Ana Brito, 33 anos, e Naji Nahas, 73, são pessoas muito parecidas: gostam de conforto, amam seus filhos e filhas, trabalham pensando no amanhã e vivem sob o mesmo teto de um país chamado Brasil.
Mas é verdade que há uma ou outra pequena diferença entre ambos.
Há uma semana, por exemplo, Nahas via circular nacionalmente o vídeo de um jantar oferecido a um grupo de chegados muito queridos na sua casa de quase 5 mil metros quadrados em São Paulo. Foi um encontro bem-sucedido: empresários, donos de TV, jornalistas, ex-presidentes, ex-presos e ex-processados estavam à mesa daquela reunião na qual, dizem, foi discutido o futuro do Brasil.
Naquele mesmo dia, Ana passou oito horas limpando a residência de uma psicóloga e de um professor na zona sul recifense. Depois de faxinar banheiros, cozinha, quartos, fazer almoço e passar roupa, ela pegou um ônibus e o metrô sempre muito cheio até sua casa na cidade vizinha, Jaboatão dos Guararapes. Pensava no encontro que aconteceria sábado na igreja evangélica da qual faz parte. Tempo para decidir os detalhes ela teria: sai do trabalho às 17h30, mas só às 19h30 chega à sua porta.
Para o empresário libanês, que voltara à mídia através do vídeo vazado, aquela terça era um dia especial.
Para a faxineira Ana, que torcia para conseguir pagar por unhas de gel e chegar mais arrumada à festa, aquela terça era um dia.
Naji Nahas chorou durante o casamento da filha Nathalie com Toufik Roufca, em 1996, quando ela, também emocionada, disse que ele era “o melhor pai do mundo”. Sula, a mãe da noiva, também chorou. De fato, foi grande a prova de generosidade paterna: a festa na casa da família, na Rua Guadelupe, Jardim América, teve caviar iraniano servido à vontade para os 500 convidados. Para beber, um raro champanhe rosé e o vinho francês Château Ducru-Beaucaillou (safra 82), cujo preço de cada garrafa gira hoje em torno de R$ 4 mil.
Obviamente, não era o momento de fazer contas: para os filhos, não se mede amor.
Ana e o marido Celso, 33, que trabalha com mototáxi, entendem perfeitamente o sentimento que inundou o peito de Nahas: igualmente, não medem esforços para Mateus, 10, Natafelly, 11, e Guilherme, 16. A gestão dos alimentos em casa é um dos maiores exemplos desse amor. Quando recebem as cestas básicas oferecidas pelas escolas onde as crianças e o jovem estudam, é uma alegria: em cada uma tem fubá, arroz, feijão, farinha, bolacha, macarrão e leite, além de 500g de charque ou cinco latas de sardinha. Quando o dia de trabalho de Celso rende uns R$ 50, o que é raro, melhor ainda. Mas nem sempre as cestas são distribuídas ou o mototáxi rende: o trabalho é muito disputado no estado que teve a maior taxa de desemprego do Brasil registrada no fim de agosto. Assim, às vezes Ana e Celso só contam praticamente com os rendimentos de R$ 800 mensais das faxinas e os quase R$ 300 do Bolsa Família. Com a alta no preço da comida, mãe e pai às vezes deixam de se alimentar para priorizar as crianças.
Obviamente, é um momento de fazer contas: para os filhos, não se mede amor.
Nahas começou a trabalhar cedo: aos 22 anos, em 1969, chegou ao Brasil. Trazia à época uma fortuna de, estima-se nas lendas na internet, 2 milhões de dólares herdados do pai, um industrial egípcio do setor têxtil que empregava 6 mil pessoas até seu negócio ser nacionalizado pelo governo de Gamal Abdel Nasser em 1962. Com sua fortuna e o amor dos brasileiros por toda figura que, se rica, juiz ou deputado, logo tem boa índole e merece crédito, em pouco tempo quadruplicou seus milhões.
Ana começou a trabalhar bem antes, já aos 13 anos, na casa de outras pessoas. Como o libanês, ela também é uma herdeira: a mãe era igualmente empregada doméstica. O pai trabalhava em uma fábrica de bolinhas de gude, em Guarulhos, a alguns quilômetros do chateau de Nahas no Jardim Europa. A menina viveu com ele dos quatro aos nove anos. Voltou a Pernambuco e nunca mais teve notícia do pai. Com o trabalho pesado já na infância, terminou abandonando a escola quando cursava o oitavo ano do ensino fundamental.
Enquanto Ana, na segunda-feira, dia 13, adiantava o almoço da família para poder ir fazer a faxina na terça, Nahas recebia os comensais e finalmente sentava àquela mesa para discutir e rir o Brasil. Aliás, riu muito ao lado de colegas como Paulo e André Marinho, pai e filho, o primeiro empresário e articulador da campanha de Bolsonaro à presidência, o segundo um integrante do programa Pânico cuja imitação do presidente da República naquele encontro causou diferentes frenesis país afora. Riu muito ao lado do ex-editorialista do Estadão, Antônio Carlos Pereira, que provavelmente teria um colapso cultural se encontrasse Ana: acostumado a entender basicamente o Nordeste como um “grotão” habitado por gente burra que não trabalha e “não produz”, precisaria confrontar seu racismo de classe ao lidar com a inteligência, sagacidade e capacidade da faxineira.
Nahas ainda gargalhou bastante ao lado de José Yunes, advogado e empresário que foi preso em 2018 pela PF acusado de envolvimento com propinas no setor portuário logo após o amigo Michel Temer, também no jantar, assinar decreto ampliando contratos de concessão no Porto de Santos. Temer, como se sabe, chegou a ser preso em 2019 acusado dos crimes de cartel, corrupção ativa e passiva, lavagem de capitais e fraudes à licitação. Mas picuinhas como estas pouco tirariam o brilho de uma noite como a de segunda na casa de Nahas, ele próprio com passagem na prisão em 2008 e condenado a 24 anos de reclusão nos anos 90 por crimes contra a economia popular e o sistema financeiro – o empresário foi posteriormente absolvido. Todos estão livres – e o colega Antônio Carlos Pereira, aquele do Estadão, está satisfeito com a ficha moral dos amigos. Para ele, ao contrário da ficha de Lula, as de todos lhe parecem muito limpas.
É só a partir daqui que as sutis diferenças entre Ana e Naji começam a aparecer ainda mais.
Na última terça, por exemplo, ela não conseguiu sorrir como os homens daquele vídeo. Chega em casa geralmente tão cansada que praticamente joga a bolsa para o lado e vai para o quarto dormir. Os filhos não vão para a escola desde o início de 2020 por conta da pandemia, e é preciso buscar semanalmente as tarefas e tentar acompanhar o aprendizado formal. O mesmo aprendizado que lhe foi negado, pois tinha que trabalhar praticamente na idade que seus filhos menores têm agora.
Também há os contratempos que gritam ainda mais quando o dinheiro mal dá para a alimentação: há mais de um mês, a privada da pequena casa semi-rebocada quebrou. Desde então, toda família precisa usar o banheiro da residência da frente, onde vive a mãe de Celso, uma senhora aposentada. “Ontem ele rodou de moto o dia todo. Voltou para casa com R$ 9. Hoje de manhã, saiu com R$ 70 para comprar duas galinhas para os almoços da semana e as verduras. Voltou sem as verduras.”
Quando o gás acaba – um botijão, R$ 100, dura menos de um mês –, geralmente fazem fiado e esperam o próximo dia de trabalho do casal chegar para conseguir pagar. Ana e o marido não gostam de fazer dívidas, mas não há outra saída enquanto a inflação engolir o já pouco dinheiro pelo qual batalham todos os dias.
Neste sentido, Nahas é bastante diferente da moça bonita que colou seu nome desenhado em dourado em uma porta da casa simples.
O libanês também tem dívidas diversas, mas, como vemos nas imagens do jantar, não está preocupado com isso. Atualmente, deve cerca de R$ 5 milhões somente de IPTU do casarão de 4,8 mil metros quadrados que aluga desde 1993, o mesmo casarão em SP no qual serviu os vinhos de R$ 4 mil para os 500 convidados da festa de casamento da filha.
Dever IPTU nunca foi problema para o especulador financeiro acusado de fraudes diversas: sua falida empresa Selecta tinha, em 2012, R$ 17 milhões do imposto pendurados na prefeitura de São José dos Campos. Desde 2004, a área da empresa era ocupada por milhares de famílias da Ocupação Pinheirinho. Primeiro, Nahas conseguiu na Justiça reduzir em R$ 1,6 milhão a dívida; depois, conseguiu ordem de reintegração de posse e desalojou 1.600 famílias de suas casas. O estudo Notas sobre o processo de ocupação, desocupação e reassentamento da comunidade Pinheirinho na cidade de São José dos Campos-SP conta melhor a história.
Hoje, terça-feira, uma semana após o vídeo-hit do jantar descontraído de Nahas, Ana vai novamente fazer faxina e passar duas horas para voltar para casa. Vai jogar a bolsa em algum lugar e deitar no quarto escuro para descansar de um dia de trabalho que lhe custa o preço de um botijão de gás.
Ela nunca tinha ouvido falar no libanês. Ele provavelmente nunca ouviu falar em Ana. Apesar disso, são pessoas realmente muito parecidas: gostam de conforto, amam seus filhos e filhas, trabalham pensando no amanhã e vivem sob o mesmo teto de um país chamado Brasil.
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