Professor de Direito na Universidade Federal Rural do Semi-Árido, em Mossoró, Rio Grande do Norte, e doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, Felipe Castro estuda a magistratura brasileira a partir da chamada sociologia das elites.
No artigo “Aristocracia judicial brasileira: privilégios, habitus e cumplicidade estrutural”, ele e Marcelo Ramos, também professor de Direito, analisam como juízes e desembargadores se distinguem tanto das outras carreiras do funcionalismo público e, de maneira extremamente radical, da maioria da população. Trazendo questões como raça, solidariedade entre elites (políticas, econômicas) e meios para rever essa estrutura que contribui para a desigualdade social brasileira, Castro conversou com o Intercept.
Intercept – Gostaria que você explicasse, de maneira sintética, o termo “aristocracia” para pensar o judiciário brasileiro: é possível elencar características entre estes membros do serviço público e uma corte régia?
Felipe Castro – Quando propusemos a categoria aristocracia para tratar da magistratura brasileira não foi como um artifício retórico ou como uma hipérbole, mas sim para revelar a adequação desta função com o sentido original da palavra. No senso comum, o termo remete a noção de uma nobreza de sangue, transmitida hereditariamente, mas significa também a designação daqueles que não vivem necessariamente da renda do seu trabalho, ou seja, sujeitos que recebem em função da sua posição social, do seu status. Nosso argumento é que, ao receberem inúmeros benefícios, de naturezas e quantidades distintas, que se somam aos seus altíssimos salários base, as magristradas e magistrados brasileiros deixam de depender apenas da renda do seu trabalho, como qualquer outro funcionário público, para constituírem uma elite dentro de elite da burocracia estatal. É importante que se diga que a magistratura não é a única função do campo jurídico brasileiro que se manifesta como uma aristocracia, mas tem um lugar de destaque em nossas análises pela sua história e por congregar os benefícios e privilégios que as demais profissões jurídicas procuram replicar.
O recrutamento mediante concurso público, ainda que signifique um avanço em relação aos métodos previamente existentes, quando aplicado sobre uma sociedade extremante desigual, como a brasileira, mascara a situação concreta de privilégios nas quais os sujeitos acumulam o capital social, cultural e econômico necessários ao ingresso e progressão na magistratura.
Evidentemente, não se trata de uma nobreza de sangue que circunda e auxilia um monarca, mas se trata de uma nobreza togada que se associa com as demais elites do poder na condução da administração pública e na preservação e ampliação de seus privilégios corporativos, como ficou claro na sua investigação.
Um trecho do artigo diz: “o caráter aristocrático e elitista da magistratura é mascarado pela racionalização e pela burocratização dos mecanismos de recrutamento, normalização e progressão na carreira”. A nota do TJPE é justamente isso. Gostaria de ouvir sua opinião sobre a utilização desse expediente mesmo em um contexto inédito para a população brasileira (na verdade, mundial), o da pandemia, com impactos gravíssimos no emprego e na alimentação das pessoas. O que isso diz ou reafirma sobre o judiciário brasileiro?
Os operadores jurídicos em geral, mas sobretudo os magistrados, por ocuparem o vértice da prática jurídica, é dizer, o momento da decisão judicial, possuem uma espécie muito peculiar de poder, que é o de fazer existir na objetividade as suas visões de mundo. Isto pode parecer complicado, mas significa que a linguagem jurídica – e consequentemente aqueles/as que estão melhor posicionados para operá-la – são capazes de conservar ou modificar parte das condições materiais da vida, além de fazer crer que suas escolhas são as únicas justas e corretas.
É justamente o que observamos no caso investigado. Em meio a uma pandemia que compromete a segurança alimentar dos brasileiros, o TJPE aumentou em 46% o auxílio-alimentação de uma classe de pessoas que sequer depende deste benefício para comer: como justificar? Apenas por meio de um exercício retórico de abstração, que significa subtrair o contexto, um procedimento muito típico do raciocínio jurídico tradicional. Dessa forma, afastando-se a pandemia e a fome, explica-se que o pleito é uma reivindicação antiga da categoria, a Amepe, e que foi autorizado pelo CNJ. Em suma, não importa se é imoral se o ato é juridicamente perfeito.
O papel do CNJ na nota também é importante, porque o órgão é mobilizado para demonstrar que as instâncias de controle do Judiciário aprovaram a medida do TJPE. Fica oculto, no argumento, que o CNJ é um órgão de controle interno da magistratura, composto por oito juízes em quinze membros (artigo. 103-B da Constituição Federal). Assim, ao julgarem legal o aumento do auxílio- alimentação dos magistrados pernambucanos, os magistrados do CNJ decidem potencialmente em causa própria.
Por fim, o assim chamado fiscal da lei, o Ministério Público, não tem interesse em oferecer qualquer obstáculo à ação, uma vez que frequentemente distorce o princípio da igualdade para pleitear a extensão para si de benefícios recebidos pela magistratura. Em nova abstração, que mais uma vez subtrai as enormes desigualdades nacionais do contexto, alega-se a igualdade na Casa Grande, entre promotores e juízes, para defender não a exclusão de um auxílio ou benefício imoral, mas seu compartilhamento.
Como a tecnicidade, na sua opinião, antepara atos legais – mas não necessariamente morais – e, assim, termina sendo naturalizada pela população? Ainda: por qual razão não há, na sua perspectiva, um movimento popular mais forte para reaver os salários altíssimos e benesses de um dos judiciários mais caros do mundo?
Na minha opinião, a resposta completa à sua pergunta precisa ir às origens do estado brasileiro, para considerar ali o peso desmedido que os bacharéis em Direito tiveram na construção do Império. Minha hipótese é que em função da baixa estratificação de nossa sociedade escravocrata oitocentista, a opção pelo ingresso na magistratura foi a ocupação por excelência escolhida pelos filhos de nossas elites agrárias que iam se transformando em urbanas. A função garantia sua reprodução social e a participação política de seus interesses familiares, fazendo surgir uma enorme identificação entre estes segmentos, no sentido mesmo que era praticamente impossível distinguir as elites culturais, jurídicas, políticas e econômicas do período. A hipótese, naturalmente, demandaria mais espaço para ser desenvolvida.
Porém, para não ficar na regressão ao infinito, eu acredito que podemos recortar o problema a partir da redemocratização. Diferentemente dos militares, os magistrados saíram da transição fortalecidos, apesar de terem sido colaboradores de primeira ordem do regime. Durante a distensão, o campo jurídico logrou dissociar-se do apoio ao golpe de 1964 e aos regimes, fazendo crer que a sua história não fosse a da maioria dos colaboracionistas, mas sim as de homens com Victor Nunes Leal ou Raymundo Faoro. Ademais, durante as primeiras décadas da Nova República, a atuação do Supremo Tribunal Federal para garantir direitos individuais criou uma espécie de crédito de legitimidade, como chama (o professor de Ciência Política) Fabiano Engelmann, hoje ampliando pelo seu papel no enfrentamento à corrupção. Eu acredito que esses fatores contribuam para que Judiciário passe despercebido pelas pautas dos movimentos sociais ou, se identificado, que ele seja visto como um mal menor ou um mal necessário diante de ameaças mais diretas à cambaleante democracia brasileira.
Qual a origem desse judiciário que é quase uma casta? Ela tem relações com o período escravocrata? O baixo número de pessoas negras, principalmente nas posições mais altas da carreira jurídica tem relação com essa questão?
Eu acredito que não só o Judiciário, mas que toda a forma social brasileira seja profundamente influenciada pela mais longeva e estável instituição da história nacional. As poucas oportunidades de ocupação existentes em uma sociedade que se diferenciava sobretudo entre senhores e escravos, o que fazia com que os homens livres e libertos gravitassem o poder senhorial, fez com que a magistratura se tornasse talvez a melhor oportunidade de inserção social aos filhos não herdeiros, além de representar uma posição privilegiada de onde podiam fazer avançar os interesses de seus núcleos familiares de origem.
Na ausência de quaisquer políticas de reparação ou inserção do negro na ordem competitiva, após a abolição formal da escravidão, estava dada a fórmula de perpetuação do privilégio branco no país. A baixa representatividade negra nas altas carreiras públicas está ligada ao fato desses sujeitos/as não possuíram, em regra, as condições sociais privilegiadas nas quais se herda ou acumula os capitais necessários ao sucesso nos disputados concursos públicos; e a nada mais. É justamente o que aponta relatório da Plataforma Justa. Enquanto mulheres negras constituem 25,5% da população, ocupam apenas 6,6% das cadeiras de juízes em nossos TJ’s e apenas 2,1% das de dDesembargadores, fazendo com que existam 7,4 juízes brancos para cada juíza negra e 33,5 desembargadores brancos para uma desembargadora negra.
Vocês falam no artigo sobre uma solidariedade intra-elites que contribui para a manutenção do estado das coisas. Seria essa uma explicação para a capa de intocáveis do Judiciário? Há chance de uma mudança nesse sistema? Se sim, o que você apontaria como caminhos possíveis?
É muito complicado reformar uma máquina em andamento. Todas as iniciativas do período político recente, com potencial de democratizar o Judiciário, foram derrotadas ou esvaziadas pela ação de lobby das associações corporativas desses grupos, como no caso já discutido do CNJ, inicialmente proposto como um órgão de controle externo da magistratura. O poder de pressão do Judiciário sobre os demais poderes, já argumentando teoricamente, pode ser visto concretamente em estudos como os promovidos pela Plataforma Justa, revelando que enquanto o orçamento público do estado de São Paulo cresceu 78% nos últimos dez anos, o do TJSP cresceu 129%, destinando 82% deste apenas para o pagamento da folha. Dito isto, eu não acredito que ações dentro da institucionalidade possam alterar radicalmente esse quadro, embora pense que devemos seguir buscando alternativas.
Por outro lado, existe uma maneira simples e insofismável de responder à sua pergunta: a solução está na formação de uma nova geração de juristas com competências técnicas e humanas para reverter o sentido do jogo a partir de dentro destas instituições. É impossível não concordar, em tese, com esta possibilidade. Porém, as circunstâncias da educação jurídica hoje não apontam para este horizonte. A tendência tem sido a da instrumentalização das universidades públicas no formato dos cursinhos preparatórios, muitas vezes pedida pelos próprios alunos-consumidores. É a lógica do treino e não da educação, vendendo-se como retorno desta fase formativa o emprego bem pago do futuro. Essa dinâmica auxilia no reforço da percepção da função pública como um bem privado do qual o sujeito é dono e merecedor.
Outra possível chave de resposta está na sua pergunta anterior: é preciso que reformas judiciais substantivas sejam encampadas por movimentos sociais, capazes de pressionar publicamente por mudança. Para isso, no entanto, é preciso informação, é preciso conhecer o objeto que se pretende reformar, tornando transparente suas dinâmicas internas.
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