O governo Bolsonaro pagou ao menos R$ 44,2 mil de verba pública para youtubers governistas que disseminavam o falso tratamento precoce contra o novo coronavírus ao longo de sete meses, entre 2020 e 2021. A verba foi usada para promover campanhas do Ministério da Saúde sobre a covid-19 e outras doenças no YouTube e foi repassada a 34 canais bolsonaristas por meio de anúncios. Os dados foram enviados pelo Ministério da Saúde para a CPI da Pandemia e compilados pelo Intercept.
O canal Foco do Brasil, que diariamente publica as falas de Jair Bolsonaro à claque da porta do Palácio da Alvorada, recebeu R$ 9,3 mil de verba pública por meio dos anúncios no YouTube. O canal, um dos investigados no inquérito autorizado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes sobre os atos antidemocráticos de 2020, chega a faturar mais de R$ 100 mil por mês em propaganda.
Agora, os documentos do Ministério da Saúde mostram que parte desse faturamento veio do próprio governo federal. Só entre os meses de março e abril de 2020, o Foco do Brasil recebeu R$ 2.819,37 de verbas públicas para veicular anúncios do Ministério da Saúde com intermédio do YouTube.
Outro canal sob investigação que recebeu parte dessa verba é o Folha Política. Na relação de pagamentos do Ministério da Saúde, o veículo levou R$ 8,1 mil dos cofres públicos ao longo de sete meses.
O site, conhecido por propagar fake news, foi banido do Facebook em 2018 por fazer parte de uma rede de extrema direita que espalhava mentiras. Apesar disso, continuou prosperando e monetizando no YouTube: entre os investigados no inquérito do STF, o canal foi o campeão de arrecadação em anúncios. Ele recebeu o equivalente a R$ 2,5 milhões nos últimos dois anos. Um troquinho desse dinheiro foi cortesia de Bolsonaro.
Nos dados enviados à CPI, o governo relatou que os pagamentos aconteceram de forma fracionada pelo período de sete meses, a depender da campanha.
Os meses vão de fevereiro a julho de 2020, no início da pandemia, além de outro período, correspondente a março de 2021, um mês antes da instalação da CPI da Pandemia. Os documentos do Ministério da Saúde indicam pagamentos de R$ 578,21 feitos em novembro de 2019, época em que não se sabia da existência do novo coronavírus – por isso, esta reportagem não os considera.
Direcionamento do próprio YouTube
Em ofício enviado à CPI, o Ministério da Saúde se esquivou sobre o pagamento aos youtubers negacionistas. Afirmou que, “apesar de ter havido veiculações” nos canais em questão, “a contratação desse tipo de mídia é feita mediante filtro para atingir determinado público da campanha”.
A pasta negou aos senadores que tenha pedido que as campanhas fossem exibidas “num ou noutro canal especificamente”, mas que elas foram “programadas para impactar usuários da plataforma que se enquadram na segmentação aplicada e que eventualmente consumiram conteúdos ali disponibilizados”.
No sistema de anúncios da rede, os anunciantes fazem a segmentação do público, e o próprio YouTube escolhe quais vídeos e canais vão exibir o conteúdo, com base no perfil da audiência. No caso dos anúncios do governo, a segmentação foi ampla: de acordo com idade e localização. Não há segmentação ideológica, por exemplo. Isso significa que foi o próprio Google que direcionou a verba para os vídeos negacionistas.
Nós já mostramos que, apesar de o YouTube ter afirmado que mudou as regras para monetização de vídeos relacionados à covid-19 para tentar coibir a desinformação, notórios espalhadores de mentiras passaram a pandemia publicando e faturando sem muito incômodo.
Para otimizar os anúncios, remunerados por clique, o YouTube os exibe nos conteúdos cujo público tem potencial maior de ser impactado por eles. Segundo a plataforma, os anunciantes podem escolher vetar determinados canais de exibirem seus anúncios. O governo Bolsonaro, que tem o poder de vetar anúncios para determinados canais (como todos os anunciantes do YouTube), preferiu, é claro, continuar remunerando seu exército de influenciadores.
Envolvimento do gabinete do ódio
O pedido sobre a relação de valores pagos a disseminadores do ineficaz tratamento precoce foi feito pelo senador Randolfe Rodrigues, da Rede do Amapá, ao Ministério da Saúde e à Secom, a Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência da República. Ele se baseou em uma lista de 34 canais bolsonaristas que publicaram 385 vídeos sobre o falso tratamento precoce. Quando a investigação teve início, os youtubers começaram a apagar os conteúdos.
Os dados mostram que foram direcionados a eles R$ 44,2 mil para veicular as campanhas Coronavírus 2020, Febre Amarela, Prevenção à Gravidez na Adolescência, Prevenção Permanente às ISTs, Sarampo e Influenza.
Quase todo o valor, R$ 42 mil, foi repassado por meio da Calia Y2 Propaganda, que tem contrato para publicidade institucional do governo federal. A empresa recebeu R$ 23 milhões para veicular campanhas de tratamento precoce. É dela, por exemplo, a campanha que contratou influenciadores digitais por R$ 23 mil para difundir o “atendimento precoce”, revelado pela Agência Pública.
A campanha, com um jogo de palavras, trocou o “tratamento” por “atendimento”. Mas vendia a mesma ideia defendida por Bolsonaro, de que o suposto tratamento no início dos sintomas com cloroquina, ivermectina e outros medicamentos do chamado “kit covid” poderia salvar os pacientes – o que é mentira. Por causa disso, a campanha foi suspensa pela justiça.
O tratamento precoce é comprovadamente ineficaz contra coronavírus, mas segue sendo defendido pelo presidente e sua base de negacionistas na CPI da Pandemia.
Na semana passada, a CPI aprovou um requerimento para quebrar os sigilos bancário, fiscal, telefônico e telemático da Calia e de outras empresas que também têm contratos de publicidade com o governo. São elas: a PPR – Profissionais de Publicidade Reunidos e a Artplan. Elas recorreram ao STF para derrubar a decisão.
Uma das linhas de investigação da CPI da Pandemia busca esclarecer a relação entre a veiculação e propagação do tratamento precoce com o chamado gabinete do ódio, ligado ao filho de Jair, o vereador pelo Republicanos carioca Carlos Bolsonaro, investigado pela Polícia Federal.
Na semana passada, o presidente da CPI, senador Omar Aziz, do PSD do Amazonas, solicitou ao ministro Alexandre de Moraes um delegado da Polícia Federal para ajudar no trabalho dos senadores.
Correção: 16 de junho, 13h12
Uma versão anterior deste texto afirmava que o canal Foco do Brasil havia recebido ao menos R$ 9,5 mil de verba pública. A informação foi corrigida, visto que a quantia correta é de ao menos R$ 9,3 mil.
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