São auspiciosas algumas das primeiras palavras do Código de Ética da Magistratura do Conselho Nacional de Justiça, o CNJ: segundo o texto, é fundamental que juízes e desembargadores (servidores públicos), cultivem “princípios éticos, pois lhes cabe também função educativa e exemplar de cidadania em face dos demais grupos sociais”.
Vou repetir esse trecho: “função educativa e exemplar de cidadania em face dos demais grupos sociais“.
O mais recente gesto educativo e cidadão que o Tribunal de Justiça de Pernambuco, o TJPE, concedeu para a população de um estado que atualmente amarga mais de 800 mil desempregados, foi solicitar ao mesmo CNJ um aumento de 46,23% no auxílio-alimentação destes juízes e desembargadores: o benefício sai de R$ 1.068,00 para R$ 1.561,80.
Sim, em um país passando por sua maior crise sanitária e com 19 milhões de pessoas em situação de fome, o TJPE julgou pertinente solicitar um aumento justamente no auxílio-alimentação.
É preciso dizer que os 541 servidores públicos (repito para que não esqueçamos o que são os magistrados) atuando em Pernambuco estão trabalhando em home office. Também é relevante saber que os salários mensais (sem os cobiçados auxílios) da categoria custam, em valores brutos, R$ 35.462,22 (desembargador), R$ 33.689,11 (juiz 3ª entrância), R$ 32.004,65 (2ª entrância), R$ 30.404,42 (1ª entrância) e R$ 30.404,4 (juiz substituto). Com os auxílios, gratificações, vantagens eventuais e a bastante comum venda de parte das férias (são duas por ano), estes valores frequentemente dobram ou chegam a níveis estratosféricos: em dezembro de 2019, somente uma juíza da capital, Marylusia Pereira Feitosa de Araújo, recebeu um salário de R$ 1.298.550,56 (isso mesmo: um milhão, duzentos e noventa e oito mil e quinhentos e cinquenta reais e cinquenta e seis centavos). A justificativa: pagamento de férias acumuladas. Com a devida autorização do CNJ, é claro.
É possível consultar os vencimentos destes servidores públicos aqui ou aqui. Atualmente, em PE, 144 deles estão aposentados. Em 2017, conforme mostrou a Marco Zero Conteúdo, o custo médio de um magistrado em atividade no estado era de R$ 54.549,00 mensais. No entanto, é quase impossível saber, do valor repassado anualmente aos tribunais de justiça, quanto vai especificamente para juízes e magistrados, já que são justamente nos “extras” flutuantes, e não no salário-base, que turbinam os já bem pagos salários. No site Plataforma Justa, é possível acessar mais dados sobre o Judiciário brasileiro.
Como várias pessoas que estão vivendo no Brasil de ruas repletas de famílias pelos sinais pedindo justamente comida, espantei-me com o aumento do auxílio-alimentação solicitado pela presidência do órgão, cuja autoridade máxima é o desembargador Fernando Cerqueira Norberto dos Santos. Pedi entrevista através da assessoria do órgão, mas fui informada que ninguém do TJPE iria falar comigo. Recebi apenas a lacônica nota abaixo (peço, por favor, que a leiam com atenção):
O Tribunal de Justiça de Pernambuco, o TJPE, esclarece que, em relação à atualização do valor do auxílio-alimentação de magistrados do Estado, o reajuste foi aprovado em 2019 pelo Judiciário Estadual com base no índice da inflação, IPCA, durante o período de junho de 2012 a dezembro de 2018. A partir de requerimento da Associação de Magistrados de Pernambuco, a Amepe, a atual gestão consultou o Conselho Nacional de Justiça, o CNJ, sobre autorização para efetuar ou não o reajuste do valor, que passa a ser de R$ 1.561,80. A medida tem um impacto mensal de R$ 267.145,80. Cabe informar, ainda, que o último reajuste aconteceu em 29 de outubro de 2012 e que a revisão do auxílio alimentação respeita os ditames da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar Nacional nº 101/2000).
Foi assim, coberto pelo manto da tecnicalidade e dos ritos internos (mas reclamando da inflação), que o tribunal com 200 anos de existência justificou o pedido nascido de um requerimento da Amepe, a mesma entidade cujo um expressivo número de integrantes se rebelou ano passado contra um curso antirracismo realizado em seu interior. Para estes, falar sobre raça no Judiciário soa muito ideológico, mas aumentar o próprio auxílio-alimentação em um dos países campeões de desigualdade social no mundo – e logo durante uma pandemia –, não.
“Aumentar gratificações, como no caso do auxílio-alimentação, quando todos estão em home office, ou qualquer outra, é não se sensibilizar com o aperto que todos estamos passando por conta da pandemia. Demonstra, também, as prioridades do Judiciário na aplicação dos recursos. Em vez de acelerar a digitalização dos processos, investir na melhoria do atendimento virtual ou manter as comarcas do interior, o tribunal prioriza aumentar gratificação dos magistrados”, diz o presidente da Ordem dos Advogados de Pernambuco, Bruno Baptista. A entidade publicou uma nota pública sobre o aumento na qual o chama de inexplicável e inoportuno.
‘O que se explica através de códigos e artigos é sempre moralmente defensável?’
“Os reajustes, neste momento de pandemia e de tanto sacrifício para a maioria da população, são impróprios, incabíveis e inaceitáveis. As cúpulas dos serviços públicos, especialmente do Judiciário, recebem um subsídio bem acima da média salarial dos brasileiros – e a OAB defende que, em face da responsabilidade da função que exercem, devem ser bem remunerados. Mas há uma distorção quanto às gratificações. Estas deveriam ter função de verba indenizatória para recompor despesas realizadas em função do trabalho. Mas, na prática, transformaram-se em parte da remuneração de magistrados, membros do Ministério Público e outras autoridades, propiciando, em alguns casos, que alguns ultrapassem o teto remuneratório do serviço público, o chamado ‘fura teto’”, continua Baptista.
No artigo “Aristocracia judicial brasileira: privilégios, habitus e cumplicidade estrutural”, os professores de Direito Felipe Castro e Marcelo Ramos mostram como usar o expediente da tecnicalidade para se valer de mais privilégios é uma característica dos magistrados do país. Diz Felipe: “Em meio a uma pandemia que compromete a segurança alimentar dos (as) brasileiros (as), o TJPE aumentou em 46% o auxílio-alimentação de uma classe de pessoas que sequer depende deste benefício para comer. Como justificar? Apenas por meio de um exercício retórico de abstração, que significa subtrair o contexto, um procedimento muito típico do raciocínio jurídico tradicional. Dessa forma, afastando a pandemia e a fome, explica-se que o pleito é uma reivindicação antiga da categoria e que foi autorizado pelo CNJ. Em suma, não importa se é imoral se o ato é juridicamente perfeito.”
No site da piauí, um texto de Camille Lichotti mostrou como os tribunais estaduais brasileiros, em meio ao desemprego recorde e a pandemia, embolsaram em 2020 ao menos 1,4 bilhão de reais somente em remunerações extras. Estavam lá, de novo, as famosas indenizações por férias não tiradas, ajudas de custo e gratificações. Tudo explicado tecnicamente.
Esta deve ser a pergunta que a sociedade precisa fazer para todos os tribunais de justiça do país: o que se explica através de códigos e artigos é sempre moralmente defensável?
Vale repetir o Código de Ética do CNJ: é fundamental que os magistrados cultivem princípios éticos, pois “lhes cabe também função educativa e exemplar de cidadania em face dos demais grupos sociais”.
Quando os “demais grupos sociais” estão em sua maioria comendo o pão que a pandemia amassou, desempregados e sem comida em casa, é ético e cidadão solicitar aumentos de qualquer ordem, principalmente de uma categoria que recebe salários brutos de R$ 30 mil, em uma média modesta?
Mais aumentos
Como se não bastassem os oceanos de desigualdade perpetrados entre a elite do Judiciário e “os demais grupos sociais”, há outros pedidos de aumento de benefícios por parte do TJPE: assinado também por Fernando Cerqueira, o texto publicado no Diário da Justiça Eletrônico (em 9 de junho, nas páginas 17 e 18) solicita aumento de 10% para 20% no benefício do magistrado que acumula mais de uma comarca. O Projeto de Lei Complementar nº 12/2021, assim, propõe alterar uma outra Lei Complementar, de 2007, elevando o gasto do estado em mais de 10 milhões de reais ao ano.
Vale dizer que o governador Paulo Câmara liberou em janeiro deste ano 36 milhões de reais em benefícios para os magistrados. Somente em 2020, o repasse total do estado para o TJPE foi de R$ 1.504.000.000,00 (um bilhão e quinhentos e quatro milhões de reais), dos quais R$ 1.404.252.045 (um bilhão, quatrocentros e quatro milhões, duzentos e cinquenta e dois mil e quarenta e cinco reais) foram destinados a despesas com “pessoal e encargos sociais” segundo o Portal da Transparência do governo de Pernambuco (e-Fisco da Secretaria da Fazenda). Com auxílio-alimentação, e SEM O AUMENTO CONCEDIDO AGORA PELO CNJ, o governo pernambucano gastou R$ 21.057.569,61.
Para se ter uma ideia do tamanho desse valor, deixamos de ter este ano um censo nacional que custaria R$ 2 bilhões por alegada falta de dinheiro do governo federal.
Felipe Castro chama atenção para a importância do CNJ nestas operações ungidas pelo aspecto técnico da lei. “O papel do conselho na nota também é importante, porque o órgão é mobilizado para demonstrar que as instâncias de controle do Judiciário aprovaram a medida do TJPE. Fica oculto no argumento que o CNJ é um órgão de controle interno da magistratura, composto por oito juízes em quinze membros (artigo 103-B da Constituição Federal de 1988). Assim, ao julgarem legal o aumento do auxílio-alimentação dos magistrados pernambucanos, os magistrados do CNJ decidem potencialmente em causa própria”.
Vale dizer que os pedidos de aumento nos auxílios encaminhados pelo TJPE são ainda seguidos de uma técnica “disponibilidade orçamentária” do estado.
A questão é que a “disponibilidade orçamentária” para o tribunal é terrivelmente diferente da disponibilidade orçamentária para a população que provavelmente jamais vai chegar a ter um salário começando em 30 mil não por incompetência, mas pela imensa dificuldade de acessar os postos mais altos do judiciário.
Comparando: o Programa Chapéu de Palha, criado no governo estadual pernambucano para atenuar a vida de quem fica sem emprego nas entressafras da cana-de-açúcar e fruticultura, paga, durante apenas quatro meses (para não acostumar essa gente na mamata, diriam os que querem “não dar o peixe, mas ensinar a pescar”) os valores de 190 e 232,50 reais para as famílias cadastradas ou 150 e 190 reais para jovens de 18 a 24 anos.
Pagar mais que esses valores não é compatível com a “disponibilidade orçamentária” do estado, é claro. Assim também como não investir na população carcerária ou ainda mais nas escolas estaduais. Prefere-se ignorar que estes espaços não têm relação com o outro.
Os aumentos para os magistrados provocaram também insatisfação entre os servidores menos graduados do TJPE, que reclamam de salário defasado também por conta da inflação e a diferença entre o auxílio-alimentação pago para a categoria (R$ 900) e aquele agora autorizado pelo CNJ (R$ 1.561,80), que equivale a mais de um salário mínimo. O Sindicato dos Servidores do Judiciário de Pernambuco, o Sindjud/PE, organizou para esta quarta, 16, um protesto em frente ao edifício Paula Baptista, anexo do TJPE, centro do Recife. As diferenças salariais entre os cargos técnicos e magistrados são enormes, como se pode ver na folha de pagamento de maio deste ano. Segundo o presidente do sindicato, Alcides Campelo, existem 7 mil servidores no TJPE, a maioria técnicos jurídicos – a média salarial de todos é de R$ 5.478. Ele aponta outro auxílio, o de saúde, como farol da grande diferença salarial dentro do TJ: o de juízes e desembargadores vai de R$ 1.824,27 até R$ 2.127,73. O dos servidores, R$ 279,58 até R$ 1.669,31.
Mover o elefante
Os altos custos da manutenção elite do funcionalismo do Judiciário não são novidade, mas é preciso bater na tecla: aqui, o que se entende como natural é, na verdade, uma aberração. No entanto, a enorme concentração de poder dos magistrados e as relações destes com outros sistemas de poder tornam as mudanças de cenário bastante difíceis. “É muito complicado reformar uma máquina em andamento. Todas as iniciativas do período político recente, com potencial de democratizar o Judiciário, foram derrotadas ou esvaziadas pela ação dos lobbies das associações corporativas desses grupos”, diz o professor de Direito Felipe Castro. Para ele, uma solução seria a formação de novos juristas, mas há um entrave: as circunstâncias da própria educação jurídica. “A tendência tem sido a da instrumentalização das universidades públicas no formato dos cursinhos preparatórios, muitas vezes pedida pelos próprios alunos-consumidores. É a lógica do treino e não da educação, vendendo-se como retorno desta fase formativa o emprego bem pago do futuro. Essa dinâmica auxilia no reforço da percepção da função pública como um bem privado do qual o sujeito é dono e merecedor”.
O presidente da OAB-PE, Bruno Baptista, diz que a sociedade precisa participar mais do debate e pressionar o Judiciário. “A questão aqui é quais devem ser as prioridades no uso dos recursos públicos, que estão cada vez mais escassos: é aumentar gratificações e, consequentemente, os gastos com custeio, ou investir na melhoria dos serviços, enxugando custos? A decisão do Judiciário vai num caminho; cabe à sociedade demonstrar sua inconformidade e participar da discussão”.
Ficam mais algumas perguntas para os tribunais de Justiça do país. Respondê-las sem usar o manto da tecnicalidade e sem subtrair o contexto brasileiro é o desafio:
- Acreditam que há alguma relação entre o alto custo da manutenção do judiciário brasileiro e a pessoa que, à frente do seu carro em um sinal de trânsito, segura uma placa pedindo comida?
- Como a elite dos servidores públicos da Justiça – e que integra um dos judiciários mais caros do mundo – contribui para a desigualdade social brasileira? E o que pode fazer efetivamente para mudar esse cenário?
Esquálidos, aguardamos as respostas segurando uma pesada e entediada senhora nas costas.
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