Sou Rozana Barroso, 22 anos, presidente da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas, a UBES, estudante do pré-vestibular, nascida em Campos dos Goytacazes, interior do Rio de Janeiro. Filha da trabalhadora doméstica Edilma e do músico Wagner, jamais imaginei viver tamanho caos no Brasil. Nos meus sonhos diários em ser a primeira da minha família na universidade, a realidade era bem diferente. Não tinha pandemia de covid-19 muito menos problemas tão graves na educação. Parece que fomos premiados, né? Bem na nossa vez, muitos jovens ficaram sem estudar por falta de internet, merenda e estrutura. Tudo isso transformou a edição 2020 do Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem, na mais desigual da história, com mais da metade dos inscritos ausentes.
Começar o primeiro parágrafo no singular e terminar no plural explica bem meu sentimento em meio a todo esse caos. Certo que há anos não penso só no individual, mas dar conta da minha vida e de milhões de outros estudantes que eu sequer conheço é um dos maiores desafios que já tive até aqui.
Conheci a UBES quando comecei a me questionar sobre minha mãe ainda estar no Ensino de Jovens e Adultos, o EJA. Por que ela precisou trabalhar e parou de estudar?
Depois disso, em 2016, liderei, na mesma semana, a ocupação da minha escola e de outras nove na minha cidade, Campos dos Goytacazes. Ainda em 2016, entrei para o comando estadual e nacional de ocupações e, em seguida, me tornei diretora da União Estadual dos Estudantes do Rio de Janeiro.
Daí, nunca mais parei. Em 2017, me tornei diretora de Escolas Técnicas da UBES. Como a sede da entidade fica em São Paulo, me mudei para a cidade um ano depois. Em maio do ano passado, assumi a presidência da organização e represento mais de 40 milhões de estudantes.
Educação e covid-19
Apesar da excitação por esse novo momento na minha vida, para mim — como para a maioria das pessoas —, esses dias de isolamento têm sido uma aflição. São mil e uma preocupações e ideias.
A pandemia começou um dia antes da minha primeira aula no Cursinho Popular Carolina de Jesus, na zona sul da cidade de São Paulo.
Todo dia acordo cedo, faço tudo sempre igual, me lembra até um dos versos mais bonitos dessa música, “Cotidiano”, composta e cantada por Chico Buarque. Tomo banho, escovo os dentes, vou ler as notícias.
Quero cursar Biomedicina. Como estudante do pré-vestibular e presidente de uma entidade secundarista, minha rotina virou de ponta cabeça, é uma mistura entre estudo online e reuniões e lives da UBES. As salas de aula se tornaram as redes sociais. E foi assim que continuamos nos comunicando e mobilizando milhares de estudantes.
Nunca me esqueço do segundo dia do Enem, em 2020, quando me apoiei na esquina da minha sala e esperei até o último segundo para entrar. Fiquei me questionando milhares de vezes se entraria naquele lugar e faria a prova. Será que sou capaz? Vai dar certo? Posso me contaminar? Vou contaminar alguém? E, pior do que isso, saindo daqui terei que lidar com inúmeras reclamações de estudantes tão injustiçados quanto eu. No fim das contas entrei, mas saí chorando.
Lembrei do meu irmão, estudante do ensino médio, que trabalha como ajudante de pedreiro desde o início da pandemia para ajudar o meu pai. Da minha irmã de oito anos que, toda vez que esqueço e respondo suas mensagens por escrito, me manda áudio lembrando que ainda não sabe ler. Lembro que pedi a Deus: na próxima vida, se eu for de movimento social, por favor, me mande com dois corações, um só não aguenta!
Ninguém disse que seria fácil e, dessa vez, nem estou dizendo de como é ser estudante e presidente da maior entidade estudantil da América Latina, falo de nascer mesmo. Ser mulher, negra e LGBT no Brasil é resistência diária. E é daí que vem essa minha mania incansável de querer viver num país justo. E posso ser muito sincera? Nunca pensei em desistir.
Com a covid, a maioria dos alunos da rede pública perdeu contato com educação. Essa realidade me tirou o sono por muito tempo. Comecei a pensar e construir, com entidades e deputados, saídas para isso.
As vitórias
Quando olho para um ano de tantas batalhas e vitórias, vejo que tudo vale a pena. Em 2020, adiamos o Enem. Ainda no mesmo ano, aprovamos a Proposta de Emenda à Constituição, a PEC, que torna permanente o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, o Fundeb. Com a nossa campanha “Estudo Pra Geral”, distribuímos apostilas de estudo para estudantes da periferia.
Com solidariedade, doações e o PL 3477, garantimos acesso à internet a 18 milhões de estudantes e 1,5 milhão de professores. Esse projeto de lei, o PL da Conectividade, concretizou a luta de nós, entidades educacionais, e dos deputados pelo direito ao acesso à internet, com fins educacionais, a alunos e a professores da educação básica pública.
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Aprovamos o PL 3477 na Câmara e no Senado, e o presidente Jair Bolsonaro o vetou. Começamos uma nova batalha e, logo em 1º de junho, derrubamos o veto presidencial. Chorei muito em pensar que consegui, junto a tantos outros, mudar a vida de meninos e meninas brasileiros. Não sei seus nomes, eles também nem imaginam o meu. Mas, ainda assim, a nossa luta mudará suas vidas. Não imaginava que o amor ao próximo me traria tão longe e, ao mesmo tempo, tão perto dos meus.
Ainda há muitos desafios, passo dias e noites pensando neles. Entre os muitos sentimentos que uma jovem representante de mais de 40 milhões de estudantes tem é a certeza que dias melhores virão. Foi assim que surgiu, na minha cabeça, a nossa nova campanha: Vida, Pão, Vacina e Educação. São as quatro palavras que resumem nossas principais lutas.
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Se anos atrás alguém me contasse que eu representaria tanta gente enquanto estudo, que em vez de pensar só na minha prova pensaria em outras milhões, eu jamais acreditaria. A UBES já está organizando as próximas manifestações contra Bolsonaro, em 24 de julho. Os atos se iniciarão a partir das 8h em todo o Brasil e lutarão contra o corte de verba para as universidades e institutos federais — e a negligência do governo na pandemia.
Minha vida parece um filme, às vezes, de felicidade, às vezes, de terror. Essas são as dores e as delícias de lutar. É difícil, mas sei que apenas isso pode tornar o Brasil diferente.
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