Novo presidente do Cade tem interesse incomum em investigações que atingem finanças da Globo – e agrada Bolsonaro

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Novo presidente do Cade tem interesse incomum em investigações que atingem finanças da Globo – e agrada Bolsonaro

Grupo apagou reportagem que revelava contratação de filho de Kássio Nunes Marques para o órgão nas vésperas de sua indicação ao STF.

Novo presidente do Cade tem interesse incomum em investigações que atingem finanças da Globo – e agrada Bolsonaro

Se você acessar esse link do site O Globo agora, vai dar de cara com um aviso de “página não encontrada”. Ali estava a reportagem intitulada “Em campanha por nomeação de Bolsonaro, chefão do Cade contrata filho de ministro do STF como estagiário”. O texto foi publicado em 17 de junho e excluído cerca de uma hora depois, sem qualquer explicação. Apesar disso, a internet não esquece. A reportagem segue viva na rede, copiada na plataforma Outline e no site Yahoo. Até alguns dias atrás, a manchete continuava ativa também na busca do Google.

Print mostra reportagem apagada pelo jornal O Globo listada no Google.

O “chefão” do Cade – o Conselho Administrativo de Defesa Econômica, que regula a concorrência entre empresas no Brasil – mencionado na reportagem é o superintendente-geral do órgão, Alexandre Cordeiro Macedo. O ministro do STF em questão é Kassio Nunes Marques. A reportagem contava que o filho de Marques foi favorecido por Cordeiro em uma seleção de estágio no Cade e contratado no dia 29 de setembro de 2020, um dia antes de o ministro ser indicado por Bolsonaro ao cargo no Supremo Tribunal Federal. À época, o jovem Kevin de Carvalho Marques ainda estava no terceiro semestre do curso de direito no Centro Universitário IESB, em Brasília. “A primeira disciplina de Direito Econômico, considerada importante base para qualquer estagiário do Cade, é prevista apenas para o sexto semestre do curso”, dizia a reportagem.

O texto também contava que a Superintendência-Geral “abriu processo seletivo para contratação de um único estagiário no dia 23 de setembro de 2020, e deu aos interessados o prazo de apenas dois dias para as inscrições”. Além do tempo apertado, a vaga só foi anunciada no sistema interno do Cade e, por isso, apenas servidores do órgão poderiam ficar sabendo que ela existia. O filho do ministro, informava a reportagem, foi escolhido somente pela análise curricular e por uma entrevista. Diferentemente dos outros estagiários do órgão, ele não fez nenhuma prova. O processo seletivo geralmente exige que os candidatos escrevam duas dissertações sobre temas diferentes, como mostra uma troca de e-mails internos a que eu tive acesso, relacionados a uma seleção de estágio de 2019. E as vagas costumam ser anunciadas publicamente, inclusive nas universidades.

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Era a segunda reportagem seguida do Globo sobre Cordeiro. A primeira, publicada no dia anterior, 16, segue online, e trata das brigas políticas na troca de comando do órgão. Segundo uma das pessoas com quem falei, ligada ao Cade, o jornal estava investigando o conselho e tinha pelo menos mais uma reportagem para ser publicada. No entanto, depois que o texto sobre o estágio para o filho do ministro Nunes Marques foi excluído, isso não aconteceu.

O mandato de Cordeiro acaba em outubro, e ele pretendia permanecer no Cade, como presidente do órgão. Mas isso dependia da indicação de Bolsonaro. Agradar o ministro queridinho do presidente, sugeria o texto excluído, seria uma forma de conseguir um forte aliado para garantir seu desejo. Ele conseguiu: Cordeiro foi indicado para o cargo no dia 30 de junho, mas sua nomeação ainda dependia de uma sabatina no Senado, ocorrida em 5 de julho. Ele foi aprovado e será o próximo presidente do Cade.

Excluir matérias depois de publicadas é um expediente pouco comum no jornalismo. Se existe alguma informação errada, os veículos normalmente corrigem os dados e avisam os leitores que mudanças foram feitas na reportagem. Questionei a assessoria de imprensa do grupo Globo sobre a decisão, e o conglomerado informou que não iria comentar o caso. A assessoria do Cade também não respondeu às minhas perguntas e, a do STF, disse que não foi o ministro Nunes Marques quem pediu a exclusão da reportagem do site – mas eu continuei atrás de uma resposta.

Nos últimos dias, fontes ligadas ao Cade me alertaram que o grupo Globo tem motivos para não desagradar a cúpula do conselho. Os informantes, que não querem ser identificados para evitar perseguições por parte de Cordeiro, disseram que ele tem mostrado especial interesse no conglomerado de mídia, um dos principais alvos da ira de Bolsonaro. Documentos públicos e informações acessíveis no próprio sistema do Cade e no Diário Oficial da União confirmam tudo que ouvi.

ministro-Nunes-Marques

O ministro do STF Kássio Nunes, indicado por Bolsonaro, teve o filho contratado como estagiário no Cade em um processo muito menos rigoroso que o de costume.

Foto: Fellipe Sampaio/STF

A serviço do Bolsonaro

Desde 2019, ao menos três processos foram iniciados no Cade contra a Globo Comunicação e Participações S.A. por supostas condutas anticompetitivas. Em todos eles, Cordeiro se envolveu diretamente e de forma incomum no andamento da investigação. Foi o gabinete do superintendente-geral que produziu documentos decisivos – e não as coordenações-gerais, que normalmente são as responsáveis por apurar as denúncias, elaborar e assinar as notas técnicas. Nos casos que envolvem o grupo Globo, contudo, a assinatura de Cordeiro aparece até nessas notas.

O gabinete do superintendente-geral produziu apenas sete notas técnicas desde 2019, sendo duas referentes a demandas administrativas. Das cinco que dizem respeito a investigações, quatro são relacionadas ao grupo Globo, e nenhuma delas é favorável. A quinta nota técnica refere-se a uma investigação contra a Gol Linhas Aéreas, denunciada pela Azul por conduta anticoncorrencial. Todos esses dados estão no sistema de busca processual do Cade. Nele, é possível filtrar quais documentos do tipo nota técnica foram gerados pelo gabinete do superintendente-geral e a qual processo cada uma delas se refere.

Não é ilegal que o gabinete do superintendente-geral crie notas técnicas, mas curiosamente isso não aconteceu nos outros cerca de 160 processos de conduta anticompetitiva que, de acordo com os relatórios de gestão do Cade, também foram iniciados em 2019 e 2020. É possível saber isso, porque, no sistema de busca do Cade, não aparece nenhum documento relacionado a outro processo iniciado nesses anos, exceto os que envolvem a empresa da família Marinho e o caso da Gol. Perguntei sobre tudo isso para o Cade, inclusive mostrando o print que indica quais filtros usei no sistema de busca processual e quais resultados apareceram para mim, mas a assessoria de imprensa do órgão não se manifestou sobre o aparente interesse do superintendente-geral em casos específicos.

Print da tela do sistema de buscas mostra como chegamos ao número de sete notas técnicas produzidas pelo gabinete do superintendente-geral desde 2019.

Print da tela do sistema de buscas mostra como chegamos ao número de sete notas técnicas produzidas pelo gabinete do superintendente-geral desde 2019.

Outra informação relevante que consegui foi por meio de uma busca avançada no Diário Oficial da União e que mostrou que, este ano, até o dia 22 de junho, Cordeiro só assinou um despacho, e ele se refere exatamente a um dos processos do conglomerado de comunicação inimigo de Bolsonaro. Além da aparente seletividade, a improdutividade em 2021 também é marcante: para efeitos de comparação, no mesmo período, os dois superintendentes-adjuntos assinaram, juntos, cerca de 150 despachos. Cordeiro não se licenciou do cargo e deveria estar trabalhando normalmente. Também mostrei para a assessoria do Cade o resultado dessa pesquisa que fiz no Diário Oficial da União, mas o órgão respondeu apenas que “as manifestações são realizadas somente por meio de pareceres, notas técnicas, estudos ou decisões nos autos”.

O Cade é o conselho do governo federal responsável por investigar empresas e impedir que elas usem práticas anticompetitivas que atrapalhem a livre concorrência, como combinar preços e formar cartéis. O órgão também analisa processos de fusão de grandes empresas, aprovando ou não os chamados atos de concentração.

O primeiro dos três processos que estão em andamento contra o grupo Globo é de setembro de 2019. Ele investiga se a emissora de TV tem o monopólio de transmissão de direitos de futebol no mercado nacional.

O segundo começou em fevereiro de 2020 e trata do pagamento de “bonificação por volume” para as agências de publicidade, conhecido no meio como BV. Desde a década de 1960, a empresa tem esse plano de incentivo para conquistar anunciantes – quanto mais publicidade uma agência destinar ao veículo durante um determinado tempo, maior será o BV recebido.

Bolsonaro já tinha prometido acabar com o pagamento de BV desde que soube da existência desse mecanismo. “Vamos buscar junto ao parlamento brasileiro a questão do BV. Isso tem de deixar de existir. Eu aprendi há pouco o que é isso e fiquei surpreso e até mesmo assustado”, disse em um discurso no dia 7 de janeiro de 2019. No dia seguinte, a Folha de S.Paulo noticiou que o presidente tinha até um projeto de lei contra o mecanismo, criado com integrantes de agências de publicidade e donos de emissoras concorrentes da Globo. Um dos principais críticos do pagamento do bônus é Marcelo de Carvalho, vice-presidente da Rede TV. Para ele, o plano de incentivo é “uma espécie de propina legalizada”.

O processo mais recente é sobre o mesmo assunto e foi iniciado em dezembro de 2020, depois que Cordeiro abriu um inquérito administrativo para investigar somente o grupo Globo, enquanto o processo de fevereiro segue investigando de forma abrangente o mercado publicitário.

Embora sejam os coordenadores-gerais e suas equipes que geralmente toquem as investigações, somente Cordeiro tem o poder de determinar o início delas, uma função do cargo de superintendente-geral. Também é ele quem diz se uma empresa deve ou não ser punida. Para isso, o normal é que o parecer, também chamado de nota-técnica, seja elaborado por servidores de uma das coordenações-gerais para, em seguida, Cordeiro analisá-lo e tomar sua decisão com base nas informações entregues pelos técnicos. O parecer do superintendente-geral, então, é enviado para o tribunal do conselho, formado por um presidente e seis conselheiros. É esse colegiado que dá a palavra final, mas um processo só chega a ele se o superintendente-geral entregar o despacho – e a sua opinião sobre qual deve ser o desfecho do caso tem muito peso.

Foi se utilizando desse poder que Cordeiro fez a vontade de Bolsonaro. O presidente já ameaçou a Globo com sanções várias vezes, inclusive em relação ao pagamento do BV e à exclusividade na transmissão dos jogos de futebol. Em um dos muitos ataques de fúria que teve contra a emissora, ele até gravou um vídeo, aos gritos, se referindo ao processo de renovação da concessão do canal de TV, que acontece no próximo ano. “Isso é uma patifaria, TV Globo! […] É uma canalhice o que vocês fazem. […] Temos uma conversa em 2022. Eu tenho que estar morto até lá. […] Não vai ter jeitinho para vocês, nem para ninguém”.

A análise detalhada do andamento dos três processos contra o grupo Globo mostra que Cordeiro começou a atuar diretamente neles a partir de julho de 2020, exatamente um mês depois de Bolsonaro editar a Medida Provisória 984/2020, que ficou conhecida como a MP do Mandante. Segundo essa MP – que já perdeu a validade, porque não foi votada pelo Congresso até 15 de outubro de 2020, que era o tempo previsto – os direitos de transmissão ou reprodução das partidas esportivas passavam a ser do clube mandante do jogo, e não mais compartilhados entre os dois times. Isso prejudicaria a Globo, que tem os direitos de transmissão das principais competições de futebol do Brasil, mas com a MP só poderia negociar os direitos das partidas com um dos times, o dono da casa.

Nessa época, o mandato de superintendente-geral do Cade estava há pouco mais de um ano do fim. Ele se encerra em outubro, e Cordeiro almejava uma nova indicação de Bolsonaro, dessa vez para se tornar presidente do órgão.

Novo presidente do Cade tem interesse incomum em investigações que atingem finanças da Globo – e agrada Bolsonaro

Alexandre Cordeiro, atual superintendente-geral do Cade, já nomeado como futuro presidente do órgão.

Foto: Assessoria de Comunicação Social/CADE

No Cade, a investigação contra a Globo por suspeita de monopólio de transmissão de direitos de futebol no mercado nacional seguiu o trâmite regular na Coordenadoria-Geral Antitruste 4, a CGAA4. Começou no dia 9 de setembro de 2019 com um procedimento preparatório – fase preliminar que consiste em levantar mais informações sobre uma denúncia. Até o dia 17 de junho de 2020, foi a CGAA4 que produziu a maior parte dos documentos e movimentou o caso. Mas, a partir de julho, o gabinete do superintendente-geral assumiu essa função e passou a enviar dezenas de e-mails para clubes, federações de futebol e outras entidades esportivas, como a Confederação Brasileira de Vôlei, com pedidos de esclarecimentos que não são públicos no processo. Dois meses depois, em setembro, o gabinete de Cordeiro também produziu a nota técnica que decidiu pela instauração do inquérito administrativo contra a Globo. O documento, claro, foi assinado por ele. A investigação já foi prorrogada duas vezes, e o último prazo se encerra neste mês de julho, sem possibilidade de nova prorrogação.

Esse processo parece ter animado tanto Cordeiro que, uma semana depois de instaurar o inquérito, em 2 de outubro de 2020, ele enviou um ofício para a Secretaria-Geral da Presidência da República e para os presidentes do Senado e da Câmara, contando da investigação em curso e manifestando seu interesse em auxiliar na tramitação da MP do Mandante. No ofício em que mostrava serviço para o presidente e para o Congresso, Cordeiro disse que esperava “ter realizado suas atribuições de forma adequada e oportuna, com a finalidade de contribuir para o desempenho das atividades executivas e legislativas pertinentes à tramitação e aplicação da MP”.

Todas as fontes ligadas ao Cade que consultei estranharam o procedimento e disseram que nunca viram o órgão informar ao presidente da República sobre uma investigação. “Normalmente é o contrário – os órgãos interessados ficam sabendo de algum caso pela imprensa e oficiam o Cade para obter informações”, me disse uma das fontes.

Perguntei ao Cade, por meio da assessoria de imprensa, que outros procedimentos foram informados oficialmente ao governo federal e ao Congresso, mas o órgão respondeu apenas que “não se manifesta sobre casos em análise na autarquia”.

O segundo processo contra a Globo no Cade começou em 7 de fevereiro de 2020, com o objetivo de investigar o pagamento da bonificação por volume, o BV, às agências de publicidade. Assim como o primeiro, este continua em andamento e também começou normalmente na CGAA4, com um procedimento preparatório. Mas as coisas passaram a ficar diferentes dez meses depois, a partir de 3 de novembro, quando a assessora pessoal de Cordeiro, Ana Paula Aparecida Guimarães de Paula, assinou um despacho negando o acesso da Globo a documentos de acesso restrito do caso. Pedidos semelhantes feitos por agências de publicidade envolvidas no processo também foram negados, mas pela Coordenadoria-Geral, como é usual.

O projeto de lei de Bolsonaro contra o BV não teve andamento no Congresso, mas o presidente conseguiu o que queria com a ajuda do de Cordeiro. No dia 1º de dezembro de 2020, o gabinete do superintendente-geral produziu – e ele mesmo assinou – uma nota técnica que determinava a abertura de um inquérito administrativo e, ao mesmo tempo, uma medida preventiva que proibia a emissora de pagar o BV às agências. O documento tem apenas duas páginas e poucas explicações sobre o que levou a uma decisão tão rigorosa.

Uma das fontes com quem conversei, ligada ao Cade, disse que a nota técnica “parece ter sido feita por encomenda”. Essa pessoa explica que o inquérito tem que ter um determinado nível de fundamentação. “Não se faz isso com uma nota de uma página e dois parágrafos de argumentação. Isso seria para uma fase anterior, que é o procedimento preparatório”.

Sobre a medida preventiva que proibiu a Globo de pagar o BV, três fontes têm opiniões parecidas: não havia fundamento para uma decisão que é tão rara no Cade – nenhuma delas lembra de já ter visto isso em outros processos. “Para determinar uma preventiva, tem que ter um fato muito claro, um risco de dano irreparável. E não tem nada disso demonstrado nesse caso”, disse uma das pessoas.

Foi essa nota técnica, considerada por servidores e ex-servidores do Cade como insuficiente, que – um dia depois de ter sido publicada  – serviu de base para a abertura do terceiro processo contra a Globo, em 2 de dezembro de 2020. Agora, o Cade tem duas investigações em andamento sobre a mesma coisa. A de fevereiro se concentra no mercado publicitário de forma mais ampla, e a de dezembro foca apenas na Globo – a notícia sobre uma nova investigação contra a emissora inimiga do presidente da República ganhou a atenção do filho dele, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, que fez questão de divulgá-la no seu twitter.

Ao ser questionado sobre quais práticas anticompetitivas a Globo estaria cometendo, o Cade afirmou que “a representada é quem tem melhores condições de conhecer seus próprios contratos”.

Diferente dos dois processos mais antigos, este já começou sob a tutela do gabinete de Cordeiro e sem a atuação de nenhuma coordenação-geral. Por não ter muitas informações na nota técnica sobre o que teria de ilegal no pagamento do BV, os advogados da Globo pediram que o Cade mostrasse quais cláusulas dos contratos com as agências de publicidade poderiam ser consideradas práticas anticompetitivas. A resposta que receberam foi essa: “a representada é quem tem melhores condições de conhecer seus próprios contratos”. Isso consta em outra nota técnica, do dia 22 de janeiro. Embora tenha sido assinada pela superintendente-geral substituta Patrícia Alessandra Morita Sakowski, de acordo com dados do andamento processual, o documento foi criado pelo gabinete do superintendente-geral.

Analisei o andamento de investigações antigas no Cade e pude constatar que, em nenhuma delas, a Superintendência-Geral se envolveu tanto como nos três processos contra a Globo. Um dos casos que comparei é de 2006, sobre um cartel de hospitais de Fortaleza. Nove clínicas e hospitais da capital cearense formaram um bloco único de negociação para impor preços e reajustes em serviços de assistência à saúde. Para isso, eles ameaçavam descredenciar as pessoas do plano de saúde, caso não aceitassem as novas circunstâncias. O caso foi concluído ano passado e é citado entre os principais julgamentos de condutas anticompetitivas no relatório de gestão do Cade de 2020. Os envolvidos pagaram, juntos, R$ 27,5 milhões em multas.

Toda a investigação foi realizada pela Coordenadoria-Geral de Análise Antitruste 2, a CGAA2. Diferentemente dos processos da Globo, nenhum dos documentos foi produzido pelo gabinete do superintendente-geral. Ele assinou apenas os despachos, que estavam de acordo com o que orientavam as notas técnicas. Estas tinham dezenas de páginas com embasamento e, em nenhuma delas, aparece a assinatura de Cordeiro ou dos seus antecessores.

Enviei 14 perguntas ao Cade, a maioria delas sobre a aparente dedicação especial e incomum de Cordeiro aos processos contra a Globo. A assessoria de imprensa respondeu apenas que compete à Superintendência-Geral “instaurar e instruir processos para apurar infrações concorrenciais em qualquer setor da economia. As investigações podem se iniciar de ofício, uma vez que a autarquia acompanha os mercados e apura indícios que eventualmente detecta, ou a partir de denúncias. Em qualquer caso, havendo indícios mínimos de infração concorrencial, a Superintendência-Geral instaura um processo administrativo para investigar a conduta”. Fugindo da questão central, a assessoria não explicou por que a atuação de Cordeiro foi diferente em outros processos que não se referiam à Globo.

Até outubro, se encerram os mandatos do superintendente-geral, do presidente, do procurador-geral e de um conselheiro do Cade. Bolsonaro terá de indicar substitutos. Cordeiro, o superintendente-geral, se articulava com o atual presidente do órgão, Alexandre Barreto, para trocarem os cargos entre si. Ao menos Cordeiro já conseguiu a indicação que queria e foi rapidamente aprovado na sabatina do Senado, onde ele também tem aliados fortes, como o seu padrinho político, o senador Ciro Nogueira, presidente do PP. Barreto também já tem a indicação, mas ainda falta a sabatina no Senado. A conselheira Paula Farani, que estava na campanha pela indicação à Superintendência-Geral junto com Barreto, perdeu a vaga, embora tenha se esforçado para conquistá-la.

No dia 28 de junho deste ano, ela encaminhou um ofício ao procurador-geral do Cade, Walter Agra, pedindo mais uma investigação contra a Rede Globo. No documento, Farani cita reportagens de três sites sobre a renovação dos contratos de exclusividade da emissora com seus atores, como uma forma de evitar que eles sejam levados pela Netflix – o serviço de streaming pretende entrar no mercado das novelas e seria um forte concorrente para a Rede Globo. A conselheira defende que há “indícios de prática de abuso de posição dominante por meio da assinatura de acordos de exclusividade” e que a emissora “não pode adquirir insumo com o intuito de retardar ou limitar a entrada de rivais no mercado”. Os insumos a que ela se refere são os atores.

No final do ofício, Farani sugere ao procurador-geral “que sejam remetidas as notícias anexas para instauração de um processo administrativo” contra a Globo “por infrações à ordem econômica”. Uma das fontes com quem conversei avalia que “a tese de que os contratos seriam uma forma de impedir o acesso de concorrentes a um insumo essencial só faria sentido se a mão de obra de atores fosse algo escasso”.

O pedido da conselheira foi atendido rapidamente por Agra, que uma hora depois tratou de encaminhar um ofício para Cordeiro, pedindo a abertura de um novo inquérito administrativo contra a Globo, “com a urgência e importância que o caso requer”. Também no fim do seu mandato, o procurador-geral queria o cargo de conselheiro e precisava da indicação de Bolsonaro, mas ele indicou para a vaga o subchefe adjunto de política econômica da secretaria-geral da Presidência da República, Gustavo Freitas de Lima. Resta, ainda, a indicação para procurador-geral. Agra não pode ser mais reconduzido

O senador Ciro Nogueira, presidente nacional do PP,

O senador Ciro Nogueira, presidente do PP e padrinho político de Alexandre Cordeiro.

Foto: Pedro Ladeira/Folhapress

Bom de fazer aliados

Enquanto os processos contra a Globo seguiam no Cade, com a interferência direta de Cordeiro a partir de julho de 2020, ele estreitava relações com Fábio Wajngarten, então secretário especial de Comunicação Social do Ministério das Comunicações, muito próximo de Bolsonaro. O superintendente-geral postou uma foto nos stories do Instagram, registrando um momento à noite, por volta do dia 20 de janeiro de 2021, segundo me disseram pessoas que viram o story quando ele foi postado. A imagem não mostra as pessoas, apenas o ambiente – uma pequena fogueira, com poltronas e uma árvore ao fundo –, mas Cordeiro marcou alguns perfis, entre eles @fabiowajngarten e @ygormoura.

Story publicado no Instagram por Alexandre Cordeiro com Fábio Wajngarten de Ygor Moura.

Dono da rede de clínicas de depilação Espaçolaser, Ygor Moura já emprestou até jatinho para o senador Flávio Bolsonaro e o ex-ministro Ricardo Salles, em uma viagem a Fernando de Noronha, em novembro de 2020. Segundo o empresário, ele fez isso para atender a um pedido do “amigo e vizinho” Wajngarten. Era com eles dois que Cordeiro aparentemente estava, ao som de música sertaneja.

Apadrinhado pelo senador Ciro Nogueira, presidente do PP, Cordeiro foi nomeado em 2012 como secretário-executivo do então ministro das Cidades, Aguinaldo Ribeiro, no governo da petista Dilma Rousseff. Em 2015, a presidente o indicou ao cargo de conselheiro do Cade. Antes de concluir o mandato de quatro anos, em 2017, Cordeiro conseguiu ser indicado pelo então presidente Michel Temer, do MDB, como superintendente-geral. Houve um desconforto na época, porque o governo já tinha enviado ao Congresso o nome de Amanda Athayde, uma servidora do Cade, e o retirou em seguida. Segundo uma das minhas fontes, isso foi um alerta para todos os servidores, que sentiam que o órgão vinha sendo “muito politizado”.

Ainda em 2017, o nome de Cordeiro apareceu em um áudio de Nogueira, gravado por Joesley Batista, dono da JBS. O empresário e o parlamentar discutiam uma estratégia para exercer influência no Cade. “Agora é melhor colocar outra pessoa para somar com o Alexandre [Cordeiro de Macedo, conselheiro do Cade indicado pelo PP]. Então, botar alguém de vocês”, dizia o senador, segundo a reportagem da Veja, citando o atual superintendente-geral, que ainda era conselheiro naquela época. O plano era favorecer a JBS em um processo sobre o preço do gás fornecido pela Petrobras a uma termelétrica do grupo J&F, que pertence a Joesley.

Outro caso envolvendo uma possível interferência política no Cade aconteceu um ano depois, em 2018. Cordeiro contrariou uma nota técnica da Coodenadoria-Geral Antitruste 1, a CGAA1, que orientava algumas restrições à venda da Transfederal Transporte de Valores para o grupo espanhol Prosegur. A empresa brasileira pertencia ao ex-senador cearense Eunício Oliveira, do MDB. O superintendente-geral deu despacho “pela aprovação, sem restrições, do referido ato de concentração”, ou seja, Cordeiro autorizou uma possível redução da concorrência no mercado de transporte de valores.

Mesmo vindo de governos adversários, Cordeiro emplacou seu nome novamente em 2019 e foi indicado por Bolsonaro para o segundo mandato de superintendente-geral. “Ele é um cara que vê a possibilidade de obter ganho político em alguma coisa, então se aproxima da pessoa. É muito bom nisso”, disse uma das minhas fontes.

As suspeitas dos servidores de que as coisas poderiam mudar no Cade foram confirmadas, segundo alguns deles me disseram. Ao menos sete pessoas pediram dispensa dos seus cargos nos últimos quatro anos. “A relação com a equipe ficou prejudicada, porque os profissionais têm uma posição firme e não estão dispostos a encaminhar os processos de forma contrária à convicção técnica. É uma tristeza, uma decepção muito grande ver o que foi feito do órgão”, me falou uma das pessoas com quem conversei.

Outra fonte afirmou que, antes de Cordeiro, discutiam-se abertamente os casos que eram investigados pelo Cade, que o superintendente-geral estava sempre em contato com os coordenadores e que os processos seguiam corretamente. Hoje, a confiança se perdeu. “Não dá para saber se ele está pedindo as informações sobre os processos por motivos profissionais ou se vai usar aquilo para outros fins”.

Indicado por Bolsonaro e aprovado pelos senadores, Cordeiro vai garantir ao menos 10 anos de revezamento entre cargos no órgão de controle econômico. Ele é como o Centrão do Cade: bom de fazer aliados e de agradar quem está no poder.

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