Parece coisa de maluco. O deputado Luís Miranda, do DEM do Distrito Federal, afirmou diversas vezes que visitou Jair Bolsonaro em 20 de março deste ano e avisou sobre fraudes na compra da vacina Covaxin. O presidente confirmou que recebeu Luís Miranda em 20 de março. A CPI da Covid já ouviu Miranda sobre a sua visita a Bolsonaro. Mas o Gabinete de Segurança Institucional da presidência, o GSI, se recusa a informar se o deputado visitou ou não o presidente.
Solicitei, via Lei de Acesso à Informação, todos os registros de visitas de Luís Miranda ao Planalto entre janeiro e junho de 2021, incluindo data, horário, tempo de permanência e o nome de outras pessoas que participaram dos encontros.
O deputado e seu irmão, Luís Ricardo Miranda, servidor do Ministério da Saúde, afirmam que levaram até Bolsonaro relatos sobre pressão fora do comum para aprovar a importação da Covaxin, que é alvo de uma série de suspeitas de irregularidades de superfaturamento e cobrança de propina – o que, por si só, torna os encontros situações de interesse público. Ainda segundo os irmãos, Bolsonaro disse que informaria a Polícia Federal sobre a denúncia (o que não aconteceu) e ainda concluiu que o caso era um “rolo” do líder do governo na Câmara, Ricardo Barros, do PP paranaense.
A resposta, enviada pelo GSI, usa como justificativa a lei 13.709/2018, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, conhecida como. LGPD. Na concepção do gabinete, os visitantes do Planalto e do Palácio da Alvorada têm de ter seus dados protegidos por questões de segurança do presidente. Em outras palavras, encontros de pessoas públicas em um órgão público não têm que ser públicos.
A LGPD foi aprovada em 2018, ainda no governo de Michel Temer, mas só entrou em vigor em 2020. Em linhas gerais, ela estabelece normas para o tratamento de dados pessoais por empresas privadas e órgãos públicos, de modo a proteger os cidadãos contra o vazamento ou comercialização de informações sensíveis e falta de transparência sobre o uso delas.
A implementação das regras chega à sua fase final em 1º de agosto, quando começam a valer sanções e multas em casos de descumprimento. Mas os caminhos da implantação da LGPD no Brasil são problemáticos.
O órgão responsável pela sua fiscalização, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados, criada em setembro do ano passado, era para ser uma autarquia independente, mas passou a ser vinculada à Presidência da República. Ela é comandada pelo coronel Waldemar Ortunho Júnior, indicado por Bolsonaro. Três dos cinco diretores são militares indicados pelo presidente – situação semelhante apenas aos órgãos de proteção de dados da China e Rússia.
O advogado especialista em LGPD, Dixmer Vallini Netto, afirma que o governo está usando a lei para barrar o direito de acesso à informação de interesse público. “É de interesse legítimo da sociedade investigar os ocorridos. É cumprimento de obrigação legal, previsto na Lei de Acesso à Informação [ou LAI]“, disse. Vallini cita ainda trecho da lei que afirma que a proteção de dados não se aplica quando é “necessário para atender aos interesses legítimos do controlador ou de terceiro”.
O Serviço Federal de Processamento de Dados, o Serpro, diz no seu site que a LGPD e a LAI se relacionam ao garantirem que “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”. Fica difícil de entender por que o GSI acha que esconder um encontro entre um deputado e o presidente seria imprescindível para garantir a segurança da sociedade.
No começo do ano, o governo já havia negado pedidos semelhantes sobre visitas de lobistas de empresas de armas, advogados de Flávio Bolsonaro e dos filhos do presidente ao Palácio do Planalto.
A Controladoria-Geral da União, a CGU, porém, tem o entendimento consolidado de que negar esse tipo de informação, com os argumentos citados, é um “retrocesso”: “avalia-se que deixar de fornecer as informações requeridas seria um retrocesso. E, assim, qualquer retrocesso na transparência alcançada requer que seja devidamente justificado”.
Em casos anteriores, a CGU afirmou que “registros de ingresso de pessoas, nos órgãos públicos, têm o papel de salvaguardar a segurança e auxiliar na proteção das autoridades, de servidores e do patrimônio público, mas têm também um papel relevante no controle social, pois os dados têm o potencial de indicar os contatos e as agendas das autoridades públicas, bem como de prevenir eventual conflito de interesse”.
Só no primeiro ano de governo Bolsonaro, as negativas a pedidos via LAI quadruplicaram, muitas vezes com o uso de argumentos esdrúxulos. O presidente chegou a tentar restringir a lei no ano passado, em meio à pandemia de coronavírus, suspendendo prazos e limitando servidores que podem conceder informações, mas teve que voltar atrás após decisão do Supremo Tribunal Federal.
Chama a atenção que uma lei criada para aumentar a transparência sobre o uso de dados de cidadãos esteja sendo usada como escudo por militares para diminuir a transparência do governo. Tanto interesse de proteger os dados de visitantes do Planalto contrasta com a agilidade que o governo teve em criar um banco de dados massivos dos cidadãos, com acesso liberado a 28 órgãos, inclusive a Agência Brasileira de Inteligência, a Abin, órgão vinculado ao GSI.
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