YouTube pagou R$ 6,9 milhões em dois anos a canais bolsonaristas investigados no STF

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Turbinado pelo próprio algoritmo do YouTube para difundir mentiras e desinformação, só o Folha Política embolsou R$ 2,5 milhões.

YouTube pagou R$ 6,9 milhões em dois anos a canais bolsonaristas investigados no STF

O YouTube pagou R$ 6,873 milhões entre 2018 e 2020 a 12 canais bolsonaristas suspeitos de envolvimento nos protestos contra o Supremo Tribunal Federal e o Congresso do ano passado. Os valores, apurados pela Polícia Federal no inquérito dos atos antidemocráticos, mostram que a montanha de dinheiro – que é fruto dos anúncios fornecidos pelo Google – movimentada pela rede de extrema direita é muito maior do que se pensava.

O dinheiro da rede social financiou influenciadores como Oswaldo Eustáquio, Sara Winter, Ernani Fernandes Barbosa Neto, do Folha Política, e Anderson Azevedo Rossi, do Foco do Brasil. Todos são investigados por inflamarem atos golpistas realizados ao longo do ano passado e que incitavam Bolsonaro a intervir no STF e no Congresso Nacional.

O maior arrecadador em valores brutos é o canal Folha Política, que começou como um site e hoje é um dos maiores canais de direita do YouTube. Com mais de 2 milhões de seguidores e quase 1 bilhão de visualizações desde 2016, o canal recebeu do YouTube 486 mil dólares entre junho de 2018 e maio de 2020. Isso equivale a mais de R$ 2,590 milhões, pelo câmbio de 29 de maio do ano passado.

Em seguida, aparece o canal Folha do Brasil, atualmente chamado Foco do Brasil, que recebeu 307 mil dólares (1,5 milhão de reais) em um período de apenas nove meses, entre setembro de 2019 e maio de 2020 – o que faz dele o maior arrecadador mensal. Os valores são o que se chama de monetização e são pagos pelo Google a canais que exibem anúncios, de acordo com a audiência deles.

YouTube pagou R$ 6,9 milhões em dois anos a canais bolsonaristas investigados no STF

Reprodução/STF

Os demais canais que receberam dinheiro dos anúncios do Google são Nação Patriota, Sara Winter, Oswaldo Eustáquio, TV Direita News, Ravox Brasil, Emerson Teixeira, Vlog do Lisboa, Direto aos Fatos e Giro de Notícias. Os números foram obtidos pela Polícia Federal por meio de depoimentos, apreensões e acesso a dados protegidos por sigilo bancário e fiscal, e sistematizados na manifestação da Procuradoria-Geral da União.

Os valores estão no inquérito aberto pelo Supremo para descobrir como foram organizados e financiados os atos antidemocráticos. Parte da investigação teve o sigilo derrubado na segunda-feira, 7, pelo ministro Alexandre de Moraes.

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O relatório da PF aponta a existência de uma rede coordenada – que inclusive tinha influência em outras instâncias do governo, como a Secretaria Especial de Comunicação e no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. A polícia trabalhava com a hipótese de que recursos públicos eram distribuídos aos golpistas pela Secretaria da Comunicação do governo Bolsonaro e que um grupo formado por funcionários públicos ou políticos se reunia para promover os atos antidemocráticos.

Mas a PF esbarrou na dificuldade de obter provas – a partir de mandados de busca e apreensão, por exemplo – e não conseguiu preencher todas as lacunas. Sugeriu, então, aprofundar a investigação posteriormente. Mas a Procuradoria-Geral da República, a PGR, que comanda o Ministério Público Federal, só se manifestou cinco meses depois – e pediu o arquivamento da investigação na sexta-feira, 4.

Para justificar o pedido, o subprocurador-geral Humberto Jacques de Medeiros – substituto imediato de Augusto Aras – afirmou que “em uma sociedade democrática […] todos os atos se pressupõem democráticos […], exigindo-se prudência na invocação de tutela penal”, e fez menção à Lei de Segurança Nacional. A PGR, no entanto, apontou buracos na investigação – especialmente sobre a origem e o destino do dinheiro da rede golpista. Em sua manifestação, o órgão chamou a atenção para o alto volume de dinheiro entregue pelo Google para youtubers extremistas. Os valores colhidos pela Polícia Federal foram somados e organizados em uma tabela.

“Os números apresentados pelo Google sugerem que a monetização de conteúdo antidemocrático na sua plataforma de streaming, o YouTube, gerou um lucro expressivo para os respectivos ‘criadores’ e certamente muito mais para o provedor de internet que os remuneraram com centenas de milhares de dólares”, disse a procuradoria. “A despeito da existência de indícios concretos de que a plataforma tinha conhecimento de que esses produtores estavam em desconformidade com as políticas e diretrizes do seu programa de parcerias”.

YouTube pagou R$ 6,9 milhões em dois anos a canais bolsonaristas investigados no STF

Imagem: Reprodução/STF

O Ministério Público também criticou a lentidão nas investigações sobre os youtubers, o que permitiu que muitos deles apagassem vídeos para evitar que fossem indiciados por crimes. Logo depois do cumprimento dos mandados, em junho, os administradores do canal Terça Livre apagaram 272 vídeos. Em fevereiro de 2021, o Giro de Notícias (que faturou US$ 219 mil entre dezembro de 2018 e maio de 2020) apagou 1,3 mil vídeos – a maior parte deles contra o STF. O Intercept já denunciou essa estratégia em abril.

Um alimenta o outro

Em 2018, o técnico de informática Anderson Azevedo Rossi resolveu se apropriar do canal de games de seu filho e mudar a conversa. Em vez de resenhas sobre Minecraft, Rossi começou a publicar conteúdo de apoio a Jair Bolsonaro. Surgia ali o canal Folha do Brasil – depois rebatizado de Foco do Brasil – e, com ele, dinheiro rápido: 10 mil dólares em um mês. Entre os vídeos publicados por Rossi, estão pérolas como “Urgente! Roberto Jefferson acaba de denunciar golpe de Maia contra Bolsonaro” e “O depoimento e as ‘provas’ de Moro na PF, Bolsonaro dá posse, STF fervendo, Alexandre Garcia e mais!”. Ambos foram apagados.

Não parou por aí. Graças a um contato na EBC, a emissora pública de televisão, Rossi conseguiu transmitir imagens de satélite obtidas pela emissora pública de comunicação direto em seu canal, o que lhe rendia dinheiro grátis. Também retransmitia conteúdo da TV Brasil.

Mas o filé da programação do Foco do Brasil era mesmo os vídeos exclusivos de Bolsonaro, que ele recebia por WhatsApp direto de um assessor do presidente, Tércio Arnaud Tomaz, segundo a investigação. O logotipo do canal criado por Rossi pode ser visto no canto superior direito da tela nas gravações das conversas de Jair Bolsonaro com apoiadores na porta do Palácio da Alvorada reproduzidas por redes de televisão.

Tomaz é apontado como um dos principais operadores do gabinete do ódio, grupo de bolsonaristas que ganhou empregos no Palácio do Planalto e cujo trabalho é defender o presidente e sua família, além de atacar e difamar adversários. Para isso, ganha R$ 13 mil mensais, pagos com dinheiro público.

Tomaz é apontado pela PF como líder de um esquema alimentado pelo próprio Planalto para abastecer youtubers extremistas com conteúdo que gerava engajamento e centenas de milhares de reais por mês. A estimativa é que eles faturavam até R$ 100 mil divulgando informações obtidas em primeira mão. O gabinete do ódio enviava os vídeos e os youtubers postavam coisas como “Bolsonaro dá ultimato para sabotadores e intromissões” e “A Força de Bolsonaro é maior que Congresso e STF”. Se a investigação prosseguisse, poderia se debruçar sobre o paradeiro dessa dinheirama. Será que ele foi parar apenas no bolso dos youtubers?

O Foco do Brasil é exemplo cristalino da relação promíscua e de retroalimentação que a rede de extrema direita no YouTube mantém com Bolsonaro e seu círculo próximo. Por um lado, os youtubers ajudam a divulgar os atos e ações do presidente, a emplacar suas narrativas e arrebanhar fiéis. Por outro, se beneficiam – com audiência e muito dinheiro – dos conteúdos produzidos pelo próprio presidente.

“A propaganda de conteúdo extremista no campo digital culmina, de fato, em ações subsequentes: as manifestações reais contra o estado democrático de direito, criando um ciclo que se realimenta, com a difusão das manifestações pelos canais de internet dos produtores, que, por sua vez, são alardeados e replicados em perfis pessoais de redes sociais de agentes do estado, gerando mais visualizações”, afirma a Polícia Federal.

Segundo as investigações, do YouTube o conteúdo golpista era desdobrado para outras redes sociais e, de lá, para as profundezas do WhatsApp e do Telegram bolsonarista. Estava criada a rede de ataques e mentiras.

Uma ajudinha do amigo Google

O canal de Rossi faturou, no período das investigações, 307 mil dólares. E a monetização do YouTube não era sua única fonte de dinheiro: crowdfunding e mais anúncios exibidos pelo Google em seu site complementavam a renda. Isso foi dito por ele próprio, em depoimento à PF.

O Foco do Brasil é recheado de anúncios programáticos exibidos por meio do AdSense, serviço de distribuição de propagandas do Google. Com esse serviço, o blogueiro “aluga” um espaço em suas páginas e o Google é responsável por exibir um anúncio de acordo com as preferências e o perfil de quem visitou a página. Os donos dos sites são remunerados por cliques, e a grana é dividida entre eles e o Google.

YouTube pagou R$ 6,9 milhões em dois anos a canais bolsonaristas investigados no STF

Imagem: Reprodução/STF

Esse tipo de anúncio, seja em sites ou no YouTube, gera a maior parte do faturamento da gigante da tecnologia. Por isso, é de interesse do Google que os sites tenham bastante audiência, muitos cliques e quase nenhum controle de qualidade. Um clique em uma notícia falsa tem potencial para gerar tanto dinheiro quanto um clique em uma notícia verdadeira. Entre 2015 e 2016, a empresa chegou a treinar blogueiros antipetistas para aumentar o faturamento com AdSense. Muitos deles se tornaram youtubers bolsonaristas de sucesso.

Depois, já na época da eleição de Bolsonaro, a empresa deu um empurrão para que uma rede de blogs de extrema direita explodisse no YouTube. Foi o próprio algoritmo da rede que alçou bolsonaristas irrelevantes à fama. Caso do Foco do Brasil e de muitos outros. Um bom negócio para os emergentes postadores de conteúdo, para Bolsonaro e para o Google.

O Folha Política – o canal que mais faturou, segundo as investigações do STF – foi, também, o que mais apareceu no ranking “Em alta” do YouTube no período eleitoral. Ele foi de zero aparições no ranking, em julho e agosto de 2018, a um pico de 2.747 em outubro, mês das eleições, segundo uma análise feita pela agência de dados Novelo a pedido do Intercept naquele ano.

Quando aparece no ranking, um canal ganha uma posição de destaque no YouTube e é recomendado para outros usuários. Assim, a empresa garantia que eles teriam audiência brutal, gerando cliques para os anúncios.

Só dois saíram do ar

Quando começou a pandemia e, com ela, a enxurrada de mentiras sobre o coronavírus, o Google anunciou uma nova política sobre monetização para tentar evitar que vídeos com desinformação fossem remunerados. Não funcionou. Muitos dos canais de extrema direita eram, também, os mesmos que espalhavam mentiras sobre a pandemia. Eles surfavam no assunto do momento para faturar.

O Folha Política – olha ele aqui de novo – era um desses: propagou teorias conspiratórias sobre a China e uma mentirosa ação emergencial de Bolsonaro para a Itália. Os vídeos eram monetizados – ou seja, continuavam rendendo dinheiro para seus criadores, apesar de espalharem mentiras. Os youtubers criaram estratégias para continuarem postando livremente – apagando vídeos polêmicos e criando canais alternativos, por exemplo –, e o Google fingiu que não viu.

Foi só com os inquéritos no STF – tanto o que investiga atos contra a democracia quanto o das fake news – que a rede extremista começou a se mexer. Os investigados começaram a fazer uma limpeza em seus canais para remover o conteúdo golpista: mais de 3 mil vídeos foram apagados em um mês. Em fevereiro deste ano, Alberto Junio da Silva, do canal O Giro de Notícias, já havia apagado 1.398 vídeos, a maior parte deles relacionados a ataques contra Supremo, segundo a investigação.

Perguntei ao Google se a empresa confirma os valores, se os canais ainda são monetizados e se algum deles foi suspenso. A empresa se limitou a mandar uma resposta padrão. “O YouTube é uma plataforma de vídeo aberta e qualquer pessoa pode compartilhar conteúdo, que está sujeito à revisão de acordo com as nossas diretrizes da comunidade”, diz o texto. “Quando não há violação da política de uso do produto, a decisão final sobre a necessidade de remoção do conteúdo cabe ao Poder Judiciário, de acordo com o que estabelece o Marco Civil da Internet”.

Mas a rede bolsonarista não apenas continua no ar como segue sendo remunerada pelo Google. No total, no último ano, o YouTube apagou por iniciativa própria apenas 47 vídeos de 27 canais de extrema direita no Brasil. E 21 desses canais continuam monetizados.

Entre os 12 investigados no inquérito, só dois canais foram derrubados: o da extremista Sara Winter e o Direita TV News, do negacionista Marcelo Frazão – este último, após a publicação de uma reportagem do Intercept. Os outros permanecem no ar, oferecendo desinformação, mentiras e incitação a um golpe de estado em troca de audiência e lucro.

No mês passado, o Google publicou um anúncio em vários jornais do Brasil destacando o que, segundo a plataforma, seria o “jornalismo de qualidade” no Brasil. Os youtubers golpistas não estavam na lista – mas eles já tinham recebido o empurrãozinho da empresa.

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