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Em março deste ano, ouvi de uma pessoa muito próxima aquilo que eu havia temido nos 12 meses anteriores: ela estava com sintomas de covid-19. Com mais de 60 anos, ainda longe de tomar a vacina, ela se infectou bem no começo da pior onda da doença que tivemos no Brasil. Os hospitais já estavam superlotados, e o país registrava cerca de 1.800 mortes diárias pela doença.
Ela tentou, no entanto, me acalmar: “o plano de saúde já me mandou um kit de remédios e vitaminas”.
O teste havia sido marcado só para o dia seguinte, mas o “kit covid” já estava a caminho, enviado pela Prevent Senior. Era um pacote com comprimidos de hidroxicloroquina e de azitromicina, vitaminas D e C e zinco. Tentei convencê-la de que os remédios não tinham eficácia e que o kit era contraindicado por médicos sérios. Foi em vão. “A mãe do dono da Prevent tomou e não morreu”, “é por isso que eles estão com índices baixos de ocupação nas UTIs” e “mal não vai fazer” foram alguns dos argumentos que ouvi. A Prevent mandou, ainda, um termo de responsabilidade para que a paciente assinasse.
Os comprimidos começaram a ser consumidos no mesmo dia, antes mesmo do teste. O RT-PCR foi positivo. No fim, felizmente, a doença foi leve. A paciente creditou a recuperação ao “tratamento precoce”, ainda que os remédios nada tivessem a ver com isso – como inúmeros estudos já mostraram.
Agora, está mais clara a motivação da Prevent Senior no empenho para mandar o kit covid aos clientes – ainda que não tivessem sido contaminados pela doença. Os médicos do plano de saúde tinham metas para prescrever a medicação. É isso o que mostrou um dossiê elaborado por médicos da empresa, que revelou protocolos escabrosos, como impor remédios ineficazes aos pacientes nos serviços médicos do plano, submetê-los a tratamentos experimentais sem autorização de autoridades de saúde e familiares e ocultar mortes em um estudo feito irregularmente. “A regra era ‘espirrou no PS [Pronto Socorro], entrega o kit'”, disse um deles à jornalista Chloé Pinheiro, da Veja.
Mas a conduta da Prevent Senior não foi apenas um experimento feito por médicos negacionistas, que lembrou os ensaios nazistas conduzidos por Josef Mengele. Ela tinha outro propósito: render dinheiro. Muito dinheiro. E teve como cúmplices expoentes do mercado financeiro, que incentivaram e lucraram muito com a distribuição desenfreada de kits covid para os beneficiários do plano.
O balanço financeiro da empresa mostra que 2020, apesar de tudo, foi um excelente ano para os negócios da Prevent Senior. A empresa o terminou com 505 mil clientes na carteira, um aumento de 9% em relação a 2019. Com isso, conseguiu faturar R$ 4,3 bilhões, 18% a mais do que no ano anterior – o que lhe garantiu lucro líquido de R$ 495 milhões, valor 15% superior a 2019. Uma verdadeira façanha para quem, no começo da pandemia, quase teve hospitais interditados por causa da enorme quantidade de mortes.
A empresa, focada em idosos, viu um aumento surpreendente no número de jovens em sua carteira de clientes no ano passado. A explicação, segundo Pedro Benedito Batista Junior, diretor médico da Prevent Senior, era o boca a boca. “Quem vende nosso plano é o beneficiário que passa pelo atendimento e faz propaganda. E aí o filho do paciente vê o tratamento e percebe que o pai recebe melhor atendimento do que ele, que é mais novo e usa menos o seu plano de saúde. Muitas famílias passaram a nos procurar”, disse ele à Exame.
O protocolo de tratamento precoce teve muita propaganda grátis. A começar pelo próprio Jair Bolsonaro, que divulgou os resultados preliminares do estudo irregular que supostamente mostrava a eficácia da hidroxicloroquina. Assim, ganhou respaldo pseudocientífico para vender ao país a esperança de um tratamento que não existia.
Eduardo Bolsonaro também compartilhou, entusiasmado, a live organizada pela XP Investimentos com os maiores expoentes do negacionismo médico. Nise Yamaguchi e Paolo Zanotto dividiram os microfones com Pedro Batista Jr. e Fernando Parillo, diretor médico e presidente da Prevent Senior. “Especialistas brasileiros compartilham as evoluções do novo protocolo Prevent Senior, que já tratou 250 pacientes” era a descrição do evento. A live foi tirada do ar pela XP.
Em outra live, realizada em abril de 2020 pelo Itaú – um dos donos da XP –, Parrillo deixou clara sua postura em relação à pandemia. “Precisamos de um plano de ação mais concreto, porque ninguém vai aguentar ficar em isolamento até o final do ano”, criticou. A empresa garantia que, com uso antecipado da hidroxicloroquina, o número de mortes por covid-19 havia caído 60%.
Em agosto, a revista Veja noticiou que, enquanto os planos de saúde perdiam associados durante a pandemia, a Prevent Senior ia no sentido contrário: havia aumentado em 15% o número de clientes. “A Prevent, depois de ser cruelmente vilanizada, exibe sinais de vitalidade, acima até da média das companhias do seu setor, duramente atingidas pela crise”, dizia a reportagem.
“Na esfera judicial, as investigações contra a empresa não deram em nada”, garantiu a Veja. “Fomos vítimas de interesses políticos, era mais fácil bater na nossa empresa do que ter um plano de ação”, disse à revista o CEO, Fernando Parrillo. O kit covid, chamado de “polêmico”, foi destaque no texto. “Entre os dias zero e três da contaminação, a cloroquina evita a internação em 95% dos casos”, assegurou Pedro Benedito Batista Jr., sem ser questionado.
Agora que ficou cristalino que cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina e azitromicina não funcionam – e, inclusive, podem aumentar a mortalidade por covid-19 –, a Prevent Senior entrou na mira da CPI. Os senadores chegaram a convocar o diretor médico da empresa, Pedro Batista Júnior, para depor em 16 de setembro. Ele não apareceu.
Em nota à imprensa, a Prevent Senior afirmou que irá acionar o Ministério Público para apurar o que chamou de “denúncias infundadas e anônimas levadas à CPI por um suposto grupo de médicos” e que tomará as medidas judiciais cabíveis. Também postou um tuíte em que desafiou os “supostos médicos que fizeram denúncias anônimas à CPI” a apresentarem documentos e provas. A mensagem, no entanto, foi apagada pouco depois.
No balanço financeiro do ano passado, entre números positivos, não há uma única menção ao tratamento precoce. Sobre a pandemia, ele menciona apenas ações genéricas como “planejamento de ações”, “hospitais preparados”, “remanejamento de consultas”, “testagem em massa” e “home office”. Depois de capitalizar o ano inteiro sobre a conduta, o kit covid sumiu magicamente do relatório enviado aos investidores pela Prevent Senior.
O estrago já estava feito, mas foi bom para os negócios.
Correção – 20 de setembro de 2021, 9h32
O lucro líquido da empresa em 2020 foi R$ 495 milhões. O valor de R$ 4,3 bilhões corresponde ao faturamento líquido. O texto foi corrigido.
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