Mesmo após cometer atrocidades com a história do Brasil em seu livro “Guia do Politicamente Incorreto da História do Brasil”, o jornalista Leandro Narloch segue prestigiado na grande imprensa. Dessa vez quem oferece o palco para o jovem liberal deturpar fatos históricos foi o jornal Folha de S. Paulo.
Em uma coluna intitulada “Luxo e riqueza das ‘sinhás pretas’ precisam inspirar o movimento negro”, Narloch defendeu a tese de que o movimento negro de hoje deve se inspirar nos negros escravizados que ascenderam socialmente. Ele, um branco liberal, acha possível que os descendentes de escravos olhem para o passado escravocrata e enxerguem um lado bom. É como se dissesse: “os negros foram escravizados, assassinados e estuprados no sistema escravocrata, mas olhem para o lado bom: meia dúzia de sinhás ascenderam socialmente dentro desse sistema.” O jovem liberal quer nos fazer acreditar na existência de uma lógica meritocrática dentro do sistema escravocrata.
No subtítulo da coluna, o autor deixa claro que o seu principal objetivo é a defesa do capitalismo: “Negras prósperas no ápice da escravidão são pedra no sapato de quem diz que o capitalismo é essencialmente racista e machista”. Para ele, o capitalismo é bom, e a população negra de hoje só não consegue ascender socialmente por culpa exclusiva dela mesma. O racismo que hoje mata pretos nos supermercados é uma herança direta da escravidão, mas Narloch cobra dos oprimidos um olhar mais generoso com o passado escravocrata. O playboy branco quer ser coach do movimento negro! Como afirmou o jornalista Rogério Galindo, que escreveu a quarta capa do “Guia Politicamente Incorreto” e hoje sente vergonha por isso, “Narloch chicoteia o escravo morto, do século 19, mas com a declarada intenção de fustigar o negro de hoje.”
Narloch usa na Folha de S. Paulo a mesma tática desonesta consagrada no “Guia do Politicamente Incorreto”: pega uma exceção, retira-a do contexto e tenta nos vender como se fosse a regra geral. De fato, houve mulheres pretas que se libertaram da escravidão, enriqueceram e tiveram seus próprios escravos. Mas eram casos raríssimos, que Narloch trata como se fosse algo comum, uma possibilidade concreta para todos os escravos. A mentira está embutida no contexto, criado para atender seus objetivos: gerar cliques, responsabilizar negros pelas chagas impostas pelos brancos e exaltar o capitalismo.
Não foi por causa do capitalismo que as ex-escravas ascenderam socialmente, mas apesar dele. A escravidão era o motor do sistema do capitalismo. O tráfico de escravos representava uma parte relevante do PIB brasileiro da época. O texto de Narloch relativiza e romantiza os horrores da escravidão para defender o sistema econômico que mantém a população negra na pobreza há séculos. Ao aplicar a lógica meritocrática à escravidão, tratando as “sinhás pretas” como exemplo, ele ajuda a alimentar um racismo histórico: os pretos seriam inferiores, incapazes, preguiçosos que não lutaram o suficiente para se livrar da opressão. Trata-se do mais puro darwinismo social, um vexame intelectual.
Narloch ainda teve a coragem de defender a ideia que as “sinhás pretas” “superaram o preconceito”. Essa constatação é de uma ignorância acintosa. É como se a superação do racismo fosse uma questão de ordem individual, e não social. Cada um que lute como as “sinhás pretas” para superar o preconceito que sofre. É evidente que elas não superaram o preconceito.Continuaram sendo pretas dentro de um sistema em que brancos enriqueciam açoitando pretos. Afirmar que ex-escravas superaram o racismo por terem enriquecido é, no mínimo, um desrespeito aos que continuam sofrendo preconceito mesmo após o fim da escravidão e mesmo após ascender socialmente.
Narloch diz ser um liberal que se opõe a Bolsonaro, mas a sua obra é consumida e replicada em peso pelo bolsonarismo. Os guias politicamente incorretos do jornalista alimentaram as mentiras e as teses negacionistas dos fascistoides que hoje atormentam a democracia. Não foi à toa que Jair Bolsonaro saiu em sua defesa quando foi demitido da CNN Brasil em virtude de um comentário escancaradamente homofóbico:
“Lacombe, Leandro Narloch, Caio Coppolla e Rodrigo Constantino possuem algo em comum, que é opinião própria e independência. Isso já é suficiente para serem considerados nocivos dentro de grande parte da mídia, hoje completamente dominada pelo pensamento de esquerda radical (…) no Brasil formou-se um cenário onde não ser radicalmente crítico a um governo conservador/liberal já é motivo para ilações e perseguições. A esquerda não respeita a democracia”.
O presidente acerta ao colocar o jornalista no mesmo balaio de comunicadores alinhados à extrema direita. O liberalismo de Narloch presta serviços relevantes à ideologia bolsonarista. As exceções históricas que ele trata como regra são música para o ouvido do gado enfeitiçado pelas ideias de Olavo de Carvalho. Alguém poderia imaginar que o jornalista liberal ficou incomodado com a defesa do presidente fascistoide? Claro que não. Ele afirmou ter gostado da mensagem do presidente e a classificou como “um texto de estadista”.
É a sua obsessão em deturpar a história que faz dele uma estrela da extrema direita. Em um dos capítulos do seu livro, por exemplo, escreveu que “os índios já haviam extinguido muitas espécies e feito um belo estrago nas florestas brasileiras. Se não acabaram com elas completamente, é porque eram poucos para uma floresta tão grande”. Disse também que “os portugueses ensinaram os índios a preservar a natureza”, um delírio não confirmado por nenhum historiador sério.
O papel da grande imprensa nas atrocidades cometidas por Narloch não é de cúmplice, mas de co-autora.
Esse tipo de afirmação é prato cheio para os bolsonaristas que hoje lutam pelo marco temporal na demarcação de terras indígenas. Segundo o historiador Renato Venâncio, da UFMG, o único grupo social considerado “herói” no livro é o dos bandeirantes, um “segmento comparável às milícias de assassinos que povoam as grandes cidades de nosso país”. Qualquer semelhança com a ideologia bolsonarista não é mera coincidência. Como se vê, Narloch é uma espécie de Paulo Guedes do jornalismo: um liberal com vastos serviços prestados à extrema direita.
Esse esquartejamento sistemático da verdade dos fatos realizado por Narloch vem sendo prestigiado na imprensa há muito tempo. Depois do sucesso de vendas dos guias, que reescrevem a história sob um viés direitista, a grande imprensa lhe estendeu o tapete vermelho. Durante muitos anos, Narloch escreveu na revista Veja uma coluna em que deturpava fatos históricos, para desmoralizar a esquerda e as lutas das minorias.
Antes de voltar recentemente para a Folha, ele já havia sido colunista do jornal entre 2016 e 2018. Depois assinava textos na Crusoé e teve seus livros publicados pela Globo. Quando foi demitido por homofobia pela CNN, a Jovem Pan, a casa não-oficial do bolsonarismo na grande mídia, o contratou — um claro endosso à fala que causou sua demissão.
O papel da grande imprensa nas atrocidades cometidas por Narloch não é de cúmplice, mas de co-autora. Há anos ele desfila no noticiário fornecendo os insumos intelectuais dos bolsonaristas sob o falso manto da moderação liberal. A Folha segue oferecendo o palanque para ele disseminar o mesmo tipo de desinformação que nos trouxe para o buraco.
Patrocinado por grandes empresas de comunicação, Narloch continuará pinçando exceções na história e transformando especulações em evidências para criar narrativas que se encaixem dentro das suas convicções ideológicas. Apesar de ter publicado muitas respostas ao último texto de Narloch, a Folha faturou com toda essa repercussão.
O nome do jornalista virou um dos assuntos mais comentados do Twitter e gerou muitos cliques para a empresa. Em nome de uma falsa abertura ao debate de ideais, a Folha e outras empresas de comunicação abrem as portas para o revisionismo histórico que alimenta o bolsonarismo e trata a desinformação como uma mera questão de opinião. A desinformação empacotada como polêmica segue lucrativa.
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