, participam de campanhas de denúncia em massa que conseguem enganar os sistemas de moderação automatizada do Facebook, levando-os a marcar discurso político não violento como incitação de ódio. A empresa se recusou a comentar publicamente a pergunta sobre indícios de campanhas de denúncia em massa.
A existência de regras para “sionista” surpreendeu os ativistas palestinos, que afirmam o que o Facebook anteriormente teria dado a impressão de que os limites ao uso do termo estariam sendo avaliados internamente, mas não teriam sido implementados. “Fomos levados a crer que eles estariam avaliando essa política, e, portanto, que consultariam a sociedade civil”, disse, ao Intercept, Marwa Fatafta, diretora de políticas para o Oriente Médio e o Norte da África da organização Access Now. Fatafta comentou que sua opinião sobre a possibilidade de implementação de tal política foi solicitada em 2020, embora o documento indique que as regras relativas a “sionista” já teriam sido divulgadas aos moderadores em 2019.
Depois de avaliar a política por conta própria, Fatafta comentou que ela reflete exatamente as preocupações que havia sentido quando foi apresentada a essa hipótese. “Sionismo é um termo politicamente complexo que exige sutileza”, disse ao Intercept. “Não há como o Facebook moderar esse conteúdo em grande escala sem que seus sistemas saiam de controle, coibindo posicionamentos políticos legítimos e silenciando os críticos”.
Tradução: Deborah Leão
Você sabia que...
O Intercept é quase inteiramente movido por seus leitores?
E quase todo esse financiamento vem de doadores mensais?
Isso nos torna completamente diferentes de todas as outras redações que você conhece. O apoio de pessoas como você nos dá a independência de que precisamos para investigar qualquer pessoa, em qualquer lugar, sem medo e sem rabo preso.
E o resultado? Centenas de investigações importantes que mudam a sociedade e as leis e impedem que abusadores poderosos continuem impunes. Impacto que chama!
O Intercept é pequeno, mas poderoso. No entanto, o número de apoiadores mensais caiu 15% este ano e isso está ameaçando nossa capacidade de fazer o trabalho importante que você espera – como o que você acabou de ler.
Precisamos de 1.000 novos doadores mensais até o final do mês para manter nossa operação sustentável.
Podemos contar com você por R$ 20 por mês?