EM ABRIL, um surto mortal de Covid-19 atingiu a Índia, com os hospitais e crematórios lotados do país chegando às manchetes globais. Embora novos casos diários agora estejam em declínio, o número total de mortes continua a aumentar — estima-se que exceda os números oficiais em bem mais de 1 milhão de vítimas. No auge dessa onda, a taxa de vacinação da Índia começou a cair, e apenas 3,5% dos 1,3 bilhão de indianos estão totalmente vacinados.
A maior parte da cobertura da mídia global atribuiu a crise em curso a duas causas principais: à resposta ruim do governo indiano à pandemia e à indústria farmacêutica. Ao longo do ano passado, o primeiro-ministro Narendra Modi e seu governo de extrema direita se envolveram em uma encenação que espalhou ainda mais o vírus, em vez de buscar a mitigação do desastre. Enquanto isso, ao defender as patentes das vacinas de Covid-19, as empresas farmacêuticas dos EUA e da Europa negaram aos países de renda baixa e média a capacidade de produzir vacinas que salvam vidas, criando um sistema de apartheid vacinal global que desvaloriza as vidas não ocidentais.
Em meio às condenações ao governo de Modi e à indústria farmacêutica ocidental, os capitalistas da saúde indianos passaram despercebidos. Auxiliada em cada etapa pela abordagem de livre mercado do governo para a distribuição de vacinas, a indústria farmacêutica da própria Índia usou a pandemia para fortalecer suas participações de mercado, aumentar os lucros e colocar as vacinas atrás de uma barreira insuperável para a maioria das pessoas em um país dividido por terríveis desigualdades sistêmicas.
“O ‘mercado’ indiano de imunizantes está sob as garras de um duopólio de vacinas”, disse-me em uma mensagem o jornalista V. Sridhar, que escreveu sobre as falhas da vacinação do país para a revista indiana Frontline. “De que outra forma você chamaria esse duopólio que não barões da vacina?”
Quase todo o suprimento de vacinas da Índia vem dos dois maiores produtores do país: o Instituto Serum da Índia, liderado pelo CEO Adar Poonawalla, e a Bharat Biotech, administrada pelo seu fundador, Krishna Ella. Embora as duas empresas tenham anunciado várias vezes suas vacinas como as mais baratas do mundo, raramente mencionam que elas também são as mais lucrativas do mundo. Para cada dose vendida a hospitais privados, o Serum obtém lucros de até 2.000% — o que Poonawalla pode considerar “superlucros” — e a Bharat Biotech, de até 4.000%. Em comparação, com base no custo estimado para fazer uma dose, as margens de lucro da Pfizer e da Moderna são de 650% e 500%, respectivamente.
“Desastres são um negócio fabuloso”, escreve o jornalista P. Sainath em seu artigo recente sobre a crescente desigualdade de riqueza na Índia. “Sempre há dinheiro a ser ganho com a miséria de muitos”. O desastre da Covid-19 na Índia não é exceção.
O Príncipe do Lucro
Poonawalla é um dos que mais lucra com a pandemia na Índia. Com 40 anos, ele é filho do oitavo homem mais rico da Índia, de quem herdou o maior fabricante de vacinas do mundo. Entre os progressistas ocidentais, medicamentos genéricos são frequentemente discutidos como uma solução de saúde pública para contornar a busca das gigantes farmacêuticas por lucros. Os fabricantes de genéricos como Poonawalla, no entanto, ainda são empresários trabalhando com fins lucrativos, não humanitários motivados pelo bem comum.
Sediada na cidade de Pune, o Serum fabrica 1,5 bilhão de doses de várias vacinas todos os anos e as vende em 170 países. Poonawalla vê o Serum, com sua considerável capacidade de produção, como “quase projetado para [uma pandemia]”, e a empresa soube aproveitar sua “oportunidade única”. Em 2020, o Serum firmou parceria com a empresa sueco-britânica AstraZeneca, por meio da qual a Serum poderia produzir a vacina da Universidade de Oxford em troca do pagamento de royalties. Com a vacina resultante — conhecida na Índia como Covishield — o Serum conquistou 90% da participação no mercado de vacinas do país. A empresa também se comprometeu a entregar até 200 milhões de doses para exportação para a iniciativa global de compartilhamento de vacinas COVAX.
Apesar do lucrativo contrato de licenciamento do Serum com a AstraZeneca, Poonawalla tem sido uma das vozes mais altas a criticar a desigualdade global da vacina e as gigantes farmacêuticas ocidentais. Em março, ele se opôs ao uso que o presidente dos EUA, Joe Biden, fez da Lei de Produção de Defesa, que estipulava que as empresas dos EUA fabricando insumos para vacinas deveriam priorizar os contratos com o governo norte-americano. Poonawalla criticou a medida e, em abril, tuitou pedindo para Biden “levantar o embargo”.
Uma análise recente destaca como a demanda de Poonawalla por matérias-primas “o colocou no centro de várias imaginações heroicas”. Isso foi especialmente verdadeiro depois que a piora da Covid-19 na Índia passou a tomar as capas dos jornais, em abril. As imprensas indiana, internacional e até mesmo socialista, adotaram e amplificaram o posicionamento de Poonawalla, apontando para a estocagem de insumos feita pelos EUA como uma preocupação humanitária, ao lado da necessidade urgente da Índia por oxigênio e equipamentos de proteção individual. À medida que aumentava a pressão ativista e humanitária pela liberação de matérias-primas, Biden removeu as restrições à exportação de pacotes, frascos, filtros e outros materiais. Um porta-voz da Casa Branca disse em um comunicado que os EUA haviam concordado em liberar “insumos específicos necessários com urgência para a fabricação da vacina Covishield na Índia”.
O porta-voz foi enganado, assim como grande parte da mídia global. Poonawalla falou à imprensa várias vezes, esclarecendo que seu pedido não era para a Covishield ou, mesmo, para qualquer vacina aprovada para inocular os indianos. Desde janeiro, o Serum tem capacidade para produzir cerca de 5 mil doses de Covishield por minuto. Em vez disso, as matérias-primas que Poonawalla obteve nos EUA são por uma nova vacina contra a Covid-19 que o Serum está produzindo em parceria comercial com a empresa americana Novavax. Poonawalla conseguiu se beneficiar da indignação dos ativistas para garantir insumos para vacinas que não fariam coisa alguma para mitigar a crise de saúde pública na Índia. O Serum se recusou a comentar o assunto para esta reportagem.
A cobertura da imprensa facilitou o uso empreendedor que Poonawalla faz da zona cinzenta entre humanitarismo e comércio durante a pandemia. Embora o Serum sempre tenha enfatizado sua “filosofia filantrópica”, a família fundadora da empresa é conhecida principalmente por sua riqueza ostensiva — seja sua majestosa casa de fazenda onde hospedaram Camilla, a duquesa da Cornualha; sua coleção de carros de luxo que inclui um Batmóvel único no mundo; ou a aeronave modificada que abriga o escritório de Poonawalla.
Mas, desde que Poonawalla se tornou um dos primeiros investidores na vacina da AstraZeneca, o noticiário o elogia como um “príncipe da vacina” — um empresário que aceita riscos e tem uma missão moral. A aceitação da mídia de como Poonawalla apresenta a si mesmo explica a facilidade com que ele vem sendo citado como um defensor da saúde pública global, em vez de um CEO bilionário promovendo os interesses comerciais de sua empresa. A simpatia dos jornalistas por Poonawalla geralmente custa a capacidade de produzir reportagens justas. Por exemplo, o retrato que a imprensa fez das exportações de vacinas do Serum como uma caridosa “tentativa de proteger o mundo” oculta o fato de que o Serum está cobrando dos países mais pobres até US$ 7 pela mesma dose de vacina que a União Europeia está comprando da AstraZeneca por US$ 2.
Expansão para o oeste
Poonawalla tem sido apresentado no noticiário não apenas como um defensor da saúde pública que não atua em interesse próprio, mas também como um desafiante decolonial à indústria farmacêutica, buscando “salvar o mundo do coronavírus — e, então, reconstruir radicalmente o cenário farmacêutico internacional”. O suposto desejo de Poonawalla de transformar a indústria farmacêutica global é extrapolado a partir de sua oposição às patentes de vacinas, especialmente porque os apelos para “libertar a vacina” das restrições de propriedade intelectual encontram proeminência nos círculos esquerdistas ocidentais.
“Estamos vendo um novo sistema de apartheid de vacinas entrando em vigor”, diz Tobita Chow, diretor da Justice Is Global, uma iniciativa que faz campanha para remover as patentes de Covid-19. Muitos especialistas em saúde pública concordam que uma renúncia temporária dos Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionadas ao Comércio da Organização Mundial do Comércio, TRIPS na sigla em inglês, é um primeiro passo necessário para aumentar a produção e o acesso às vacinas e criar uma indústria farmacêutica mais competitiva em todo o mundo. Com pressão contínua de ativistas, no mês passado o governo Biden indicou seu apoio a uma isenção temporária do TRIPS, medida inicialmente proposta pelos governos da Índia e da África do Sul.
À primeira vista, Poonawalla ecoou as preocupações dos ativistas sobre as patentes farmacêuticas. Mas sua luta contra as patentes não é a mesma luta dos ativistas por uma vacina para o povo. O interesse de Poonawalla em uma isenção do TRIPS vem de sua intenção admitida de roubar espaço dos concorrentes nos mercados ocidentais. “Embora já estejamos em 165 países, também expandirei nosso alcance global: avançando sobre Europa e Estados Unidos — mercados em que nunca fomos capazes de entrar, pois fomos bloqueados pelas gigantes farmacêuticas”, disse ele à GQ India no ano passado. “Estas são as novas e últimas fronteiras”.
O Serum buscou se expandir para essas fronteiras. Em 2012, a empresa adquiriu a Bilthoven Biologicals do governo da Holanda e, desde então, sua presença na Europa só cresceu. Em maio, enquanto a Covid-19 devastava a Índia e o suprimento de vacinas do país acabava, Poonawalla se isolou na mansão que aluga por US$ 69 mil semanais em Londres, e o governo britânico anunciou que o Serum investiria mais de US$ 330 milhões no Reino Unido para criar um novo escritório de vendas, com expectativa de gerar negócios estimados em mais de US$ 1,4 bilhão. Se os ensaios clínicos mencionados no anúncio são indício de algo, as vacinas desenvolvidas como parte desse negócio podem ter como alvo os mercados europeus.
As ambições globais do Serum jogam luz sobre o verdadeiro problema de Poonawalla com a indústria farmacêutica. Não é que Poonawalla seja contra a comercialização ou as patentes de medicamentos que salvam vidas; em vez disso, ele se opõe às gigantes do setor na medida em que elas bloqueiam o acesso do próprio Poonawalla aos mercados ocidentais. É por isso que, durante a campanha contra o açambarcamento de matérias-primas por parte dos EUA, ou em meio aos pedidos de apoio à renúncia de patentes de medicamentos, Poonawalla também vinha trabalhando com o então presidente Donald Trump para escapar das “regras e regulamentos estúpidos” que o impediam de vender seus produtos nos EUA.
‘A isenção do TRIPS pode se tornar mais uma resposta humanitária à piora da pandemia na Índia que ajuda Poonawalla a enriquecer’.
Se essas restrições — embargos de insumos, patentes, exigências regulatórias — fossem dispensadas para a Covishield em mercados ocidentais, mesmo a um preço tão alto como US$ 10 por dose, essa vacina poderia facilmente superar as vacinas mais caras de Pfizer, Moderna e Johnson & Johnson, sem deixar de obter um lucro considerável. Ao reduzir os preços dos concorrentes para as vacinas contra a Covid-19, o Serum poderia expandir suas operações e desencadear uma corrida para baixo, pressionando outros fabricantes a terceirizar o trabalho ou consolidar essa terceirização para reduzir seus preços. Em 2016, Poonawalla diagnosticou que a indústria farmacêutica estava vivendo “a calmaria antes da tempestade” de aquisições ou fusões. Se tiver sucesso em usar a pandemia para entrar nos mercados ocidentais, o Serum pode se ver tirando proveito da onda de consolidação da indústria farmacêutica.
A isenção do TRIPS pode se tornar mais uma resposta humanitária à piora da pandemia na Índia que ajuda Poonawalla a enriquecer. A renúncia à regulamentação pode permitir que o Serum continue lucrando com a vacina da AstraZeneca sem pagar royalties. O Serum também pode desenvolver uma réplica da vacina, cuja patente poderia ser mantida dentro da Índia, mesmo com patentes globais suspensas. Vários dos especialistas que entrevistei viram a probabilidade de surgimento desse monopólio da vacina.
Poonawalla fez pouco para dissipar esses temores. Mesmo quando ele insiste que a produção do Serum deve aumentar para vacinar os pobres do mundo, ele também afirma que não há necessidade de trazer outros fabricantes para o mercado de vacinas para ajudar a aumentar a oferta de imunizantes.
O objetivo principal do Serum não é vacinar o mundo de forma equitativa ou quebrar monopólios; é conquistar novos mercados enquanto mantém o domínio dentro da Índia. Sem restrições ao poder do Serum, a remoção de patentes globais não resultaria em “libertar” a vacina, libertando apenas os fluxos de lucro.
Imunidade à venda
O Serum não é a única empresa indiana buscando lucrar muito com a vacina. A Bharat Biotech, que desenvolveu a Covaxin com investimento público, tem cobrado dos indianos preços exorbitantes a cada injeção — cerca de US$ 5,40 para os estados e US$ 16 para hospitais privados — apesar da garantia inicial do fundador Krishna Ella de que a vacina custaria menos que uma garrafa d’água. A Bharat Biotech também vem expandindo as exportações comerciais da Covaxin, apesar das recentes restrições de exportação impostas pela Índia.
Ao contrário do Covishield do Serum, a Covaxin não tem qualquer restrições de patentes das gigantes ocidentais. O governo indiano controla parte dos direitos de propriedade intelectual da Covaxin, mas a Bharat Biotech inexplicavelmente monopolizou a produção até um mês atrás, quando o governo finalmente liberou a fabricação da vacina em suas próprias instalações de produção. A Bharat Biotech não quis fazer comentários para esta reportagem.
Durante a pandemia, o governo Modi recusou-se a conter os lucros das farmacêuticas. Apesar de usar dinheiro do contribuinte para fornecer apoio a testes clínicos e adiantamentos para produção ao Serum e à Bharat Biotech, o governo falhou em garantir vacinas acessíveis para os indianos. Até maio, o governo central havia adquirido todas as doses por US$ 2 cada — um preço que teria dado às empresas de vacina um lucro entre 188 e 500%. Mas elas queriam mais.
“Quando você tem baixa oferta e alta demanda, o que acontece com o preço? Ele vai para as nuvens”, disse Poonawalla ao descrever como as empresas farmacêuticas dos EUA se isolam da concorrência que oferece genéricos. Ainda assim, em essência, Poonawalla arquitetou politicamente a mesma realidade na Índia.
“Como eles próprios admitiram, os produtores monopolistas da Índia estavam profundamente insatisfeitos com os ‘lucros normais’ que eles obtinham com os preços regulados das vacinas”, disse-me em uma mensagem R. Ramakumar, economista de desenvolvimento do Instituto Tata de Ciências Sociais. “Eles fizeram lobby por preços ‘livres’. Não é surpresa que os preços das vacinas tenham mais do que dobrado, até triplicado e quadruplicado, em apenas uma semana”.
O governo indiano possibilitou o aumento dos preços com sua política “liberalizada” de distribuição de vacinas, criando deliberadamente um mercado de vendedores. A partir de 1º de maio, o governo central parou de adquirir e distribuir todas as vacinas do país como ele e quase todos os outros governos do mundo vinham fazendo até então. Em vez disso, o governo central começou a comprar apenas metade do suprimento de vacinas, deixando os 28 estados e hospitais privados da Índia competindo pelas doses restantes no mercado privado — a preços estabelecidos pelas fabricantes de vacinas. O Ministério da Saúde indiano não respondeu a vários pedidos de comentários para esta reportagem.
Ao distribuir vacinas por meio do mercado aberto, o governo indiano fraturou o poder de compra e barganha coletivos de seus cidadãos, dando todo o poder aos capitalistas. Com um quarto dos estoques de vacinas do país reservados para hospitais privados, e os fabricantes deixando clara sua preferência por vender para esses hospitais a preços mais altos, a campanha de vacinação da Índia foi projetada para favorecer a monopolização do setor privado.
As desigualdades resultantes foram gritantes. Os hospitais privados superaram os estados mais pobres: em maio, apenas nove redes de hospitais já asseguravam 50% de todas as doses. Embora os estados da Índia tenham se comprometido a vacinar as pessoas gratuitamente, os hospitais privados não expressaram tal intenção. Sem limites de preços, a maioria da população empobrecida da Índia está pagando quantias exorbitantes para ser vacinada em hospitais privados ou esperando que hospitais governamentais comprem doses escassas.
‘Ao distribuir vacinas por meio do mercado aberto, o governo indiano fraturou o poder de compra e barganha coletivos de seus cidadãos, dando todo o poder aos capitalistas’.
“Imagine se a vacina fosse vendida por US$ 10 para uma família de quatro pessoas e cada uma delas precisasse de duas doses”, diz a jornalista de saúde Vidya Krishnan. “Como eles vão conseguir pagar?” Em média, uma pessoa na Índia ganha cerca de US$ 50 por mês. Adicione à mistura as políticas econômicas desastrosas do governo Modi em anos anteriores, e a vacinação se torna intangível para a maioria dos indianos.
O plano de vacinação da Índia para quase um quinto da população mundial tem sido tão alarmante que até o judiciário do país e os próprios aliados de Modi se juntaram a jornalistas, políticos de oposição e especialistas médicos para perguntar: por que não há padronização de preços ou teto? Por que não voltar a comprar vacinas de maneira centralizada, em vez de fazer os estados competirem? Por que não, como pergunta Krishnan, usar o sistema público de vacinação com experiência de décadas que foi usado para erradicar a pólio? Por que não, como sugerem os especialistas que entrevistei, quebrar patentes na Índia e emitir licenças compulsórias para que mais do que duas grandes empresas possam produzir vacinas?
Em resposta a meses de protestos públicos, na primeira semana de junho Modi anunciou uma reversão parcial de seu “experimento” de distribuição de vacina. A partir de 21 de junho, o governo central voltou a adquirir 75% do estoque total do país diretamente das fabricantes, que dará aos governos estaduais para distribuir gratuitamente aos seus residentes.
A mudança reverte um dos aspectos politicamente mais polêmicos da postura anterior, mas ainda deixa muito espaço para a busca do lucro. Um quarto dos estoques de vacina da Índia seguirá reservado para hospitais privados e, consequentemente, para os ricos. Mesmo com tetos de preços em hospitais privados, as taxas de lucros dos fabricantes de vacinas chegarão a mais de 1.000%. Como diz Yogesh Jain, fundador da organização rural de saúde sem fins lucrativos Jan Swasthya Sahyog, em seu Twitter, as capacidades de vacinação da Índia continuarão “publicamente fornecidas e privadamente consumidas”.
O governo Modi ajustou levemente a política de vacinas centrada no lucro que a Índia vinha adotando, mas, como diz Ramakumar, o que é necessário é uma revisão total. Em vez de usar os poderes que tem em nome do povo, o governo indiano continua a privilegiar o lucro sobre as vidas.
O lucro como bem público
Os fracassos da campanha de vacinação indiana refletem a resposta geral do país à pandemia, caracterizada pelo forte apoio do governo aos lucros privados. A Suprema Corte da Índia sugeriu repetidamente que o governo central tem o poder de acelerar a fabricação de oxigênio e outros produtos essenciais, investindo recursos públicos, o que cidades como Madurai e estados como Kerala fizeram com sucesso. Mas não apenas o governo central nada fez para aumentar sua capacidade criticamente baixa de oxigênio, como também permitiu que as exportações industriais de oxigênio da Índia aumentassem em mais de 700% ao longo da pandemia, em vez de redirecionar a produção para as necessidades médicas. Sem surpresa alguma, as ações de empresas de oxigênio como a Linde India dispararam, mesmo com inúmeras pessoas morrendo sem ar.
“O governo da Índia retirou-se da responsabilidade social central de um estado de bem-estar esclarecido”, disse-me Ramakumar. “Ele também abriu as comportas para uma forma vulgar de capitalismo predatório assumir o controle da situação em meio a uma violenta tragédia humana”.
Poonawalla afirmou que “nem mesmo Deus” poderia ter imaginado a gravidade da crise, mas o desastre indiano na pandemia foi previsto há muito tempo. As coisas não precisavam ter acontecido dessa forma. A Índia poderia ter suprimentos médicos, equipamentos de proteção individual, kits de teste e vacinas prontas se a saúde pública, e não o lucro, determinasse a produção e distribuição. Onde quer que as vacinas tenham sido utilizadas em grande escala, isso aconteceu porque, em momentos-chave da avaliação, os defensores da saúde pública desafiaram a motivação do lucro. Mas, na Índia, o lucro se disfarça de bem público.
‘A Índia ganhou 38 novos bilionários no ano passado, enquanto a riqueza combinada dos 140 bilionários do país aumentou em 90,4%’.
As pandemias costumam exacerbar a dinâmica sociopolítica preexistente, argumenta Nivedita Saksena, da Escola de Saúde Pública de Harvard. A situação atual da Índia não é exceção. Com um sistema de saúde pública carente de recursos há décadas e nenhuma alternativa viável para o sistema com fins lucrativos, a pandemia de Covid-19 estava fadada a se tornar uma oportunidade para lucrar na Índia.
As grandes empresas da Índia conseguiram até mesmo usar auxílio estrangeiro para ganhar dinheiro — é por isso que hospitais privados venderam cilindros de oxigênio transportados por via aérea para pacientes desesperados, que insumos de vacinas dos EUA estão sendo usados para especular com o desastre, e que uma quebra de patente global provavelmente vai fortalecer o poder das gigantes farmacêuticas indianas.
Para conseguir um mundo onde a vida humana é verdadeiramente valorizada acima do lucro, devemos perceber que o pequeno punhado de pessoas muito ricas que atrapalha o bem público está espalhado pelo mundo — tanto em Pune quanto na cidade de Nova York. Seu número está crescendo, assim como seu poder dentro de seus países de origem. Só na Índia, 38 novos bilionários surgiram no ano passado, enquanto a riqueza combinada dos 140 bilionários do país aumentou em 90,4%. Durante a pandemia, o patrimônio líquido de Poonawalla aumentou 85% em cinco meses, enquanto dezenas de milhões de indianos caíam na pobreza. Isso não é uma coincidência, como escreve P. Sainath, em “um ano em que centenas de milhões de indianos passavam mais fome do que haviam passado em décadas”.
“Uma ‘onda’ de riqueza geralmente ocorre sobre uma onda de miséria”, diz Sainath. As carteiras cada vez mais gordas das elites da saúde da Índia estão diretamente ligadas aos corpos nas ruas do país. Até eliminarmos a lucratividade da desgraça, o pesadelo da Índia não tem fim à vista.
Tradução: Maíra Santos
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