A lucrativa máquina de vendas que financia Olavo de Carvalho e outras dezenas de figuras da extrema direita

Livros, canivetes e anjos

A lucrativa máquina de vendas que financia Olavo de Carvalho e outras dezenas de figuras da extrema direita

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Não são apenas teorias da conspiração que unem os bolsonaristas Olavo de Carvalho, Allan dos Santos, Bernardo Küster e Sara Winter, o defensor de armas Bene Barbosa, os jornalistas Luís Ernesto Lacombe e Leda Nagle e portais como Terça Livre, Senso Incomum e Folha Política. Todos têm negócios com uma editora de Campinas, no interior de São Paulo, chamada Cedet.

O Cedet é uma empresa que tem sete selos editoriais próprios e parcerias com outras 20 editoras, além de gerenciar 72 livrarias virtuais. A maioria delas opera sob os nomes de personalidades ou de sites conhecidos da extrema direita, aí incluídas as figuras que abrem este texto, além de Ana Campagnolo, Antonia Fontenelle, Italo Marsili, Alexandre Costa, Rodrigo Gurgel, Rodrigo Constantino e o jornal online Brasil Sem Medo, de Olavo de Carvalho.

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Só Olavo recebeu mais de R$ 106 mil do Cedet, em 2017, como ele mesmo informou na declaração de imposto de renda disponível nos documentos de um processo movido contra ele pelo músico Caetano Veloso. Segundo o Cedet, trata-se do pagamento de direitos autorais do guru bolsonarista.

Olavo, Ana Campagnolo e Italo Marsili tiveram livros lançados pelo Cedet. As livrarias virtuais também vendem títulos selecionados por influenciadores da extrema direita, de publicações com inspiração no extremismo católico da CitizenGO a escritos de economistas ultraliberais, como Ludwig von Mises, que teve obras editadas por selos do próprio Cedet.

Até agosto de 2021, 81 domínios de sites eram vinculados ao CNPJ do Cedet, segundo consulta no Registro.br, do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR, o NIC.br. Pouco conhecida, a história da empresa é um retrato da ascensão da extrema direita e do boom editorial de seus autores no Brasil, um fenômeno que vem se desenrolando ao menos há uma década.

Entre 2009 e 2019, o Cedet se mudou de uma casa simples para um galpão num complexo industrial em Campinas. O capital social sextuplicou, indo de R$ 20 mil a R$ 120 mil, ainda modesto para uma empresa de pequeno porte, faixa em que o faturamento atualmente pode chegar a R$ 4,8 milhões anuais.

Segundo uma fonte que já fez parte do Cedet – e que conversou com o Intercept sob a condição de anonimato –, as editoras e o olavismo têm uma relação de benefício mútuo. A empresa supriu a demanda do mercado editorial aberta por vozes como a de Olavo. Já o guru bolsonarista se valeu da capacidade operacional do Cedet para se consolidar como principal voz da extrema direita. “Não foi do nada que surgiu [o boom do mercado editorial conservador], nem foi sozinho. Foi uma escalada”, definiu a fonte.

Especializado em telecomunicações, com mestrado e doutorado em engenharia elétrica, César Kyn D’Ávila, um dos sócios do Cedet, incluiu no Lattes (a plataforma de currículos acadêmicos no Brasil) um “Seminário de Filosofia” como pós-doutorado. O curso, segundo ele, foi realizado em 2009, quando ocorreu a primeira edição do curso de filosofia de Olavo – e quando o Cedet passou a publicar livros, após 27 anos atuando num ramo diferente.

A outra sócia majoritária é a engenheira Adelice Leite de Godoy D’Ávila. Conservadora, ela já afirmou na Câmara de Campinas ser integrante do Observatório Interamericano de Biopolítica, uma organização que combate a “ideologia de gênero” e faz parte de um movimento católico ultraconservador que se define como “pró-vida” – ou seja, que combate o direito ao aborto.

Como o Intercept revelou, uma organização que usava o domínio biopolitica.com.br trouxe ao Brasil Ignacio Arsuaga, idealizador de movimentos de extrema direita na Espanha. Em 2013, Arsuaga veio ao país para juntar militantes e ensiná-los como montar e financiar organizações como a dele.

Na selfie com arminhas de Henrique Lima, do Ministério Público de Contas do Rio, Bernardo Küster (à esquerda, de camiseta verde), Silvio Grimaldo (à direita, de azul e usando barba) e Cesar Kyn D'Ávila (ao lado dele, de camiseta regata) comemoram os 10 anos do Foro de Paraty. Ao fundo, Deise Fabiana Ely, de verde.

Na selfie com arminhas de Henrique Lima, do Ministério Público de Contas do Rio, Bernardo Küster (à esquerda, de camiseta verde), Silvio Grimaldo (à direita, de azul e usando barba) e Cesar Kyn D’Ávila (ao lado dele, de camiseta regata) comemoram os 10 anos do Foro de Paraty. Ao fundo, Deise Fabiana Ely, de verde.

Foto: Reprodução/Instagram

Foro de Paraty

Foi por volta de 2008 que Silvio Grimaldo – aluno, assistente e mais tarde administrador do curso de filosofia de Olavo – começou a buscar uma editora disposta a publicar os livros do guru. Quem conta a história é Francisco Escorsim em uma coluna no jornal Gazeta do Povo.

À época, Olavo havia rompido relações com o editor Edson Manoel de Oliveira Filho, da É Realizações. Segundo Escorsim, foi de uma conversa entre Grimaldo e D’Ávila, na casa de Olavo, que surgiu a ideia para os primeiros selos editoriais do Cedet, Vide e Ecclesiae, em 2009.

Grimaldo e D’Ávila se denominaram Foro de Paraty, um contraponto óbvio ao Foro de São Paulo, um dos alvos preferidos da extrema direita. Grimaldo já postou fotos no Instagram com D’Ávila e Küster usando a expressão como legenda.

Olavo nasceu em Campinas e vivia até há pouco tempo na Virgínia, nos Estados Unidos – ele retornou ao Brasil para um tratamento médico e está internado desde 9 de agosto no Instituto do Coração, o Incor, em São Paulo. Nas palavras de Heloísa de Carvalho, filha de Olavo, Grimaldo é “o braço direito, o esquerdo e as duas pernas do guru no Brasil”.

Os nomes do Cedet

  • César Kyn D’Ávila (ex-aluno de Olavo de Carvalho)
  • Adelice Leite de Godoy D’Ávila (integrante de movimento católico conservador)
  • Vinicius Belandrino Bardella (ex-aluno de Olavo)
  • Deise Fabiana Ely (professora universitária, casada com Silvio Grimaldo, do Brasil Sem Medo, ex-aluno e administrador do curso de Olavo).
  • Autores como Ana Campagnolo (Vide), Alexandre Costa (Vide), Bene Barbosa e Flávio Quintela (Vide), Fausto Zamboni (Kírion), Rodrigo Gurgel (Vide), Italo Marsili (Auster), Paulo Ricardo (Ecclesiae), o atual secretário de alfabetização Carlos Nadalim (Kírion) e o ex-ministro Ricardo Vélez Rodriguez (Vide)
  • O Foro de Paraty: César Kyn D’Ávila, Silvio Grimaldo, Bernardo Küster, Arno Alcântara Junior, Carlos Nadalim e Henrique Lima
  • Aliados como Paulo Briguet (Brasil Sem Medo) e Filipe Barros (deputado federal pelo PSL do Paraná), além de editores e influenciadores digitais de extrema direita como o Terça Livre

No Facebook, uma das fotos do álbum público de Deise Fabiana Ely, casada com Grimaldo e atualmente sócia do Cedet, tem Grimaldo e D’Ávila posando com cachimbos ao lado de Arno Alcântara Junior (produtor digital de Londrina e sócio do Brasil Sem Medo), Carlos Nadalim (atual secretário de Alfabetização do Ministério da Educação) e Henrique Lima (procurador do Ministério Público de Contas do Rio de Janeiro e colunista do Terça Livre). A legenda: “Homens do Foro [de Paraty] e Campinas”.

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Carlos Nadalim, do MEC, Henrique Lima, do Ministério Público, Cesar Kyn D’Ávila, Arno Alcântara Júnior e Silvio Grimaldo: olavetes aplicados, segundo a filha do guru.

Para Heloísa de Carvalho, o Foro de Paraty “é a cúpula” do círculo da extrema direita brasileira. “Estar ali não é pra qualquer olavete”, ela disse.

Paraty, cidade histórica no sul do Rio de Janeiro, desde 2003 abriga a Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip. Trata-se de um dos símbolos do mainstream editorial. Segundo uma fonte próxima ao Cedet, o apelido “Foro de Paraty” é uma ironia que começou quando Grimaldo e D’Ávila viajaram com o influenciador da extrema direita católica (e padre) Paulo Ricardo para gravar vídeo-aulas na cidade. O combo de livro, DVD e CD “Vaticano II: ruptura ou continuidade” foi lançado pela Ecclesiae, do Cedet, em 2009.

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‘Saltos maiores’

O Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico, origem da sigla Cedet, foi aberto em julho de 1982. A empresa nasceu com o objetivo de prestar “serviços de consultoria e assessoria técnico-científica, de desenvolvimento de recursos humanos, bem como em qualquer outra forma aplicável ao seu ramo de atividade, nas áreas de administração, planejamento e tecnologia industrial”, conforme contrato disponível na Junta Comercial do Estado de São Paulo, a Jucesp, que o Intercept requereu e analisou.

O Cedet foi fundado pelo engenheiro Saul Gonçalves D’Ávila, professor da Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp, e outros quatro sócios. Em 1986, eles deixaram o negócio, e ele então incluiu como sócia a esposa, a bióloga Tiyoka Mori D’Ávila. Em 2006, a empresa foi transferida para o filho do casal, César Kyn D’Ávila, e a esposa dele, Adelice Leite de Godoy.

Foi só em maio de 2009 que o Cedet incluiu entre suas atividades a “edição integrada à impressão de livros”. O primeiro endereço da editora era uma casa de tijolos à vista na Rua Ângelo Vicentin, em Barão Geraldo, região muito valorizada de Campinas por ficar próxima à Unicamp.

Ao Intercept, o Cedet informou que “instabilidades nos mercados em que atuava entre os anos de 2002 e 2006 [consultoria, treinamentos e assessoria técnica nas áreas de administração e tecnologia industrial] suscitaram a vontade dos sócios em atuar de forma mais próxima do consumidor final, diminuindo a dependência de contratos com grandes empresas”.

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Daí, segundo a empresa, veio a decisão de publicar e vender livros, apoiada na experiência com a edição “de mais 200 apostilas”, a emergência do mercado de e-books e “o alto grau de conhecimento dos consultores em automatização e otimização de processos para redução de custos e aumento de eficiência”. O encontro entre D’Ávila e Grimaldo, narrado na Gazeta do Povo, não foi mencionado pela empresa.

Barão Geraldo é uma espécie de bolha universitária. Quem mora ali são majoritariamente professores e estudantes. Entretanto, diversas fontes consultadas pelo Intercept disseram desconhecer a credibilidade da editora nos círculos acadêmicos.

Foi apenas em 2018 que o Cedet saiu de Barão Geraldo rumo a um pequeno prédio na rua Armando Strazzacappa, na Fazenda Santa Cândida. O negócio cresceu e, no ano seguinte, a sede se consolidou em um imponente condomínio empresarial e logístico na avenida Comendador Aladino Selmi, na Vila San Martin, o que coincidiu com a entrada de dois novos sócios: o engenheiro paulista Vinicius Belandrino Bardella e a geógrafa gaúcha Deise Fabiana Ely, professora da Universidade Estadual de Londrina, a UEL, no Paraná.

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Na placa que indica as empresas instaladas no condomínio, o espaço do Cedet (número 8) está vazio.

Foto: Nayara Felizardo para o Intercept Brasil

Na Vila San Martin, o Cedet ocupa um dos 21 módulos do complexo, que funciona nos moldes de um condomínio fechado e possui segurança reforçada. Cada módulo possui 1.740 metros quadrados, dos quais 225 são destinados, em mezaninos, para a instalação dos escritórios. O Cedet ocupa o de número 8, o que a reportagem só descobriu ao perguntar ao porteiro – o espaço correspondente na placa que anuncia os nomes dos ocupantes de cada um dos módulos está vazio, o que indica um apreço pelo anonimato.

Em 2020, o Cedet abriu uma filial em João Pessoa, na Paraíba, para reduzir o prazo de entrega de encomendas no Nordeste. Segundo a empresa, trata-se de “uma unidade piloto para saltos maiores” no futuro. “Nos próximos anos, o escopo de parcerias deve ser ampliado inclusive para contemplar pontos de venda físicos e editores de pequeno para médio porte”, afirmou.

Pedi ao Cedet informações sobre tiragens e vendas dos livros que publica. A empresa se gaba de ter visto “a oportunidade de implementar inovações que são mudanças de paradigma para todo o mercado editorial”, mas não quis apresentá-las. “Dados de faturamento, outros índices e quantitativos, por motivos óbvios, não são divulgados”, afirmou.

Mas o Cedet fez questão de dizer que possui “um modelo de negócios único e inovador para pequenos editores e pontos de venda online”, que “permite a permanência no mercado de livros com baixo nível de vendas, ou seja, as eficiências obtidas permitem a exploração lucrativa da cauda longa do mercado de livros”.

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Nando Moura, ex-parceiro da Cedet numa livraria virtual: ‘Um negócio absurdo, avassalador’.

Foto: Reprodução/YouTube

‘A fome com a vontade de comer’

Ex-aluno de Olavo, o músico e youtuber paulistano Nando Moura foi um dos influenciadores que ajudou a catapultar o modelo de negócios do Cedet. Por volta de 2017, Moura fez uma entrevista com o instrutor de tiro Bene Barbosa, coautor de “Mentiram para mim sobre o desarmamento” (com o jornalista Flávio Quintela), publicado pela Vide Editorial, do Cedet, em 2015. Barbosa já tinha uma livraria digital operada pela empresa. Após a entrevista, D’Ávila procurou Moura e o convidou para também abrir uma loja virtual.

“A livraria, na verdade, é um modelo de negócio pensado pelo César, onde ele pega determinado influenciador, e o influenciador faz a curadoria dos livros, ou seja, o que ele acha que é legal vender […]. Ele faz esse modelo de negócios e aí se cria essa plataforma”, relatou Moura, em vídeo publicado no YouTube em 16 de março de 2021. “Foi juntar a fome com a vontade de comer”.

Nas palavras de Moura, a livraria foi um sucesso, “um negócio absurdo, avassalador”. Nesse modelo, a Cedet se encarrega da infraestrutura e do atendimento ao cliente,enquanto o  influenciador serve como vitrine dos produtos – eles precisam ter “pelo menos 100 mil seguidores e bom engajamento nas postagens em redes sociais”, segundo o site da empresa.

O modelo de negócios do Cedet

  • Cedet monta e administra livrarias virtuais, cadastra e estoca produtos num depósito, atende pedidos online, faz cobranças dos pedidos e fretes, despacha encomendas e emite notas fiscais.
  • Influenciador paga domínio de internet, faz curadoria dos livros e divulga loja virtual.
  • Cedet ganha com a venda de produtos e livros impulsionada pelas personalidades de extrema direita.
  • Influenciador ganha comissão e amplifica sua influência na extrema direita.

No fim das contas, o Cedet ganha com a venda de livros (inclusive editados por ela mesma), impulsionada pela visibilidade dos influenciadores. Esses, por sua vez, ganham comissões e amplificam as ideias ultraconservadoras que defendem.

“Esse modelo de negócios deu tão certo que depois diversos influenciadores do nicho conservador acabaram tendo sua livraria […]. Foi criada uma rede de livrarias atrelada a esse modelo de negócios que eu e César fizemos funcionar na internet. […] Depois, esses caras começaram a me apunhalar pelas costas”, Moura reclamou, no YouTube. Entre “esses caras” estão Allan dos Santos, Bernardo Pires Küster e Sara Winter, por ele definida como “praticamente uma analfabeta”.

“Esses caras” também têm problemas com as autoridades. Sara, cujo sobrenome real é Geromini, foi detida e ficou presa por dez dias em junho de 2020 sob suspeita de organizar e captar recursos para atos antidemocráticos. Santos e Küster são investigados no inquérito das fake news do Supremo Tribunal Federal, o STF, e tiveram seus sigilos financeiros quebrados pela CPI da Covid no Senado.

Perguntei ao Cedet se a empresa vê motivos de preocupação nisso. “Todas as livrarias virtuais sob nossa gestão e editoras parceiras são empresas”, foi a resposta. “Todo pagamento efetuado do Cedet para seus parceiros é feito contra a apresentação de nota fiscal do serviço prestado. Não existe nenhum motivo para preocupação”.

Moura acabou por romper com “esses caras” e parte da extrema direita brasileira quando passou a criticar o governo de Jair Bolsonaro. “Tirei todos os livros do Olavo de Carvalho da minha livraria. Não consigo mais reconhecer o autor dos livros que eu li. E li praticamente todos, 95% [deles]”, disse o músico noutro vídeo, postado no YouTube em 27 de outubro de 2019.

O racha levou o youtuber a se afastar também do Cedet e fechar sua livraria virtual – segundo ele, por iniciativa própria. “Não vou ficar em qualquer lugar onde fique o senhor Bernardo Küster. Liguei para o César e disse: onde estiver esse cara, esse canalha, eu não participo”, justificou. Procurado por e-mail pelo Intercept, Moura não retornou os pedidos de entrevista.

O berço do olavismo

Olavo é reconhecido como “guru” por gente importante do bolsonarismo. Desde a posse de Bolsonaro, “olavetes” (como o próprio autor já se referiu a seus seguidores) ocuparam ou ocupam cargos importantes da República.

Olavete é também o nome de uma das livrarias do Cedet, que conta com clube de leitura e site. Se Olavo pariu a ninhada de influenciadores de extrema direita ao redor do bolsonarismo no governo, o Cedet foi um dos berços.

“Olavo é um fenômeno duradouro e que por décadas foi encarado com certa displicência pela academia. Ele sedimentou um movimento antiacadêmico que mistura citações de filósofos clássicos com polêmicas vazias de sentido. Se existe alguém que realmente pratica doutrinação política como se fosse um processo educativo é Olavo”, criticou o historiador Fernando Nicolazzi, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a UFRGS.

‘É um ecossistema puxado pelo Olavo, que alega que o mercado editorial, a mídia e as universidades são partes do marxismo cultural e vende a promessa de trazer à luz um conhecimento ‘proibido”.

Para o historiador Gilberto Calil, professor da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, a Unioeste, a ascensão da extrema direita no Brasil se desenrolou desde os anos 2000 e teve Olavo como figura-chave. Trata-se de um fenômeno editorial, que envolveu um elemento empresarial e um foco ideológico, a tal “guerra cultural”. “Um projeto político fascistizante, que mobiliza ressentimentos como todo fascismo faz: a construção do discurso de um inimigo, as teorias da conspiração são combustível para sua propagação”, resumiu Calil.

Para dar vazão às teorias da conspiração, o olavismo acabou por inventar suas próprias rodas culturais, cujo expoente máximo é o curso de filosofia criado pelo guru, e que precisaram de editoras dispostas a publicar e livrarias para vender conteúdo alinhado. Foi aí que entrou o Cedet.

Para o antropólogo David Nemer, professor da Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos, abriu-se um mercado a partir do curso de filosofia de Olavo para propagar literatura conservadora do século 20, até então pouco difundida no país. “Editoras são uma peça no quebra-cabeças do Olavo.”

De um lado, o fenômeno editorial conservador (com a tradução de autores como Xavier Zubiri e Eric Voegelin, ambos no catálogo do Cedet) busca dar ares de fundamentação teórica para as mídias digitais bolsonaristas. De outro, o núcleo de influenciadores digitais de extrema direita ajuda a popularizar paulatinamente essas ideias, o que é visível, por exemplo, na difusão de memes com citações de livros indicados por eles.

“Trata-se de um ecossistema puxado pelo Olavo, que alega que o mercado editorial, a mídia e as universidades são partes do marxismo cultural e, a partir daí, vende a promessa de trazer à luz um conhecimento ‘proibido’ no mundo intelectual brasileiro que, segundo ele, seria de esquerda. A ideia é liderar uma revolução cultural conservadora no Brasil”, disse Nemer, que pesquisa grupos bolsonaristas no WhatsApp.

Facas e canivetes à venda na Livraria do armamentista Bene Barbosa, administrada pelo Cedet.

Facas e canivetes à venda na livraria do armamentista Bene Barbosa, administrada pelo Cedet.

Foto: Reprodução

Os tentáculos da guerra cultural

O link “onde estamos” das 72 livrarias virtuais administradas pelo Cedet traz o mesmo número de CNPJ e o endereço da empresa de Campinas.

Em tese, o fato de um CNPJ concentrar diversas editoras e livrarias não é incomum. “Há no mercado editorial uma tendência à concentração. No Brasil não é diferente: diversos selos editoriais outrora autônomos (com CNPJ próprio) passam a ser parte de um conglomerado central”, avaliou o editor Paulo Verano, professor da Universidade de São Paulo, a USP.

Os tentáculos do Cedet

  • 7 editoras: Vide Editorial (2009), Ecclesiae (2009), Edições Livre (2016), Kírion (2017), Auster (2019), Sétimo Selo (2021) e Pelicano (2021).
  • Mais de 20 editoras parceiras, entre elas: Armada (de Márcio Scansani), Danúbio (de Diogo Fontana, ex-aluno de Olavo de Carvalho), Estudos Nacionais (de Cristian Derosa, ex-aluno de Olavo e colunista do Brasil Sem Medo).
  • Mais de 70 livrarias virtuais, entre elas: Brasil Sem Medo, Folha Política, Terça Livre, Ana Campagnolo, Bernardo Küster, Bene Barbosa, Flavio Morgenstern (Senso Incomum), Italo Marsili, Leda Nagle, Luís Ernesto Lacombe, Rodrigo Constantino, Rodrigo Gurgel, Sara Winter e Seminário Online de Filosofia.

No modelo de negócios do Cedet, segundo a página oficial, não há custo para os parceiros do negócio (exceto a compra do domínio na internet). “Notas fiscais, cobrança, logística, visitas comerciais, acertos de consignação e outras atividades ficam por conta do Cedet”. No Brasil, não é obrigatória a divulgação da tiragem de livros, o que dificulta ter dimensão das operações da editora.

Além de “mais de 10 mil livros”, nas livrarias do Cedet é possível vender “brinquedos e jogos, camisetas, imagens religiosas, adesivos, óculos, material esportivo, café, cutelaria, e artigos de defesa pessoal”.

A livraria de Küster, por exemplo, oferece como “souvenires” imagens de santos e anjos. A de Barbosa tem uma seção de “artigos de defesa pessoal” com canivetes, facões e máquina de choque.

A livraria de Sara Winter traz camisetas “Meu partido é o Brasil” com uma mancha vermelha, em referência ao atentado à faca sofrido por Bolsonaro. Vivendo sob restrições impostas pela justiça, ela disse em entrevistas recentes que passou a se dedicar à formação intelectual de seus seguidores em um clube de “alta cultura”, um curso online que contaria com aulas de Olavo e “masterclasses” sobre guerra semântica e militância.

De Küster a Winter, o ecossistema ao redor de Olavo congrega desde monarquistas a católicos ultraconservadores, passando por agitadores tresloucados a autores pretensamente mais sofisticados, analisou Pablo Ornelas Rosa, professor da Universidade Vila Velha, a UVV, que estuda a movimentação de grupos bolsonaristas no WhatsApp e o mercado editorial.

“O Cedet simboliza a vanguarda dessa literatura de direita, mas é só a ponta do icerberg. O olavismo faz parte de um processo que articulou outras editoras e se infiltrou nos think tanks liberais e nas instituições”, disse Rosa, citando como exemplo o memorável seminário sobre “globalismo” realizado pelo Itamaraty e a Fundação Alexandre Gusmão, a Funag, em junho de 2019.

Não por acaso tida como “bunker olavista”, a Funag convidou Alexandre Costa e Flávio Morgenstern, autores do Cedet, para participar do evento. Filipe Martins, assessor especial para Assuntos Internacionais do governo federal, incluiu o best-seller olavista “O jardim das aflições”, também publicado pelo Cedet, na bibliografia do seminário. Em dezembro de 2019, a fundação convidou para uma conferência o advogado Evandro Pontes, que traduziu para o português o livro “A virtude do nacionalismo”, do filósofo israelense Yoram Hazony, também lançado pelo Cedet.

Apesar das relações de seus autores e donos de livrarias com o governo Bolsonaro, o Cedet diz não ter interesse em contratos com o poder público. “Por princípio, o Cedet não realiza negócios com governos ou participa de licitações”, me disse a empresa, por e-mail.

As respostas às questões da entrevista vieram acompanhadas de uma advertência com claro tom de ameaça: o Cedet disse que processaria o Intercept se suas respostas não fossem publicadas na íntegra, sem edição. Editar informações prestadas por fontes, para fins de clareza ou espaço, é uma prerrogativa do jornalismo – desde que, é claro, preserve-se o sentido original.

“Edições, manipulações, extrações de partes fora de contexto poderão ensejar ações judiciais para pedido de direito de resposta, retratações públicas e/ou compensações financeiras por danos à imagem da empresa”, diz o e-mail.

Vinda de uma empresa que faz negócios com arautos das fake news e teorias da conspiração, a preocupação com o contexto e a exatidão de informações não deixou de ser uma surpresa.

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