“A distribuição de alimentos na Cracolândia só ajuda o crime. O tema precisa ser debatido com honestidade”.
A frase acima foi retirada de um tuíte que a professora da USP e deputada Janaína Paschoal, do PSL de São Paulo, escreveu no último final de semana. Aos seus quase 900 mil seguidores naquela rede, ela reclamava das ações realizadas pelo padre Julio Lancellotti e dezenas de voluntários nas imediações do Parque da Luz, Campos Elíseos e Bom Retiro, em São Paulo. Por ali, circulam todos os dias cerca de 2 mil pessoas (dados da Unifesp e Uniad). Quase todas estão doentes de crack, droga que há três décadas devasta a vida de milhares de famílias. Se você passou o olho pelas redes ou sites de notícias nos últimos três dias, deve ter visto o buruçu que o post da deputada provocou.
Janaína pediu um debate com honestidade. Atendendo ao seu chamado, puxo respeitosamente uma cadeira e me sento à sua frente.
Em primeiro lugar, é importante observar que “honestidade” não é uma qualidade sempre autoatribuída, e dela deriva não só um entendimento sobre nós mesmos, mas ainda daqueles que nos cercam. Também, que a “honestidade” que nos conferimos nunca é engessada e precisa estar aberta ao tempo vivido e aos desafios que ele nos impõe.
Durante décadas, por exemplo, nossos homens “honestos” matavam mulheres alegando “legítima defesa da honra”, tese aceita por centenas de tribunais e que, veja só, reiterava, institucionalmente, a honestidade de assassinos enquanto jogava no lixo a reputação da mulher já sem vida. Hoje, a tal legítima defesa da honra se tornou uma aberração e foi finalmente proibida pelo Supremo Tribunal Federal como argumento em tribunais de júri. O que era honesto há alguns anos hoje não é legal.
‘Ser “patriota” é que nem união civil: se casadas com o Brasil, precisamos estar com ele na alegria e na doença’.
Saio do campo jurídico, mas quero continuar iluminando essa tal honestidade com mais um pouco de ao redor, de vida vivida. Atualmente estamos eu, você, Janaína e milhões de pessoas no Brasil sendo atravessadas por calamidades sobrepostas, como a falta de comida, a falta de moradia, a falta de segurança, a falta de ar. Embora estejamos juntas sob a espada de todas elas, as vivemos de maneiras muito diferentes: nós, a partir de nossos confortáveis apartamentos nos Jardins, em São Paulo, ou no Espinheiro, no Recife, onde moramos. Outros milhões, diretamente a partir da falta de comida, moradia, segurança e ar. Para começar a conversa, é preciso sermos honestas sobre essa obviedade.
Se queremos “propor uma reflexão” não só sobre o que se passa no centro de São Paulo, mas nas cerca de 29 áreas do país nas quais se concentram usuários e vendedores de crack, precisamos olhar essas ruas ocupadas por pessoas, e não por “zumbis”, e nos responsabilizarmos também por essa falência coletiva. A última deve ser compartilhada da mesma maneira com a qual dividimos, por exemplo, a felicidade pelas conquistas de atletas que acabaram de chegar das Olimpíadas. Vi que a deputada comemorou, como eu, as medalhas trazidas. Mas ser “patriota” é que nem união civil: se casadas com o Brasil, precisamos estar com ele na alegria e na doença.
Convocar um debate com o padre Lancellotti e tantas outras pessoas que realizam ações voltadas para a população em situação de rua requer no mínimo esses pressupostos antes de jogar a pedra, se é da pedra que falamos. Saber o que é esse dia a dia, acompanhar durante algum tempo as ações realizadas, se aprofundar em medidas anteriores e estudos, os erros, os acertos. A deputada joga para o padre a responsabilidade de solucionar problemas públicos em vez de mirar a si mesma e aos colegas eleitos. A sociedade civil, sejamos justas, tem feito muito pela população de rua, muitas vezes mais que o próprio Estado.
Os dados das citadas Unifesp e Uniad são pré-pandêmicos, de 2019, por isso não alcançam nossa catástrofe atual. Mas, neles, já sabemos que 48,4% dos respondentes que frequentam a desumanamente chamada Cracolândia possuem quadros de automutilação. Quase 60% (exatamente 58,3%) apresentam quadros psicóticos e 46,4% ideias suicidas. Imagine só puxar o banquinho, sentar e tentar convencê-los a procurar abrigo e tratamento, como sugeriu a senhora? Quase 80% dos frequentadores da área estavam sem qualquer atividade remunerada há pelo menos um ano, enquanto 52% não tinham trabalho há cinco. E mais da metade deles (53%) já procurou algum tratamento para parar com as drogas.
Sei que a senhora já esteve à frente da presidência do Conselho Estadual de Entorpecentes de São Paulo, e por isso confesso que me causa surpresa um raciocínio simplista como associar a distribuição de comida a adultos e crianças nas ruas à manutenção do crime. Mais surpresa ainda por se tratar de algo escrito e levado à praça pública justamente em um país detonado pela covid-19, com o segundo maior número de mortes do mundo e com milhões de pessoas lançadas atualmente à indignidade da fome; pessoas sem qualquer condição de ter, agora, um lar. Levantamento da Campanha Despejo Zero mostrou que somente entre março de 2020 e junho de 2021 14 mil famílias foram despejadas de suas casas. A Folha fez uma boa matéria e mostrou relatos de metalúrgicos, domésticas, músicos e entregadores de aplicativos que foram obrigados a ir para a rua.
Uma deputada e ainda docente de uma universidade pública – seja ela em São Paulo, no Recife, em Petrolina, no Recôncavo Baiano ou no Mato Grosso do Sul – tem a obrigação de compreender acima do senso comum a história de um Brasil que inaugura sua maioridade não só através de um pacto de manutenção da escravidão, mas de distribuição profundamente desigual de terras e propriedades.
O assunto é antigo? É sim. Mas ele é tão antigo quanto não resolvido. Se fosse superado, ter um teto nesse país não seria um luxo, principalmente ter um teto em um bairro com esgoto, escola e ônibus na porta. Bairro que não é recusado por questões de segurança quando você pede uma comida ou carro pelo aplicativo, sabe? Quem escreveu bem a respeito foi o professor José Sacchetta Ramos Mendes, formado em Direito na USP, como a deputada.
No último domingo, Dia dos Pais, enquanto os jornais noticiavam a repercussão do post, ouvi o relato da mãe de uma mulher de 34 anos, três filhos. Na semana passada, a última se juntou aos cerca de 15 milhões de brasileiras e brasileiros desempregados. Trabalhava como doméstica. O filho menor está doente e ela, que vive de aluguel, precisa levá-lo ao médico com certa frequência, o que causou sua demissão. “A patroa disse à minha filha que precisava de alguém mais livre, com menos compromissos”. A esta mãe, que cria sozinha as crianças, resta a tarefa de ser heroína e dar conta do próximo aluguel – se fracassar, o problema é dela. Se seus filhos terminarem nas ruas ou em uma das dezenas de “cracolândias” existentes no país, a “culpa” é deles. Também lembrei de Patrícia e Bianca, irmãs que acompanhei durante algum tempo e que usavam crack há anos. Elas tinham uma casa, cedida pelos governos federal e estadual. Mas sabe o que tinha lá dentro da casa? Um pai que as molestava sexualmente. Elas preferiam a rua e foi lá que a droga as alcançou. Falharam também?
Cristo empreendedor
Há ainda uma questão – ou melhor, um nome – crucial neste debate: Jesus. Reparei que a deputada está atrás de uma escultura de Cristo em sua foto no Twitter. Me fez pensar como, ali, ele serve também como um escudo, um cartão de visitas, uma espécie de senha para que nós estejamos antes de tudo cientes: Janaína é uma pessoa do bem. Mais: Janaína, uma pessoa pública, a deputada mais votada na história do país, 2 milhões de votos, é do bem. Mas espere: o padre, além de acreditar em Cristo, escolheu dedicar-se integralmente a ele. O padre é do bem? Será que um padre assim, meio progressista, pode sê-lo? Será que ele deveria abraçar uma escultura de Cristo e usar a imagem como avatar no Twitter?
Será que existe um Jesus para Paschoal e um Jesus para Lancellotti? A ver:
Nos últimos anos, estamos ainda mais íntimos de estratégias diversas a respeito da utilização política de Cristo, que se tornou para muitos, infelizmente, uma espécie de massa de modelar cuja forma é definida conforme a ocasião, o discurso, o partido, o projeto de lei. Nessa operação, muitas vezes, estão usualmente aquelas e aqueles que ostentam uma humanidade sob medida, uma humanidade prêt-à-porter, que sempre escolhe o corpo que melhor lhe cabe. Nela, Cristo é apresentado como uma espécie de coach, um cara que você precisa apenas ouvir e seguir as dicas, e assim alcançará o sucesso.
‘Nesse ato de modelar Cristo e entendê-lo enquanto coach, há também uma imensa e mal-disfarçada superioridade moral’.
Não conseguiu “vencer” as drogas? Não se esforçou o suficiente. Foi despejada? Idem. Se você não soube aproveitar esse Cristo da alta performance, volte para o fim da fila. Seu sofrimento é sempre causado por uma falha própria que esses grupos observam, julgam e dão a nota. Não é exatamente religião; é bom ou mau desempenho. Aqui não existe passado, sociedade, coletividade: somos antes de tudo uma junção de histórias individuais divididas entre “perdedores” e “vencedores”.
O tuíte da deputada está preocupado com os últimos, os moradores (proprietários ou quem consegue pagar aluguel) e trabalhadores (quem faz o favor de ter um emprego), enquanto pessoas dependentes de crack estão zanzando por ali comendo a comida levada pelo padre e muitas vezes morrendo na contramão atrapalhando o tráfego.
Nesse ato de modelar Cristo e entendê-lo enquanto coach, há também uma imensa e mal-disfarçada superioridade moral. Os modeladores acham, por exemplo, que a “real” honestidade está com eles – por isso, não se sentem constrangidos em jogar um debate para a plateia sem estabelecer antes uma relação verdadeiramente dialógica com o destinatário de seu incômodo, como fez a deputada.
Há uma cena particularmente reveladora da superioridade moral observada na fala e na performance da professora de Direito: é quando ela chora no Senado Federal enquanto pede desculpas à ex-presidente Dilma Rousseff durante a votação final do impeachment, em 2016. Com voz embargada, Janaína diz saber que lhe causou sofrimento, mas que “não podia se omitir”. “Eu peço que ela, um dia, entenda que eu fiz isso pensando também nos netos dela”.
Naquele momento, entre lágrimas, ela se autoconsagrava com o manto de heroína, de interventora moral da nação. Era aquela que, como Jesus, veio para salvar. Desta forma, assumia para si a prerrogativa de atuar pelo futuro dos netos, dos filhos e dos pássaros do Brasil. Quando os jornais noticiaram que a professora e o jurista Miguel Reale Jr. foram contratados pelo PSDB por R$ 45 mil para formular o pedido do impeachment, ela respondeu dizendo que, antes de tudo, agiu em nome de sua consciência e dos cidadãos indignados.
A indignação e a consciência, essas irmãs da honestidade. A indignação, esse sentimento que sempre transborda no peito dos seguidores de Cristo enquanto coach, esse Jesus orientado antes de tudo por uma moral, e não por uma humanidade. O Jesus da superior consciência, o que se preocupa com as crianças a caminho da escola nos Campos Elíseos, mas não necessariamente com as crianças cujos pais, doentes de crack, vivem nas ruas dali. Eles falharam, e quem mora e trabalha naquela região já não os aguenta mais. Nem Janaína e seu Jesus. Só resta esperar que estes dependentes, além de Lancellotti e seu Cristo, se recolham em um abrigo e comecem a se tratar.
Correção, 10/8, 10h46:
Janaína Paschoal é deputada estadual pelo estado de São Paulo, não federal. O texto foi corrigido.
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