Uma mina de ouro encravada no meio da Amazônia superou R$ 1,1 bilhão em receita em pouco mais de um ano de operação, de acordo com a Agência Nacional de Mineração, a ANM. Além dos valores expressivos, a empresa Gana Gold Mineração chama a atenção por extrair um volume de ouro 32 vezes maior do que o estimado e operar sob uma licença irregular, apesar de ser uma atividade bilionária com alto impacto ambiental.
A empresa, que está sendo investigada pela Polícia Federal, só tem autorização para operar porque a prefeitura de Itaituba atropelou as legislações estadual e federal ao licenciar a mina – e porque a ANM fechou os olhos para a irregularidade. O caso é um exemplo da dissonância entre as instituições que deveriam proteger a Amazônia, da permissividade de governos focados em facilitar a mineração na região e do sucesso do lobby em Brasília junto a deputados federais e ministros do governo Bolsonaro.
Nos últimos seis meses, acompanhei os passos da novata Gana Gold até o primeiro bilhão. Com apenas uma mina em atividade, a empresa é líder em exploração de ouro na região Norte, representando atualmente 18% da lavra do metal no Pará, de acordo com informações do site da ANM. A alta produtividade intriga porque a operação anual prevista era de 96,53 kg de ouro, segundo informações prestadas pela própria empresa à agência reguladora do setor. Seguindo esses valores fornecidos pela Gana Gold, a mineradora deveria ter uma receita anual de cerca de R$ 30 milhões se operasse dentro da estimativa prevista na licença.
No entanto, desde 2020, a empresa declarou ganhos de mais de R$ 1 bilhão. Em apenas oito meses, ela já extrapolou em 32 vezes o estimado informado à agência para 2021. Essa produtividade não é nada comum: os números colocariam a mina acima das operações mais rentáveis no mundo, com um teor médio (quantidade de ouro por tonelada de material bruto extraído do solo) muito superior a empreendimentos vizinhos. Como a Gana consegue esse milagre? Procurei a empresa, mas ela não forneceu uma explicação.
A lucrativa mina fica dentro de uma unidade de conservação federal vizinha da Terra Indígena Munduruku, em Itaituba, município do sudoeste do Pará. É uma região que passa por uma verdadeira corrida do ouro, especialmente após o início do governo Bolsonaro – um fiel apoiador de garimpeiros que luta para aprovar a liberação de mineração dentro de terras indígenas.
É um mercado que movimenta bilhões de reais todos os anos, sendo boa parte clandestino. Mais de um quarto das 174 toneladas de ouro produzidas pelo Brasil em 2019 e 2020 tiveram origem ilegal, gerando um prejuízo de R$ 9,8 bilhões para o país, aponta estudo feito por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais, a UFMG, e por procuradores da República do Ministério Público Federal, o MPF. A pesquisa serviu de base para quatro ações civis públicas do MPF no Pará, apresentadas em julho e agosto deste ano. Elas pedem a suspensão de garimpos na região e de instituições financeiras acusadas de comprar ouro ilegal até que haja mais controle sobre a comercialização do minério. A ação deixa de fora a lavra industrial de ouro, caso da Gana Gold.
O estudo também indica que a maior parte dessa produção nacional vai para países como Canadá, Reino Unido e Suíça. No primeiro semestre de 2021, a taxa de produção de ouro considerado potencialmente ilícito continuou alta, alcançando 26% das 46,8 toneladas de ouro produzidas no período, calcula o pesquisador Bruno Manzolli, da UFMG.
Itaituba, sede da Gana, ocupa um lugar de destaque nesse cenário. Os pesquisadores da UFMG mostram que, junto com Jacareacanga e Novo Progresso, o município concentrou 85,7% do comércio pirata de ouro com indicação de origem em áreas que estão intocadas, com mata nativa, entre 2019 e 2020. Ou seja, a exploração ocorreu de forma ilegal em outros locais.
Um vídeo institucional da própria empresa mostra um empreendimento de grande porte, que utiliza maquinário pesado e conta com fábrica de beneficiamento do minério. A mina possui até pista de pouso, de 850 metros de extensão, construída em uma área que, segundo uma ação civil pública do MPF, foi desmatada ilegalmente. Itaituba está entre os municípios que apresentam dados mais críticos de desmatamento da Amazônia, de acordo com um levantamento do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia, o Imazon, publicado em junho deste ano.
Apesar de ser um mega empreendimento, a empresa tem apenas uma licença concedida pelo município, que não tem sequer autorização legal para autorizar a lavra de ouro. Mesmo assim, a ANM, órgão federal que regula o setor minerador, aceitou o documento e permitiu a operação da empresa em março de 2020, contrariando as normas da própria agência. “A realização de lavra sem a devida licença ambiental ou documento equivalente, ainda que nos termos da GU, será considerada lavra ilegal, inclusive para fins de caracterização do crime de usurpação”, expõe o artigo 107 da resolução nº 37/2020 da ANM.
Pelo tipo de exploração, com maquinário pesado para escavar anualmente, em tese, até 50 mil toneladas de terra à procura de ouro, com classificação de risco ambiental alto pela legislação federal, a agência deveria exigir que o licenciamento fosse feito pelo governo do Pará, como determina a lei complementar nº 140/2011 em seus artigos 8º e 12º. Durante o licenciamento, a secretaria estadual deveria pedir um estudo de impacto ambiental à empresa e depois apresentar esse documento ao Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade, ICMBio, órgão federal que regula áreas de preservação, conforme o artigo 1º da resolução 428/2010 do Conselho Nacional de Meio Ambiente, Conama. A licença só poderia ser emitida se o instituto concedesse uma autorização de licenciamento ambiental, ALA, após analisar os possíveis impactos ambientais da atividade pretendida, como prevê o artigo 1º da instrução normativa nº 10/2020.
Nada disso foi feito.
No dia 9 de setembro, cerca de 30 agentes da PF cumpriram mandados na Gana Gold. Eles foram coletar amostras de ouro para verificar se o minério tem as mesmas características geológicas de uma carga de 39 kg de ouro ilegal apreendida no aeroporto de Jundiaí, em São Paulo, no mês anterior. Na operação, batizada de Gold Rush, a PF também prendeu no local um homem em flagrante por portar uma arma com numeração raspada. Em nota, sem citar o nome da Gana Gold, a PF afirma que a GU “foi empregada para dar roupagem de legalidade em transações ilícitas com um grande volume de ouro de origem espúria”. Agentes do Ibama acompanharam os policiais federais e aplicaram multa de R$ 50,5 mil na Gana Gold e embargaram a atividade de extração de minério “até a apresentação da respectiva licença ambiental válida”. Na tarde do mesmo dia, a Semas concedeu uma LO à Gana Gold, também irregular por não ter autorização do ICMBio.
A investigação segue sob sigilo, e os responsáveis podem responder por crimes de usurpação de patrimônio da União, falsidade ideológica, grilagem de terras públicas, organização criminosa e diversos outros crimes contra a flora, segundo a PF.
Esta reportagem faz parte do projeto Pistas do Desmatamento, que investiga os impactos ambientais relacionados a pistas de pouso clandestinas na Amazônia e que conta com o apoio da Rainforest Investigations Network, do Pulitzer Center. Saiba mais.
Ouro de tolo
A história de sucesso da Gana Gold começa em junho de 2016, quando uma empresa chamada J.J.G.E Comércio Atacadista de Produtos da Extração Mineral registrou um pedido de pesquisa de minério de ouro em uma área de 4.183 hectares — área equivalente a quase quatro vezes o bairro Morumbi de São Paulo — perto de Água Branca, uma comunidade garimpeira de Itaituba formada no final da década de 1970. O local já tinha sido alvo de estudos de mineração entre 2006 e 2013 por outra mineradora, Brazauro Recursos Minerais, que concluiu em laudo pela inviabilidade financeira da sua exploração e abandonou a área definitivamente em 2015.
O laudo da Brazauro afirma também que a empresa denunciou a presença de garimpeiros ilegais no local em 2012. Imagens de satélite indicam que em 2016 havia atividade garimpeira ilegal na mina. Neste período ela já estava sob a tutela da J.J.G.E., mas não é possível afirmar quem são os responsáveis pela extração.
No começo de 2017, a J.J.G.E. conseguiu um alvará da ANM para fazer uma nova pesquisa. O resultado indicou que a mina seria economicamente viável para exploração. Após a pesquisa, o passo seguinte seria buscar permissão para retirar o minério – o que a ANM classifica como “requerimento de concessão de lavra”. No entanto, a mineradora preferiu um caminho mais fácil para começar a operar e solicitou uma guia de utilização, a GU, com lavra experimental, um tipo de autorização de extração simplificada, dado ainda durante a fase de pesquisa.
Mesmo com uma burocracia menor, a GU exige que o solicitante apresente licença ambiental. Isso significa que, para poder explorar o minério, antes a empresa deve buscar os órgãos ambientais e apresentar uma análise do impacto ambiental e como isso vai ser compensado. Não foi exatamente o que aconteceu com a J.J.G.E.
Em abril de 2018, a empresa preferiu passar a mina adiante para a M.M. Gold Mineração, do empresário Marcio Macedo Sobrinho, atual autor do requerimento de mineração.
O processo de licenciamento deveria ser feito pelo governo do Pará, na Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade, a Semas. De acordo com a íntegra do processo minerário que tramita na agência, a empresa até iniciou o procedimento correto para obter o licenciamento e chegou a solicitar uma licença à secretaria estadual em dezembro de 2018, mas mudou de estratégia após, segundo a empresa, “tomar conhecimento” de que o pedido poderia ser feito no órgão ambiental municipal – ainda que, na realidade, a secretaria municipal não tenha competência para isso.
Com base nessa interpretação que vai contra as legislações federal e estadual, a empresa conseguiu uma licença de operação na prefeitura de Itaituba em apenas nove dias, como mostra um documento encaminhado para a AMN em 16 de setembro de 2019. Segundo dois analistas ambientais consultados pela reportagem, esse tipo de procedimento envolve a análise de documentos de impacto ambiental e costuma demorar de 30 a 60 dias.
A rapidez da licença de operação, ou LO, obtida na prefeitura de Itaituba fica ainda mais evidente após a entrada de um novo personagem na história da Gana Gold: Guilherme Aggens. Engenheiro florestal e sócio da Geoconsult, empresa de consultoria em mineração que fez alguns estudos técnicos para a Gana Gold, Aggens é figura carimbada em viagens com políticos a Brasília para fazer lobby para o setor. A mineradora deu a ele uma procuração no dia 24 de setembro de 2019 — oito dias após ter feito a solicitação da LO na prefeitura —, o tornando responsável por tocar os procedimentos administrativos sobre a mina nas secretarias de meio ambiente do Pará e de Itaituba e também na ANM. No dia seguinte, o secretário de Meio Ambiente e Mineração do município, Bruno Rolim da Silva, assinou a tão desejada licença.
Por lei, licenciamento da Gana Gold só poderia ser feito após a concordância do ICMBio.
Isso poderia ser apenas uma coincidência de datas se, uma semana antes, Aggens não tivesse postado em uma rede social fotos de uma viagem realizada com Rolim para fazer lobby para o setor de mineração em Brasília. Os registros incluem reuniões com políticos que apoiam o garimpo na Amazônia, especialmente em terras indígenas, como o deputado federal Joaquim Passarinho, do PSD do Pará, e o vereador por Itaituba Wescley Tomaz, do MDB. Na viagem, eles ainda encontraram um espaço na agenda do então ministro da Casa Civil, deputado Onyx Lorenzoni, aliado de primeira hora do presidente Jair Bolsonaro que atualmente ocupa o cargo de ministro do Trabalho e Previdência.
O deputado Joaquim Passarinho e o vereador Wescley Tomaz também são figuras fáceis em visitas a gabinetes de ministros na capital federal para fazer lobby, especialmente pelo afrouxamento de regras para garimpos na Amazônia. Em maio deste ano, Tomaz e Aggens se reuniram com o então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que apoia abertamente o garimpo em terras indígenas e está sendo investigado pela Polícia Federal por envolvimento com extração ilegal de madeira. E, no final de agosto, Tomaz e Aggens estiveram juntos novamente em Brasília, dessa vez para participar de audiência da Comissão de Minas e Energia da Câmara, presidida pelo deputado Passarinho, para discutir a legalização de garimpos ilegais no Tapajós.
A proximidade de Aggens e Rolim não parece ter começado com a mina da Gana Gold. Os dois também aparecem ao lado do recém-eleito Jair Bolsonaro em uma foto publicada em novembro de 2018 pelo advogado Fernando Brandão, residente de Itaituba. Um ano depois, o advogado participaria com garimpeiros de uma reunião secreta com os ministros Ricardo Salles e Onyx Lorenzoni para pressionar o governo a punir fiscais do Ibama que queimaram maquinários usados em crimes ambientais.
GARIMPO X LAVRA
Há duas formas de extrair ouro:
1. Através da garimpagem, quando o minerador, ou garimpeiro, retira o minério depositado superficialmente, como em leitos de rios. Para este tipo de exploração, o responsável precisa de uma Permissão de Lavra Garimpeira, chamada de PLG, que exige menos contrapartidas ambientais.
Questionei por e-mail a prefeitura de Itaituba, em 14 de julho, sobre os erros na licença dada à Gana Gold e sobre qual legislação ambiental permite que o município licencie o tipo de atividade da mineradora. Não tive retorno. Por WhatsApp, também perguntei diretamente ao secretário Bruno Rolim da Silva se a proximidade dele com o engenheiro Guilherme Aggens influenciou a concessão emitida em apenas nove dias. Fiquei mais uma vez sem resposta, mas não sem uma reação da empresa.
No mesmo dia 14, às 17h48, cerca de cinco horas depois de eu ter enviado as perguntas, a Gana Gold protocolou na ANM um pedido de cessão parcial, transferindo para a empresa 4.001 hectares do requerimento da M. M. Gold, que tem originalmente 4.183 hectares. É justamente nos 182 hectares que sobraram para a M. M. Gold, uma área um pouco maior do que o Parque do Ibirapuera, em São Paulo, onde estão instaladas a mina de ouro, a estrutura de beneficiamento e a pista de pouso. Aggens também não me explicou a razão dessa mudança, feita coincidentemente no mesmo dia que enviei as perguntas à empresa.
A autorização da mina está marcada também pela ausência de outro carimbo importante: o do ICMBio. Como a operação fica dentro de uma unidade de conservação federal — a Área de Proteção Ambiental Tapajós, vizinha da Terra Indígena Munduruku —, o licenciamento só poderia ser feito após a concordância do instituto (essa exigência pode deixar de existir caso o projeto de lei que altera o licenciamento ambiental, aprovado na Câmara em maio, passe pelo Senado e seja sancionado).
Entre julho e agosto, enviei três e-mails para a assessoria de imprensa do ICMBio, mas não obtive retorno. Só consegui uma resposta do órgão por Lei de Acesso à Informação, a LAI, no dia 1º de setembro:
“Em nenhum momento foi enviada ao ICMBio qualquer comunicação de órgão ambiental, seja estadual ou municipal, sobre licenciamento ambiental do processo minerário 850.397/2016 [registro da mina explorada pela Gana Gold], visto se tratar de pesquisa mineral com guia de utilização, quando é obrigatória licença ambiental e autorização do ICMBio”, informa o órgão.
A novela burocrática terminou em março de 2020, quando a ANM deu de ombros para a legislação ambiental brasileira e aceitou o documento irregular apresentado pela Gana Gold, concedendo à empresa a permissão para explorar 36,6 hectares, correspondentes à área onde ocorre a extração, dentro dos 4.183 hectares do requerimento inicial.
“Você não pode escolher o órgão licenciador do seu empreendimento, há uma legislação ambiental que determina isso. Independentemente de quem errou neste caso, há diversos elementos de ilegalidade nesse processo de licenciamento que precisam ser investigados, principalmente porque há a presença de comunidades indígenas isolados na região da APA Tapajós”, afirma Carolina Santana, advogada do Observatório dos Direitos Humanos de Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato.
Acordo com o Pará
Até setembro, governo paraense não havia analisado diretamente o projeto de mineração da Gana Gold por causa da desistência da empresa em fazer o licenciamento no órgão estadual, mas avalizou a operação de outra forma. Em fevereiro deste ano, o governador paraense Helder Barbalho, do MDB, assinou um acordo com seis empresas, entre elas a Gana Gold, para promover a indústria aurífera no Pará, com objetivo de refinar o minério no próprio estado.
Os erros graves no licenciamento da Gana Gold não parecem preocupar muito o governo de Barbalho. Enviei e-mail para o seu gabinete e para a Semas, no dia 14 de julho, pedindo explicações sobre o acordo feito com a empresa e perguntando se mesmo assim o governo continuaria a parceria, mas a única resposta que recebi da assessoria de imprensa foi que a Semas não concedeu licenças para a Gana Gold. No dia 16, reforcei as perguntas para a assessoria do governador no WhatsApp, mas não tive retorno.
A mina da Gana Gold fica na Província Aurífera do Tapajós, no sudoeste do Pará, onde conflitos por causa do precioso metal ameaçam povos indígenas munduruku e unidades de conservação.
“Há três fatores que colaboram para esse aumento de garimpeiros na região do Tapajós. A oferta de mão-de-obra por causa dos desempregados da situação econômica do país, agravada ainda mais pela pandemia; o aumento do preço do ouro; e, claro, esses movimentos do governo Bolsonaro em enfraquecer a fiscalização ambiental, dando uma segurança maior a quem investe em mineração ilegal”, explica o professor Luiz Jardim Wanderley, professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal Fluminense, a UFF. Ele coordenou com a pesquisadora Luísa Molina o relatório “O cerco do ouro”, do Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração. Publicado em abril deste ano, o documento analisa o aumento da mineração ilegal em terras munduruku.
O ouro tem seu preço definido em dólar. Em períodos de crise econômica, ele acaba sendo um porto seguro para investidores, o que faz o seu valor aumentar. Esse foi um dos fatores que fizeram o preço do ouro dobrar entre 2019 e 2020, chegando a R$ 379 a grama entre agosto e novembro do ano passado. Em 2021, com o avanço da vacinação, o preço recuou e, agora, é vendido a aproximadamente R$ 300, valor 50% acima do período pré-pandemia.
Ouro multiplicado
Com a licença em mãos em março de 2020, a Gana Gold começou a extrair ouro e gerou R$ 235 milhões em operação no primeiro ano, valor que a deixou na invejável sexta colocação entre os maiores exploradores do minério no estado, de acordo com dados da ANM.
Mas nem tudo foi motivo de festa para a empresa. Em junho, a mineradora teria sido assaltada por homens armados, que teriam levado 20 kg de ouro. Ninguém foi preso.
Este ano, a Gana Gold aumentou a sua operação e já alcançou R$ 883 milhões em oito meses. Porém, de acordo com o relatório de previsão de produção que a própria empresa entregou à ANM em outubro de 2019, a extração no local deveria gerar até 96,53 kg por ano, o que resultaria em um rendimento total estimado em cerca de R$ 30 milhões anuais, conforme as informações prestadas pela empresa à agência.
Para faturar R$ 883 milhões em 2021, a Gana Gold precisaria retirar 3,14 toneladas de ouro da mina amazônica – ou seja, 32 vezes o estimado pela própria empresa à ANM. Para fazer essa conta, utilizei a mesma metodologia da pesquisa da UFMG sobre produção ilegal de ouro citada pelo MPF, que leva em consideração as informações de peso e valores médios do preço do ouro no mês de arrecadação informados pela empresa no portal de Dados Abertos da ANM.
Para o pesquisador Luiz Jardim Wanderley, essa diferença de valores indica que a Gana Gold está extraindo muito mais ouro do que o informado pela empresa à ANM.
“Ao conseguir uma licença mais rápida, sem passar pela tramitação de uma requisição de concessão de lavra, a mineradora não produz uma análise profunda dos danos ambientais e nem promove o devido debate público sobre esses impactos, o que é obrigatório”, me disse Wanderley. “De qualquer forma, a guia de utilização exige que a empresa apresente as licenças ambientais cabíveis. Como se trata, a princípio, de volumes menores, os órgãos ambientais pedem procedimentos simplificados. Contudo, a Gana Gold vem operando com valores operacionais iguais a uma mina industrial”, acrescentou.
O alto volume de minério extraído pela Gana Gold em Itaituba coloca dúvidas também sobre o tipo de permissão dada pela ANM, de lavra experimental, destaca o professor e geólogo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a UFRJ, Edson Farias Mello.
“Não é comum você ter o desenvolvimento de uma mina de ouro por meio de GU, a não ser nas etapas iniciais para caracterização do minério. O conceito de lavra experimental amparada pela Guia de Utilização é compatível para volumes pequenos, o que não parece ser o caso [da Gana Gold]”, me disse Mello. “Enquanto a concessão pode demorar anos para ser emitida, a GU sai em poucos meses”, acrescentou.
‘Temos a obrigação de estimular e fomentar o setor mineral’.
Esses números exorbitantes, reconhecidos inclusive na nota da PF, fizeram a mineradora novata na região do Tapajós subir do sexto lugar no ranking da exploração de ouro no estado para a atual liderança, deixando para trás empresas com décadas no setor. Nada mal para quem não possui uma licença ambiental. Pelo menos não no órgão responsável.
O volume de exploração informado pela Gana Gold não parece ser novidade para a ANM. Os dados sobre a operação estão disponíveis no site da agência. Além disso, em despachos do processo minerário da empresa, a própria agência já admitiu no início do ano que é “favorável” ao desejo da empresa de expandir a mina e ressaltou que “o projeto é importante dentro da carteira do setor mineral”.
Entrei em contato com a assessoria da ANM para pedir explicações. O ouvidor da ANM, Paulo Santana, respondeu que não há “nada de anormal ou irregular” no caso da Gana Gold. A resposta diz que o “teor da mina” (medida geológica que leva em consideração a quantidade de gramas de minério por tonelada de material bruto extraído do solo) poderia chegar a “20 g/t”. A resposta contraria o estudo geológico apresentado pela Gana Gold, que apontava um teor médio dez vezes menor: apenas 1,97 g/t. “Temos a obrigação de estimular e fomentar o setor mineral”, escreveu Santana em resposta aos questionamentos sobre os pareceres da ANM favoráveis à expansão da Gana Gold.
A avaliação do ouvidor também ignora o desempenho prático da Gana informado à ANM no último ano. Segundo os dados declarados pela própria empresa, a mina em Itaituba tem registrado teor médio de 62,70 g/t – partindo do pressuposto que a empresa está operando na legalidade.
No ano passado, o site especializado em mineração Kitco apontou uma mina na Austrália como a de maior teor médio de ouro por tonelada do mundo, com 42,4 g/t. Ou seja, atrás da Gana Gold.
Cidade Pepita
Itaituba tem no comércio de ouro, legal e ilegal, um dos motores da sua economia. Valmir Climaco, do MDB, prefeito do município, um ex-garimpeiro e entusiasta da atividade na pandemia, responde a diversas denúncias e foi condenado em 2019 por desmatar ilegalmente 746 hectares de floresta nativa em área de preservação. No mesmo ano, a PF encontrou armas e quase 600 kg de cocaína em uma fazenda de Climaco em Itaituba. Em depoimento, ele afirmou que o imóvel foi invadido e que não teria qualquer relação com os criminosos presos na operação.
Com esse histórico, não demorou para que a prefeitura da Cidade Pepita, como Itaituba é conhecida, concedesse a LO para a Gana Gold. Com erros crassos de informação, o documento chega a citar leis ambientais que contrariam a própria licença.
O primeiro erro do documento diz respeito ao tipo de atividade. No título da licença, a prefeitura informa que a Gana Gold buscava uma Pesquisa Mineral com Lavra Experimental, mas na página seguinte há a citação de exigência de Permissão de Lavra Garimpeira (PLG), uma atividade mais rudimentar, diferente da concedida e com licença simplificada, e da instrução normativa nº 06/2013, que trata de garimpo.
“Pelos equipamentos utilizados pela empresa e processo de beneficiamento, que incluem britagem de material rochoso, está claro que a empresa está trabalhando com minério primário. Portanto, isso não pode ser classificado como garimpo, uma atividade regulada pela lei 7.805/1989, que define que a Permissão de Lavra Garimpeira, a PLG, só pode ser concedida em locais onde o ouro ocorre em depósitos secundários”, me disse o geólogo Edson Farias Mello.
O erro poderia ser apenas um deslize do órgão municipal se não fosse por um detalhe nem tão pequeno: a prefeitura não tem autonomia para conceder lavra experimental, apenas lavra garimpeira, segundo a legislação ambiental do estado.
A própria licença de operação concedida pela prefeitura à Gana Gold cita a resolução nº 116 do Conselho Estadual de Meio Ambiente, o Coema, que detalha que municípios só podem fazer licenciamento de PLG ou de “pesquisa mineral sem lavra experimental”. À época do licenciamento, a resolução do Coema válida era a nº 120/2015, que apresentava as mesmas regras para mineração da normativa publicada no ano anterior. A resolução, que tem poder de lei, no seu artigo 1º, expõe outro erro: a falta de consulta ao órgão ambiental federal responsável pela gestão de unidades de conservação da União.
“Para o licenciamento de atividades ou empreendimentos de impacto ambiental local em Unidades de Conservação Estadual ou Federal, deverão ser consultados os órgãos competentes da União e do Estado”, determina a resolução estadual. Em fevereiro, o conselho estadual publicou uma nova normativa sobre os tipos de licenciamento que as prefeituras podem fazer, que mantém as exigências.
Ao questionar a ANM sobre o licenciamento irregular da Gana Gold, citei a legislação ambiental que proíbe a prefeitura de Itaituba de permitir lavra experimental de ouro. Mesmo assim, sem apresentar qualquer documento ou normativa que ampare sua resposta, o ouvidor Paulo Santana escreveu que “é do conhecimento deste corpo técnico que o município de Itaituba/PA possui habilitação para gestão ambiental municipal, concedida pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Semas)”. O ouvidor ainda reforçou que “não compete ao corpo técnico da ANM validar estes documentos”.
A habilitação não existe, segundo a Semas. Questionei a secretaria estadual no dia 8 de agosto, após o e-mail do ouvidor da ANM, e a resposta que me enviaram foi que, além da legislação federal e das normativas do Coema, “não há instrumento de delegação de competência em vigor entre Estado e município de Itaituba para a tipologia pesquisa mineral com lavra experimental”.
Pista pirata
Em um vídeo divulgado pela empresa, um helicóptero e um avião aparecem pousando no terreno da mina – em mais um sinal de que se trata de um empreendimento de grande porte.
O heliponto e a pista não estão nos registros da Agência Nacional de Aviação, a Anac. São clandestinos. Em julho, a assessoria de imprensa da Anac informou que o caso estava sendo verificado pelo “setor de inteligência” da agência e indicou possíveis punições para os responsáveis.
Mas a Gana Gold não precisa se preocupar com isso por enquanto. No começo de junho, a agência publicou uma norma temporária que permite pousos e decolagens em locais não cadastrados na Amazônia Legal. A justificativa dada pelo governo foi “facilitar o transporte de medicamentos, insumos e pacientes para comunidades dessas regiões” durante a pandemia de covid-19.
A área para construção da pista de pouso, de 106 hectares, foi desmatada ilegalmente em 2018, afirma uma ação apresentada pelo Ministério Público Federal no Pará, que cita como responsável o dono do registro da terra no Cadastro Ambiental Rural, o CAR, Nill Vitor da Silva. O CAR é auto declaratório, e o de Nill aparece com situação ainda “pendente”.
Silva não aparece em relações de sócios da Gana Gold. Talvez por isso, a denúncia apresentada pelo MPF, feita pelo programa Amazônia Protege, que utiliza dados do Inpe e do Ibama para responsabilizar desmatadores, não mencione que o local desmatado serve de pista de pouso clandestina da mineradora.
Terreno operado pela Gana Gold também pode estar irregular.
Documentos públicos ainda indicam que o terreno operado pela Gana Gold também pode estar irregular. Pela plataforma Mapbiomas, criada por ONGs ambientais e universidades, é possível ver que, além de Nill Vitor da Silva, a região da mina compreende uma área de 405 hectares registrada no CAR, com situação “pendente”, em nome de Sebastião Luiz da Silva. Ele também não possui ligação aparente com as empresas do grupo Gana Gold.
O nome de Márcio Macedo Sobrinho também aparece com um registro do CAR como proprietário de 402 hectares na região, exatamente no local onde está a mina de exploração, ao lado das terras que seriam de Nill e Sebastião. O cadastro de Sobrinho, feito em julho de 2019, aparece como suspenso no sistema do CAR no Pará.
Tentei contato com os empresários Márcio Macedo Sobrinho e Domingos Dadalto Zoboli, sócios da Gana Gold, mas eles não atenderam minhas ligações aos números informados no processo minerário da ANM. O e-mail da empresa retorna como inválido. Mandei os mesmos questionamentos para o e-mail do engenheiro Guilherme Aggens, que chegou a avisar por WhatsApp que iria ver o conteúdo, mas não enviou resposta sobre por que a empresa está explorando 32 vezes o limite estabelecido pela ANM, sobre a posse da área estar registrada no CAR em nome de três pessoas diferentes, ou mesmo sobre a proximidade de Aggens com o secretário de Meio Ambiente de Itaituba, Bruno Rolim da Silva.
Mesmo após reiterados alertas que fiz nos últimos três meses à ANM, e também ao governo do Pará e à prefeitura de Itaituba, sobre as irregularidades da exploração de ouro da Gana Gold, nada foi feito para interromper a atividade.
Na resposta via LAI, o ICMBio me informou que o órgão só tomou conhecimento da atuação da Gana Gold “por meio de um vídeo institucional que circulou em grupos de whatsapp na região”, e que abriu uma investigação sobre o caso na mesma época, em abril deste ano. No entanto, mesmo com a irregularidade, os sócios da Gana Gold não precisam se preocupar com o instituto. A multa administrativa em casos como esse varia de R$ 1.500 a R$ 3.000 por hectare, me explicou o ICMBio. Nada que vá fazer falta a quem já ganhou mais de R$ 1,1 bilhão explorando ouro sem o licenciamento ambiental correto.
Correção: 27 de setembro de 2021, 19h20
Uma versão anterior deste texto afirmava que a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará não havia concedido uma licença de operação para a Gana Gold até a data da publicação da reportagem. Na verdade, a Semas emitiu uma LO no dia 9 de setembro de 2021, poucas horas depois da Polícia Federal deflagar a operação Gold Rush e cumprir mandado de busca e apreensão na empresa. O texto também afirmava que a operação havia ocorrido no dia 10. As duas informações foram corrigidas.
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