O jornalismo sempre apreciou criar um monstro, uma aberração, um ser inominável que garantisse o interesse das audiências. Pode-se até dizer que isso faz parte do jogo, afinal as empresas do setor não prestam caridade e vendem um produto, a notícia. Mas não dá para justificar a manutenção dessa prática apenas por conta do lucro, bebê. Dois motivos: primeiro, além de servir para alguém ganhar dinheiro, a notícia também é um serviço, um bem coletivo, um meio para nos orientarmos e tomarmos decisões. Segundo, essa “monstruosidade”, definida por quem tem o jornal na mão e indica quem merece viver ou morrer, geralmente possui cor, classe e religião. E é aí que o tal bicho pega.
O exemplo mais recente desse fenômeno produzido pela imprensa foi o insistente uso de palavras como “rituais”, “satanismo” e “bruxaria” nas matérias sobre Lázaro Barbosa, morto nesta segunda, 28, pela PM após 20 dias de fuga. Lázaro é acusado de matar uma família no Distrito Federal, roubar propriedades, atirar em quatro pessoas e queimar uma casa. O histórico de Lázaro dá conta de outros delitos cometidos por ele: em 2009, por exemplo, ele estuprou uma jovem de 19 anos também no DF. Recebeu uma sentença de 12 anos e 8 meses do juiz Marcelo Tocci, mas fugiu antes de terminar a pena.
Os crimes, a fuga e a história de Lázaro já rendem material suficiente não só para empresas e jornalistas se capitalizarem com coberturas espetaculosas (vide o programa Brasil Urgente, cujo apresentador Datena narrou tiros e a gritaria durante uma perseguição na qual a equipe da Band estava presente), mas também enchem os olhos de populistas de extrema direita como Jair Bolsonaro. No dia 19 de junho, quando o Brasil atingiu a marca de 500 mil mortos oficialmente pela covid-19, o presidente usou suas redes sociais somente para cortejar os policiais envolvidos na captura.
Porém, para manter o noticiário “quente”, veículos como o Metrópoles, Jornal do Commercio, Jornal de Brasília, G1 e mesmo a rósea Capricho cravaram que Lázaro praticou ou sacrificou vítimas em “rituais satânicos”. Não deu outra: poucas horas depois da divulgação dessas informações, integrantes de terreiros religiosos de locais como Águas Lindas, Girassol e Edilândia denunciaram truculência policial em pelo menos dez templos.
Na primeira cidade, a 50 quilômetros de Brasília, o pai de santo André Vicente, um idoso de 81 anos, informou que parte de seu terreiro foi alvo de duas buscas pela PM pouco antes das notícias sobre os “rituais” se espalharem. Em ambas, objetos e portas foram destruídos e o caseiro do local foi agredido com chutes e cano de ferro. O religioso ainda contou em depoimento que as imagens dos objetos religiosos divulgados pela polícia como se fossem de Lázaro e amplamente divulgados pela imprensa são, na verdade, do terreiro comandado por ele. Se confirmada a denúncia, será uma fraude ratificada por uma série de veículos da imprensa e que deveria entrar para a história do jornalismo brasileiro. Sugiro um nome para a sessão: “Quando fomos objetivamente racistas”.
Depois que Lázaro e família foram classificados como satanistas pela imprensa que se limitou a repetir, sem qualquer senso crítico, as declarações da polícia, os pedidos de “mata” e “queima” começaram a pipocar: no post no Instagram do Jornal do Commercio que falava dos rituais e da “magia negra” de Lázaro, por exemplo, uma pessoa afirmava que a mãe do fugitivo também era “feiticeira”. Outra leitora deu o veredito: “então ‘dá fim’ aos dois”.
Na outra ponta, felizmente, uma série de pessoas apontou para o enorme preconceito presente nas matérias, fazendo com que alguns dos veículos mudassem suas chamadas, um assunto trabalhado pelo ótimo Farol Jornalismo em sua última edição. O G1, por exemplo, pediu desculpas e apagou as notícias coalhadas de preconceito. O UOL fez uma interessante crítica a respeito dessa cobertura, assim como o Nexo.
Seria, teria, poderia
Ninguém precisa ser jornalista para saber que existem regras básicas na divulgação de informações. Mas o noticiário sobre o “satanismo” de Lázaro quebra várias delas: inconsistência, dubiedade, má apuração, escuta de uma fonte única são alguns dos problemas. Há, por exemplo, o farto uso de palavras como “teria”, “poderia” para apoiar a tal narrativa demoníaca: no Metrópoles, uma chamada afirma: “Itens ligados à doutrina satanista teriam sido localizados na casa dele, no Entorno. Policiais o descrevem como psicopata”. Pois é: além de dúbia, a chamada confere uma boa formação em psicologia aos PMs, que já diagnosticam, no calor da busca, um distúrbio mental grave no fugitivo. O relato privilegiado e único dos policiais segue em frente e piora: “segundo a Polícia Militar de Goiás (PMGO), Lázaro alega estar possuído por um espírito.”
Sejam todas e todos vocês bem-vindos a 1637!
Reparem bem que o que parece ser uma mera falta de cumprimento de regras técnicas está, na verdade, anteparado em questões subjetivas, mas negadas pelo jornalismo que insiste em se dizer “neutro” e “imparcial”. Não há nenhum problema na subjetividade, e sua presença é vital no jornalismo: na verdade, o problema é não assumi-la e assim negar que nossa cobertura jornalística expôs historicamente, de forma preconceituosa e violenta, uma grande parte da população brasileira.
Essa operação é relativamente simples: enquanto se medem pela régua do “normal”, jornais e jornalistas descrevem toda uma sorte de pessoas e grupos percebidos como monstruosos, dissidentes, folclóricos, esquisitos, incivilizados, exóticos. Lembra aquele clássico: “o inferno são os outros”.
A famosa chamada semanal do Globo Repórter (“Quem são? Como vivem? Do que se alimentam?”) é um exemplo dessa prática herdada de ciências de base etnocêntrica, da cultura que se julga superior a todas as outras. Já entrou para os anais do jornalismo um editorial da famosa revista National Geographic cujo título diz: “Por décadas, nossa cobertura foi racista. Para nos erguermos acima de nosso passado, devemos reconhecê-lo”. Um movimento importante de autocrítica que, infelizmente, nossa imprensa ainda não soube fazer, apesar de cobrar frequentemente a dos outros.
Essa cobertura exotificante e racista, como já vimos nos casos de violência descritos pelo pai de santo André Vicente, tem impacto na integridade física e na existência de uma vasta população. Ela não se resume apenas aos povos de terreiros, mas a todas as pessoas e grupos entendidos como “desviantes” pelo jornalismo.
É tão assustador quanto sintomático ver que as palavras usadas por veículos “modernos”, que se utilizam de redes sociais e portais, estavam presentes lá nos jornais do início do século 20. Em 8 de fevereiro de 1912, o Jornal de Alagoas trazia a seguinte notícia: “Bruxaria: Xangô em confusão – mais notas e informações – Os mystérios da carne – ‘Santo’ de Santa Luzia do Norte“. No texto extremamente racista sobre o terreiro, lemos sobre “a feição de símio de Tio Salu”, “a risada de megera e olhos esgazeado de víbora de Tia Marcelina”, sobre os “cânticos desafinados e o infernal batuque dos rituais religiosos”.
A pesquisa está presente no artigo “Racismo e Intolerância Religiosa: Representações do Xangô nos jornais de Maceió entre 1905 e 1940”, de Lwdmila Constant Pacheco. No texto, ela mostra como a população da capital alagoana era “informada” sobre os terreiros locais (conhecidos em parte do Nordeste como “xangôs”). Os adjetivos “fetiche ignorante”, “antros endemoniados” e feitiçaria barata” eram comuns. É claro que religião e raça estavam essencialmente imbricados aí: havia os cristãos e brancos e havia os xangôs e pretos. Os donos dos jornais faziam parte do primeiro grupo. Não é muito diferente agora.
Não adianta contratar jornalistas negros e fazer campanha sobre “diversidade” quando se continua a olhar o mundo a partir de uma racionalidade entendida como superior. Não adianta investir em aparato tecnológico e continuar a enquadrar grupos e pessoas como “exóticos” ou aberrações, usando a mesma régua do século passado. As diferenças, ainda bem, existem. Mas desigualdades são construídas – e manchetes que terminam com gente morta ou espancada, também.
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