Quem acompanha as sessões da Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid já notou que a defesa de Jair Bolsonaro não vem sendo exercida pelo líder do governo no Senado ou por parlamentares veteranos do Centrão. Em vez deles, estão em campo três senadores eleitos pela primeira vez para o cargo em 2018. Invariavelmente, eles vão às sessões armados com mentiras ou informações descontextualizadas, levantadas em um grupo de WhatsApp que dizem dividir com cientistas alinhados à extrema direita. É o pelotão da cloroquina.
Como pagamento mais evidente, os senadores Marcos Rogério, do DEM de Rondônia, Eduardo Girão, do Podemos do Ceará, e Luis Carlos Heinze, do PP do Rio Grande do Sul, recebem, por tabela, ampla exposição e popularidade nas redes sociais da família Bolsonaro e da extrema direita. É um ativo valioso, que os credencia a sair na frente em uma disputa pelo governo de seus estados. Heinze é abertamente pré-candidato. Já Rogério e Girão desconversam quando questionados a respeito.
Dos três, apenas Rogério ocupa uma posição que habitualmente credencia parlamentares a tocarem a defesa de um governo. Ele é vice-líder do governo no Congresso, nome que parece bem mais importante do que o posto realmente é. O Congresso só é formado quando há sessões conjuntas de Câmara dos Deputados e Senado, o que não ocorre mais que um punhado de vezes por ano.
Não é por acaso. A CPI recolhe a cada sessão depoimentos e documentos que apontam que houve, no mínimo, negligência do governo federal em episódios como a crise do oxigênio em Manaus, que matou várias pessoas que precisavam dele em UTIs e ambulatórios, as negociações para a compra de vacinas e a participação de pessoas que sequer têm cargos no governo na definição de políticas de saúde pública. Mas Bolsonaro e o Centrão buscam passar a impressão de que a investigação é só um espetáculo para a mídia que irá terminar dando em nada.
Perguntei a dois políticos extremamente influentes e alinhados ao governo por que figurões como Ciro Nogueira, presidente do PP, um dos maiores e mais tradicionais partidos do Centrão, Flávio Bolsonaro, filho 01 e recém-filiado ao Patriotas do Rio, e o líder do governo Fernando Bezerra, do MDB de Pernambuco, participam pouco da CPI.
Os dois são interlocutores diretos do presidente e, por isso, pediram para que eu não revelasse seus nomes. Mas me disseram a mesma coisa: consideram que o ambiente está “controlado”, sem revelações bombásticas e que, assim, não há com que o governo se preocupar.
Heinze foi franco ao admitir ‘não ter tempo’ para checar a veracidade do que recolhe no WhatsApp e leva à CPI.
Ambos confiam que, caso o procurador-geral da República, Augusto Aras, receba da CPI um relatório carregado de indícios de crimes contra a saúde pública, não terá pudores em engavetá-lo. Do mesmo modo, se indícios de crime de responsabilidade fomentarem mais pedidos de impeachment, estão certos de que o presidente da Câmara, Arthur Lira, do PP, eleito com ajuda de Bolsonaro, dará conta de colocá-los para hibernar numa gaveta.
Assim, o governo e seus aliados no Centrão buscam mostrar que “têm mais o que fazer” e que há condições para dar prioridade à tramitação de projetos que interessam ao governo, como reformas da máquina pública, flexibilização do acesso a armas e criação para aplacar a crise econômica agravada pela pandemia, além de tocar as articulações para as eleições de 2022.
Não à toa, Ciro Nogueira disse coisa parecida num encontro com empresários e banqueiros, num artigo que publicou na Folha de S.Paulo e numa entrevista ao Valor Econômico há alguns dias.
Enquanto isso, o pelotão da cloroquina atua para reforçar as mentiras e as teorias da conspiração que embasam a defesa do medicamento e do inexistente tratamento precoce da covid-19, lançar suspeitas sobre as vacinas e tentar enganar quem assiste às sessões sobre uma inexistente “divisão” entre cientistas sobre a doença.
Para isso, usam como principal fonte um grupão de WhatsApp. E Heinze foi franco ao admitir para mim “não ter tempo” para checar a veracidade do que recolhe ali para lançar ao vivo, em rede nacional, na CPI.
Em alguns casos, como me explicou o senador Marcos Rogério, é preciso “desapegar da lógica” para entender a defesa do governo. Bem-organizado, o pelotão da cloroquina vem conseguindo comprar brigas, fomentar bate-bocas e dar um verniz de credibilidade às medidas adotadas pelo presidente.
O grupão de zap contra a ciência
Dos três senadores do pelotão, quem mais surpreende em seu novo papel é o ruralista Luis Carlos Heinze. Deputado federal por 20 anos e, até o começo da CPI, pouco interessado em se fazer ouvir em temas que não sejam o agronegócio e a defesa do uso de agrotóxicos, ele ganhou dos senadores o apelido de Coronel Cloroquina por seu desempenho na comissão.
Foi Heinze quem me relatou como o grupo levanta estudos e informações para confrontar cientistas, acadêmicos e gestores de saúde em questões como uso da cloroquina, políticas de saúde pública e contratos para a compra de vacinas.
“Quem nos alimenta, hoje, [é um grupo de WhatsApp que] tem professores e cientistas ligados à USP [Universidade de São Paulo], às universidades federais do Rio de Janeiro, do Rio Grande do Sul, do Rio Grande do Norte, de Goiás. Esse pessoal está ativo nessa questão e nos alimentando”, me garantiu.
Ele me deu um exemplo. Disse que, quando pede no grupo um estudo randomizado sobre a cloroquina ou a ivermectina, “na hora aparecem três: da Austrália, da Inglaterra, outro dos Estados Unidos”. O senador é assíduo no grupo virtual, no qual admite ser pautado pelas conversas entre os membros. “Porque não temos tempo de olhar essas questões”, esquivou-se.
Não é, a princípio, um problema. Mas Heinze foi incapaz de – ou preferiu não – me dar o nome de um dos “professores, cientistas e médicos” que fazem sua cabeça. “Não vou dar nomes, porque é um encontro privado nosso. São especialistas que têm pesquisas no mundo inteiro. São gente nossa, que trabalha e advoga por essa questão” [do tratamento precoce], afirmou.
Tudo o que Heinze diz é haver ali gente ligada ao Médicos Pela Vida, grupo que briga com o consenso científico e usa informações falsas para dar verniz científico à defesa da cloroquina e de outros medicamentos sem efeito algum contra a covid-19. O grupo chegou a preparar um abaixo-assinado defendendo o inexistente tratamento precoce e o enviou a Bolsonaro. Se Heinze me falou a verdade, alguns de seus orientadores sobre a pandemia são signatários do documento.
Heinze me contou que a disposição em buscar conselhos no tal grupão de zap começou com ele e Eduardo Girão. E segue a ser tarefa de ambos, que depois compartilham as fake news com Marcos Rogério.
O trio joga junto e está “mais afinado nessas questões”, me disse Heinze. “Nem o governo tem essas informações desse pessoal que estuda [o inexistente] tratamento precoce contra covid-19”, falou, o que não é verdade, a julgar pelos depoimentos da médica negacionista Nise Yamaguchi e de um vídeo que veio a público nos últimos dias em que Arthur Weintraub, à época assessor da Presidência, comanda uma reunião com um grupo de médicos bolsonaristas.
É possível que as informações falsas do grupão tenham feito a cabeça do pelotão da cloroquina a tal ponto que Marcos Rogério tentou me convencer de que não havia má intenção na insistência do presidente em propagandear a cloroquina.
Em dado momento da entrevista que me deu em seu gabinete, ele falou não ver diferença entre uma publicidade de remédio e a postura de Bolsonaro com a cloroquina e o incentivo à produção do medicamento. Ao final da explicação, me disse que eu precisava me “desapegar da lógica” para entendê-lo. Este trecho da conversa que tive com Rogério merece ser ouvido na íntegra.
Quanto a coisa aperta, o Planalto intervém
Marcos Rogério me contou que as reuniões de preparação para a CPI costumam reunir as assessorias dos senadores. “A gente tem feito poucas reuniões. A gente trabalha mais com as assessorias. As nossas assessorias trabalham articuladas”.
Aqui há uma ressalva importante. Girão disse, numa entrevista por escrito (ele não aceitou me atender por telefone, chamada de vídeo ou pessoalmente), que é “independente” e negou as reuniões que foram confirmadas por Rogério e Heinze.
“Na condição de independente, não me reúno com senadores da oposição e da situação. Rogério e Heinze sabem que não faço o jogo do governo ou dos oposicionistas”, jurou. “Tenho conversado com o senador Heinze e com médicos apenas sobre o tratamento preventivo/precoce , algo que transcende a questão político-partidária. Trata-se da busca pela verdade na questão científica”, escreveu, sem conseguir fazer sentido.
O objetivo dos ensaios é causar o máximo de ruído e confusão, de forma a minimizar o impacto do que a CPI vem trazendo à tona.
Mas há situações que expõem a omissão do governo e extrapolam a capacidade do pelotão da cloroquina – como, por exemplo, a do relatório do Tribunal de Contas da União que acusa o Ministério da Saúde de abuso de poder, ineficiência e omissão durante o combate à pandemia e na compra de vacinas. Para tratar de casos assim, há reuniões no Palácio do Planalto. Heinze, o vice-líder do governo Marcos Rogério, e o líder do governo, Fernando Bezerra, costumam participar delas.
Também muda a fonte que irá municiar o pelotão. Sai de cena o grupão de zap e entram ministros próximos a Bolsonaro, como o general da reserva Luiz Eduardo Ramos, chefe da Casa Civil, Flávia Arruda, indicada pelo Centrão para cuidar da articulação política como ministra da Secretaria de Governo, e Onyx Lorenzoni, ministro da Secretaria-Geral da Presidência.
Nesses encontros, o gabinete de Bolsonaro, o líder no Senado e dois terços do pelotão da cloroquina definem como funcionará a defesa na CPI – a ser executada por Heinze, Rogério e Girão. Aí, cabe aos ministros produzir linhas do tempo, buscar datas de discussões e reuniões que o governo julga serem capazes de eximi-lo das suspeitas.
No caso da falta de respostas à Pfizer sobre a oferta de vacinas para aplicação em 2020, por exemplo, os ministros montaram um calhamaço com dados sobre quem participou das reuniões, trocas de e-mail, telefonemas, pareceres jurídicos e tudo que possa indicar o andamento. Como no caso do grupão do zap, o intuito é o mesmo: inocentar Bolsonaro.
O objetivo dos ensaios é causar o máximo de ruído e confusão, de forma a minimizar o impacto do que a CPI vem trazendo à tona. Isso é atingido em etapas. A primeira ocorre ao vivo, nas transmissões das sessões, em que os senadores seguem o roteiro de perguntas e intervenções combinado com o Palácio do Planalto. Em seguida, elas são editadas em pequenos vídeos ou memes destinados a viralizar nas redes sociais bolsonaristas.
Uma simples consulta no Google Trends, serviço que monitora a frequência de buscas por um determinado nome ou assunto na internet num período específico de tempo, revela a súbita popularidade que os serviços prestados ao negacionismo renderam ao pelotão da cloroquina.
Ivermectina só no discurso
Senador mais votado em Rondônia em 2018 – teve 324.939 votos –, Marcos Rogério colou sua imagem no perfil ideal do eleitor bolsonarista: conservador, abraçado ao combate à corrupção e favorável ao projeto da vida de Deltan Dallagnol, as “dez medidas contra a corrupção”.
Rogério é advogado, o que provavelmente lhe deu o raciocínio rápido e a falta de pudor para atacar adversários com adjetivos como “covarde” ou insinuar que estão “nervosos”, sempre com a voz melíflua de radialista que é ouvida quase o tempo todo na CPI. Ele ganhou assento na comissão por ser vice-líder do governo no Congresso, e a exposição lhe rendeu notoriedade nacional.
Marcos Rogério não se importa de dizer que não faz o que defende.
Na manhã de sexta-feira em que fui ao seu gabinete para entrevistá-lo, no fim de maio, eu já era o terceiro jornalista que Rogério recebia no dia. Naquela tarde, ele falaria ainda a mais um veículo, a Globo News, quando protagonizou um lamentável espetáculo de machismo e desrespeito à jornalista Natuza Nery. Ao vivo e em rede nacional, como de hábito.
Na conversa comigo, o senador não fez rodeios. Disse que tem lado e joga no time do governo. Sua posição, no entanto, já foi criticada pelo próprio partido, o Democratas.
Rogério não se importa de dizer que não faz o que defende. Na CPI, advoga pelo uso de remédios para tratamento precoce e preventivo da covid-19 – que, nunca é demais lembrar, não têm efeito algum contra a doença e podem ter consequências perigosas para a saúde. Mas admite que não usa a ivermectina, um vermífugo que bolsonaristas apregoam ser capaz de prevenir a doença.
Quando questionado sobre a contradição, me disse defender o direito de médicos receitem o medicamento que julguem melhor. Não é isso que a CPI apura, mas sim, se o governo usou o tal tratamento precoce para levar brasileiros a acreditarem que a doença é facilmente tratável – o que é mentira.
Tal sinceridade, porém, desapareceu quando perguntei a respeito da estratégia que deu ao pelotão da cloroquina mais destaque perante o eleitorado do que o recebido pelos comandantes do Centrão no Senado. “Não sei te responder”, falou, esperando que eu acreditasse. Não foi o caso – insisti na pergunta. “Ah, pô. Não sei. Aí é cada um”, desconversou. Em nota, Ciro Nogueira reconheceu que está ausente na defesa do governo.
“Infelizmente a CPI tem sido conduzida de modo a culminar em um relatório que já estava pronto antes mesmo de começarem as reuniões. Acredito que os questionamentos deveriam servir para responder aquilo que requer esclarecimentos, não para confirmar narrativas pré-estabelecidas. Se já se traçou um desfecho antecipadamente, não resta muito espaço para contribuir”, escreveu.
Já Fernando Bezerra saiu-se com outra. A assessoria do emedebista me disse o seguinte: “com exceção dos depoimentos da semana passada, quando o senador Fernando Bezerra Coelho estava em Pernambuco e não pôde participar pelo sistema remoto, ele participou de todas as sessões da CPI”.
Sobre o questionamento que fiz, a assessoria me enviou transcrições de sessões das quais ele participou e disse que “em algumas sessões ele fez 84 intervenções”. Os números não mudam um fato: Bezerra não busca protagonismo na comissão.
De Miami para a cloroquina
Eduardo Girão é dono de um patrimônio declarado de R$ 36 milhões, o suficiente para torná-lo o quarto senador mais rico da atual legislatura. Em 2018, intoxicado pelo moralismo de ocasião da extrema direita, o empresário com negócios em hotéis e segurança privada e de valores deixou as praias da Flórida, nos Estados Unidos, e voltou ao Ceará para surfar a onda fácil da “nova política”.
Ultraconservador, ele é um opositor feroz do direito ao aborto e defensor entusiasmado da educação domiciliar, também chamada de homeschooling, uma obsessão da extrema direita. Foi apoiado em pautas do tipo que ele se elegeu senador pelo Pros. Em pouco mais de dois anos de mandato, já mudou de partido – está no Podemos, do lavajatista paranaense Alvaro Dias.
Girão costuma se dizer independente. Na prática, atua na CPI da Covid como um defensor ferrenho de Bolsonaro, achando mais importante investigar governadores de oposição que descobrir por que o governo federal deixou passar a chance de comprar antecipadamente vacinas que poderiam ter salvado a vida de 90 mil brasileiros.
Durante o interrogatório do diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas, Girão tirou do bolso uma mentira para plantar dúvidas em quem assistia à CPI: disse que a vacina Coronavac é fabricada com o uso de células de fetos abortados. Provável motivo: o laboratório paulista é subordinado ao governo João Doria, do PSDB, ex-aliado e hoje adversário de Bolsonaro que ganhou protagonismo ao aplicar a primeira dose de uma vacina contra a covid-19 no Brasil.
Naquele 27 de maio do depoimento de Covas, o país registrou 2.130 novas mortes por covid-19 e rompeu a barreira de 456 mil vítimas fatais da doença. Ontem, 7 de junho, finalmente houve alguma reação da CPI ao festival de desinformação promovido pelo pelotão da cloroquina: o senador Alessandro Vieira, do Cidadania do Sergipe, informou que iria enviar representação ao Conselho de Ética do Senado contra Heinze, o Coronel Cloroquina, pelas “reiteradas informações falsas” propagandeadas por ele nas sessões da comissão.
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