A Câmara Municipal de São Paulo aprovou a Lei Paul Singer, um projeto do vereador petista Eduardo Suplicy que estabelece o marco regulatório para a política de economia solidária e homenageia o economista Paul Singer. O projeto cria uma política municipal de economia solidária, instituindo um fundo e um conselho municipal para fomentar a criação de cooperativas. A lei foi aprovada após vários meses de intenso debate com a sociedade civil e com o poder executivo através do Fórum Municipal de Economia Solidária.
Mas a aprovação da lei subiu no telhado. Enquanto todos os olhos estão virados para a CPI, os bolsonaristas paulistanos, que estão assistindo ao bolsonarismo ruir em Brasília, resolveram criar uma nova teoria da conspiração. Como sabemos, a tática engaja a militância bolsonarista. Eles então inventaram que um projeto voltado para a economia promoveria a chamada “ideologia de gênero” nas escolas municipais, uma insanidade que só faz sentido na cabeça doentia de fanáticos religiosos.
Eu li as 78 páginas do projeto de lei e não encontrei nada que sugira qualquer mudança na grade curricular do sistema de ensino municipal. Mas a chamada bancada cristã, que eu prefiro chamar de bancada ultra-reacionária, encontrou. Um dos artigos que foi descontextualizado para justificar a histeria estabelece a “garantia de direitos e promoção dos direitos humanos nas relações, notadamente com equidade de direitos de gênero, geração, raça, etnia, orientação sexual e identidade de gênero”. Um outro artigo prevê que “os estabelecimentos de ensino da Rede Municipal de Educação deverão abordar, de forma interdisciplinar, o conteúdo e os princípios da Economia Solidária”.
Parece até mentira, mas os reacionários enxergaram nesses trechos uma tentativa de embutir a promoção da ideologia de gênero nas escolas municipais. A obsessão com a sexualidade alheia é tanta que qualquer menção aos termos “equidades de direitos de gênero”, “orientação sexual”e “identidade de gênero” é suficiente para atiçar os preconceitos daqueles que se escondem atrás da Bíblia. Deturparam o projeto assim como deturpam versículos bíblicos, sempre de olho nos seus próprios interesses. Essa é a nova mamadeira de piroca que os bolsonaristas estão servindo em São Paulo.
A bancada cristã se mobilizou fortemente para tentar impedir a aprovação do projeto. Iniciaram uma campanha nas redes e conseguiram agendar uma reunião com o prefeito de SP Ricardo Nunes, do MDB, e entregaram um abaixo-assinado com milhares de assinaturas contrárias pedindo o veto da lei. E, ao que parece, deu certo. Nunes prometeu vetar o artigo que prevê a promoção dos princípios da economia solidária nas escolas municipais.
Duas figuras ligadas ao bolsonarismo tomaram a linha de frente dessa campanha contra o projeto: a vereadora Sonaira Fernandes, do Republicanos, e o vereador Rinaldi Digilio, do PSL. São dois ultra-reacionários que se elegeram com a ajuda da onda bolsonarista que tomou conta do país.
Sonaira é uma evangélica que entrou na política pelos braços da família Bolsonaro. A biografia publicada no site da câmara municipal de SP conta um pouco da sua relação com a família do presidente. Em 2014, quando era estagiária na Polícia Federal, Sonaira conheceu o então escrivão Eduardo Bolsonaro. Lá ela ganhou a admiração do 03, e os dois construíram uma amizade que lhe abriria muitas portas na política. Ainda em 2014, Sonaira foi convidada para participar do comitê de campanha de Eduardo, que concorria pela primeira vez a deputado federal. Eleito, o 03 lhe ofereceu um emprego no seu gabinete, o que fez Soraia se mudar para Brasília, onde conheceu Jair Bolsonaro e atuou na sua campanha presidencial em 2018.
Cumprida essa missão, a bolsonarista foi convidada para trabalhar no gabinete do autointitulado Carteiro Reaça, o deputado estadual Gil Diniz, atualmente sem partido, que reputo ser um dos reacionários mais pusilânimes já eleitos no país. Em 2020, Sonaira recebeu convite de Eduardo Bolsonaro para disputar o cargo de vereadora em São Paulo como “a vereadora da família Bolsonaro em São Paulo”. O presidente chegou a gravar um vídeo ao seu lado dizendo que ela era a sua candidata em São Paulo.
Ele também chegou a publicar uma lista de políticos que gostaria de ver eleitos. Sonaira estava presente junto a outra parça muito próxima do presidente, a Wal Bolsonaro, mais conhecida como Wal do Açaí, a ex-funcionária fantasma de Jair.
Eleita, a bolsonarista fez pouca coisa relevante em seu mandato e se limitou a apoiar ferozmente todas as pautas ultraconservadoras do bolsonarismo. A deputada protagonizou ataques contra Erika Hilton, do PSOL, a primeira vereadora transexual do município. Logo em seu primeiro discurso na Câmara, Sonaira acusou a existência de uma “agenda globalista que pretende feminilizar o homem e masculinizar as mulheres” — um delírio fabricado por mentes doentias como Olavo de Carvalho. Afirmou também que há atualmente “uma geração covarde e capada” e que “Jesus de Nazaré seria o modelo ideal de masculinidade”, em um claro ataque à vereadora Erika Hilton.
O vereador Rinaldi Digilio é pastor desde os 16 anos e também se elegeu na esteira do bolsonarismo. Ele é o autor do projeto de lei que institui o “Escolhi Esperar”, um programa que sugere a abstinência sexual como método para prevenir a gravidez precoce. O texto não cita diretamente a abstinência sexual, mas o termo “Escolhi Esperar” é uma alusão a uma famosa campanha cristã que, segundo o seu site oficial, foi “criada com o propósito de encorajar, fortalecer e orientar os solteiros cristãos a esperarem até o casamento para viverem suas experiências sexuais”. A campanha é inspirada no trabalho da ministra Damares, que em 2019 lançou campanha incentivando a abstinência sexual entre os jovens.
Todos somos contra a gravidez precoce, mas essa estupidez de mandar jovens não transarem demonstra o total descolamento dessa gente com a realidade. Digilio também é autor da proposta que visa vetar discussões de gênero nas escolas e uma outra determinando “o sexo biológico como um único critério definidor do gênero dos competidores em partidas esportivas oficiais”.
Segundo a sua biografia no site da Câmara Municipal, Digilio “barrou a aprovação de mais de 50 leis e proposituras que visavam destruir os valores cristãos e da família tradicional”. O vereador-pastor é o puro suco de bolsonarismo.
Foi Digilio quem liderou a visita da bancada religiosa para pressionar o prefeito. Ele postou no seu Instagram um vídeo ao lado do prefeito Ricardo Nunes, que afirmou que os vereadores da bancada não “ficam lá na Câmara fazendo discurso para atrapalhar a cidade”. O prefeito parece ter abraçado a teoria conspiratória que transformou um projeto de economia em um que impõe ideologia de gênero no currículo das escolas da cidade: “Nas escolas municipais, nós teremos o que tem que ser feito como está no plano de educação, que é ensinar as crianças a parte didática, pedagógica”.
Suplicy então escreveu uma carta aberta ao prefeito fazendo um apelo para que ele não abrace essa fake news: “Ressalto que o artigo fala do respeito aos direitos humanos nas relações das pessoas cooperadas e não no objeto da política. Esse princípio pretende evitar que haja situações de violência ou discriminação dentro das cooperativas. Ignorar o contexto e o real significado desse dispositivo para promover uma suposta oposição à ideologia de gênero nas escolas é atitude falaciosa e desonesta.”
Apesar de sinalizar que irá aprovar o veto a esse artigo do projeto, o prefeito ainda não o vetou. É importante que ele seja pressionado pelos democratas que prezam pela igualdade nas relações e que desprezam as mamadeiras de piroca fabricadas pelo bolsonarismo.
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