Um tiro na cabeça, disparado de uma brecha de Mata Atlântica pelo ex-capitão do Bope Adriano Magalhães da Nóbrega encerraria três meses de preparativos de mais uma execução do Escritório do Crime. A noite de 3 de fevereiro de 2018, porém, não terminou como o planejado. Ao avistar pela mira do fuzil de precisão o miliciano Wellington da Silva Braga, o Ecko, entre os convidados da festa organizada pelo alvo da tocaia, Marcelo Diotti da Matta, o ex-caveira abortou a missão.
Os detalhes da emboscada constam em denúncia do Ministério Público do Rio de Janeiro contra quatro membros da organização criminosa, documento de 106 páginas ao qual o Intercept teve acesso com exclusividade.
A peça sustenta que o chefe da milícia de matadores, capitão Adriano, preferiu conter a sanha assassina a desencadear uma guerra contra Ecko, o líder do maior grupo paramilitar em atividade no Rio de Janeiro, o Bonde do Ecko (originalmente conhecido como Liga da Justiça). O Disque-Denúncia oferecia uma recompensa de R$ 10 mil por informações que levassem à sua prisão. Mas, apesar disso, Ecko zanzava livremente entre os convivas à beira da piscina na luxuosa residência do casal Marcelo da Matta e MC Samantha Miranda, no condomínio Greenwood Park, na Barra da Tijuca.
Ecko acabou morto três anos depois, em 12 de junho de 2021, numa operação da polícia realizada para prendê-lo, na comunidade das Três Pontes, em Paciência, na Zona Oeste do Rio. Fotos obtidas pelo Intercept sugerem que Ecko foi morto por disparo à queima-roupa, que deixou no entorno da perfuração uma queimadura. A Polícia Civil informou que o miliciano reagiu ao cerco, quando tomou o primeiro tiro. O segundo, ainda de acordo com a polícia, foi disparado por um policial dentro da van que levaria Ecko para o hospital, após o miliciano supostamente tentar pegar a arma de um agente. Assim como o ex-caveira, Ecko leva para o túmulo uma complexa rede de relações.
A investigação do Ministério Público detalha o modo de atuação do Escritório do Crime. O documento mostra que o ex-caveira desistiu de matar Matta por consideração a Ecko. “Ocorre que, em dado momento, ADRIANO abortou a operação criminosa, haja vista que percebeu a presença de um convidado na festa, quem seja, o miliciano WELLINGTON DA SILVA BRAGA, vulgo ‘ECKO’, o qual nutria relação de amizade e respeito”, diz o documento do MP, datado de 13 de abril de 2020. A justiça acatou a denúncia dois meses depois, quando os acusados foram presos.
Poupado de ser executado em plena festa de aniversário, Marcelo da Matta acabou fuzilado 38 dias depois, na mesma noite em que a vereadora Marielle Franco, do PSOL, e seu motorista, Anderson Gomes, foram mortos.
Naquela noite, 14 de março de 2018, o Rio de Janeiro vivia sob intervenção federal na segurança pública. Na tarde da mesma data, o partido de Marielle havia ingressado com uma ação no Supremo Tribunal Federal pedindo a anulação do decreto assinado pelo presidente Michel Temer, em 16 de fevereiro, que nomeou o general do Exército Walter Souza Braga Netto, do Comando Militar do Leste, como interventor. Horas depois, sem o miliciano Ecko por perto, Adriano da Nóbrega não se sentiu melindrado por Braga Netto e consumou seu plano de morte.
As investigações indicam que Marcelo da Matta havia entrado no radar do Escritório do Crime após a descoberta de que ele planejava matar o capitão Adriano. Ligado à exploração de máquinas caça-níqueis em Campo Grande, reduto de Ecko na Zona Oeste do Rio, Matta pretendia ampliar sua área de atuação à Gardênia Azul, onde já havia comprado um depósito de gás. As informações constam no processo que tramita em segredo de justiça na 1ª Vara Criminal Especializada do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
De acordo com a denúncia, antes de o ex-caveira se posicionar em meio à mata, na noite de 3 de fevereiro, seu bando havia cumprido uma série de etapas para o planejamento da ação. Um trabalho minucioso, com integrantes destacados para pesquisar armas mais adequadas na deep web, encomendar placas clonadas e acompanhar os passos da vítima, inclusive nas redes sociais. Foi a partir desse monitoramento que os matadores descobriram que Marcelo da Matta e sua mulher, Samantha Miranda, pretendiam comemorar naquela ocasião o aniversário e a mudança para o novo endereço no Condomínio Greenwood.
Apontado no inquérito como exímio atirador, “ostentando em sua ficha militar inúmeros cursos de treinamento tático, tendo em seu currículo o título de sniper”, capitão Adriano foi sozinho para a mata, vestindo roupas camufladas, balaclava e o fuzil especialmente preparado para disparos de precisão à longa distância – com tripé e mira telescópica. Por meio de radiotransmissores, ele recebia informações dos demais participantes da empreitada, de acordo com o MP. Foi por rádio que o ex-caveira deu a ordem para abortar o ataque.
O bando deixou o condomínio em direção a Rio das Pedras, reduto do Escritório do Crime, relataram os investigadores. Os matadores estavam divididos em três carros posicionados próximos à casa da vítima. Dois dos veículos foram identificados na investigação, uma Land Rover e um Corolla, este com placas clonadas. O terceiro carro não teve as características identificadas, assim como alguns dos ocupantes dos veículos.
Uma noite de muitas coincidências
Com o adiamento da execução, o grupo reiniciou o monitoramento das redes sociais do casal. Uma nova placa clonada foi encomendada, dessa vez para o Fiat Doblò que foi usado na segunda emboscada a Marcelo da Matta, às 23h20, na saída de um restaurante na Barra da Tijuca no dia 14 de março. Pouco antes, noutro extremo da cidade, Marielle e Anderson Gomes haviam sido mortos a tiros de submetralhadora 9mm, provavelmente uma HK MP5.
As investigações apontam uma série de outras coincidências que ligam as duas execuções. O fornecedor das placas clonadas usadas nas duas emboscadas a Marcelo da Matta, nas noites de 3 de fevereiro e 14 de março de 2018, foi o mesmo que confeccionou por R$ 450 cada uma das placas do Cobalt usado no ataque à vereadora. As coincidências não param por aí. A análise dos processos do Escritório do Crime e da execução da vereadora do PSOL revela que o sargento reformado da PM Ronnie Lessa, réu acusado de assassinar Marielle, também tinha ligação com a milícia da Gardênia Azul, que no passado era chefiada pelo então vereador Cristiano Girão.
Em 2009, o político foi preso, condenado e perdeu seu mandato após ter sido indiciado no relatório final da CPI das Milícias, presidida pelo então deputado estadual Marcelo Freixo, na época no PSOL, com quem Marielle trabalhou antes de ser eleita. Uma semana antes de sua morte, o mesmo Girão foi flagrado zanzando por corredores e gabinetes de aliados na Câmara de Vereadores do Rio, como o Intercept revelou.
Ronnie Lessa também era dono de uma Land Rover semelhante à usada na primeira tocaia a Marcelo da Matta e mantinha relações com os milicianos de Rio das Pedras, em especial o capitão Adriano. Ambos passaram pelo curso de formação do Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar, o Bope, enquanto atuavam paralelamente na segurança de famílias ligadas à máfia dos jogos.
Os dois ex-caveiras também mantinham laços com o clã Bolsonaro. Lessa era vizinho de Jair e de seu filho, o vereador Carlos Bolsonaro, no condomínio Vivendas da Barra. Já o capitão Adriano, chefe do Escritório do Crime, havia sido homenageado por Flávio Bolsonaro, então deputado estadual, com a maior honraria da Assembleia Legislativa do Rio, a medalha Tiradentes. O filho 01 também havia nomeado em seu gabinete a mãe e a mulher do matador de aluguel no esquema de rachadinha, segundo denúncia do Ministério Público do Rio de Janeiro.
De volta ao dia 14 de março, nas horas que antecederam as execuções de Marielle Franco e de Marcelo da Matta, os matadores envolvidos nas duas tocaias passaram por Rio das Pedras, onde as ruas da comunidade serviam de estacionamento para ocultar a frota de clonados usados nos crimes. O Chevrolet Cobalt e o Fiat Doblò empregados nos dois atentados foram abastecidos num posto de gasolina localizado no acesso à comunidade.
Integrante do Escritório do Crime fez delação premiada
Os matadores também costumavam se reunir antes e depois das empreitadas criminosas na padaria Sabor da Floresta, onde a Delegacia de Homicídios solicitou imagens do circuito interno de segurança do estabelecimento logo após as mortes de Marcelo e Marielle. A iniciativa, contudo, não teve o resultado esperado. Segundo depoimento de um integrante do Escritório do Crime, que fez acordo para delação premiada, Adriano foi informado sobre a iniciativa e se antecipou à polícia, conseguindo sumir com as imagens. O delator, que atuava no monitoramento dos hábitos das vítimas, confirmou que o grupo agia de maneira segmentada, com gente voltada para cada etapa de planejamento das execuções.
Ao detalhar o modo de atuação do Escritório do Crime, o delator confirmou a relação direta entre Ronnie Lessa e um dos principais nomes da milícia de matadores: Leonardo Gouveia da Silva, o Mad. Preso em junho de 2020, Mad foi o dono de um dos endereços usados por Lessa para ocultar armas. Há suspeita de que ele teria ido ao local para dar fim à arma usada no ataque à vereadora do PSOL. De acordo com o delator, a organização criminosa seguia à risca uma espécie de manual do matador, criado pelo capitão Adriano. O documento trata do uso sistemático de tecnologia para mapear os passos dos alvos, ferramentas de rastreio de celulares, emprego de armas de guerra, planejamento minucioso, uso de camuflagem e carros com placas clonadas.
Sob intervenção, a polícia do Rio pouco avançou no caso Marielle. Tampouco os indicadores de criminalidade foram reduzidos.
A “caçada às vítimas” nas redes sociais também foi repetida por Ronnie Lessa. Assim como o bando de Adriano da Nóbrega varreu o Facebook e o Instagram em busca de informações sobre Marcelo da Matta e Samantha Miranda, o sargento reformado da PM também usou as redes para mapear os passos de Marielle Franco e pesquisar outros nomes de políticos ligados a partidos de esquerda – especialmente, o PSOL.
Em meio ao depoimento do delator, um ponto coloca em xeque a versão sustentada pelo MPRJ de que Lessa e o ex-soldado da PM Elcio Vieira Queiroz, também réu na execução da vereadora, agiram sozinhos e em apenas um carro na noite de 14 de março. De acordo com o delator, as emboscadas sempre eram realizadas com o apoio de ao menos um outro veículo. Foi assim que os matadores da milícia atuaram no fuzilamento de Marcelo da Matta e em outros três crimes relacionados à máfia dos jogos.
Ronnie Lessa segue todos os mandamentos da cartilha do Escritório do Crime, com exceção do uso de apoio, sustentam o MPRJ e a Delegacia de Homicídios, contrariando a versão anterior de que dois carros estavam na ação que culminou nas mortes de Marielle e Anderson. Horas antes do crime, Elcio Queiroz foi ao Condomínio Vivendas da Barra para buscar Lessa, o vizinho do presidente Jair Bolsonaro e do vereador Carlos Bolsonaro. Na ocasião, o ex-PM estaria dirigindo um Renault Logan e teria feito contato da portaria com alguém na casa de Bolsonaro, como revelou o Jornal Nacional.
O laudo fonoaudiológico de análise da voz captada pelo sistema de verificação da portaria do Vivendas da Barra, contudo, apontou discrepância entre a voz do porteiro que disse ter ligado à casa de Jair Bolsonaro e de outro funcionário, que teria atendido Queiroz. O episódio ganhou ainda mais relevância após o próprio presidente ter dito que pegou a gravação para evitar que fosse adulterada.
Além de não esclarecer totalmente o episódio, a investigação também não detalha se Queiroz e Lessa saíram no mesmo carro e, sobretudo, onde a dupla deixou o veículo antes de seguir para o ataque com o Cobalt, que estava estacionado nos arredores do Condomínio Floresta, em Rio das Pedras. Naquela noite, após as execuções, o capitão Adriano, Mad e os demais envolvidos na morte de Marcelo da Matta seguiram para Rio das Pedras. Lessa e Queiroz passaram pelo Vivendas da Barra, como mostram as análises dos sinais captados pela Estação Rádio Base da região vindo dos celulares usados pela dupla. Eles terminaram a noite num bar na Avenida Olegário Maciel, na Barra da Tijuca.
Herói dos Bolsonaro
Capitão Adriano era considerado um mito entre os matadores do Escritório do Crime, segundo o MPRJ: exercia forte influência sobre o bando, o qual nutria “verdadeira reverência a sua representatividade no submundo do crime”. Contraditoriamente, no entanto, os promotores atribuem a Mad a chefia do bando de matadores. Logo em seguida, descrevem o capitão como um dos principais chefes do grupo paramilitar que domina as favelas de Rio das Pedras e da Muzema.
“Adriano foi apontado como uma das lideranças da milícia de Rio das Pedras, pelo que orbitava, desta forma, entre duas perigosas organizações criminosas que mantêm estreitas conexões”. E acrescenta: “na atuação do grupo criminoso há emprego ostensivo de armas de grosso calibre. Agressividade e destreza nas ações finais revelam o mesmo padrão de execução. Fortemente armados e com trajes que impedem a identificação visual, tais como balaclavas e roupas camufladas”.
O matador de aluguel, que já foi chamado de herói por Jair Bolsonaro, foi morto numa controversa ação conjunta da polícia do Rio de Janeiro e da Bahia.
Capitão Adriano foi cercado numa propriedade rural do vereador Gilson Lima, o Gilsinho da Dedé, do PSL, em Esplanada, no interior da Bahia. O ex-caveira foi morto por homens do Bope ao supostamente reagir à ação policial, em 9 de fevereiro de 2020.
Passados três anos das execuções de Marielle e Anderson, a Delegacia de Homicídios e o Ministério Público do Rio não conseguiram apontar os mandantes e a motivação do crime. Os matadores de Marcelo da Matta foram presos.
Sob o comando do general interventor, a polícia do Rio pouco avançou no caso Marielle. Tampouco os indicadores de criminalidade foram reduzidos no estado. Mesmo assim, Braga Netto foi levado por Jair Bolsonaro para participar do governo, onde atualmente é ministro da Defesa.
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