Se você estivesse pesquisando preços para comprar uma televisão que custa por volta de R$ 2 mil, diria o quê a quem te propusesse alugar o mesmo aparelho por seis meses por mais de R$ 4 mil? O atual comandante do 6º Batalhão de Engenharia e Construção do Exército, o 6º BEC, em Roraima, coronel Carlos Evando dos Santos, provavelmente acharia um ótimo negócio – se pago com dinheiro público, claro.
Ele e o tenente-coronel Júlio André Damasceno dos Santos são os responsáveis por um contrato pelo qual o Exército alugou cerca de 5 mil itens como armários, mesas, colchões, geladeiras, tomadas, lâmpadas e computadores pelo dobro do valor que gastaria para comprar todos eles. Trata-se de mobiliário e equipamentos para o hospital de campanha de Boa Vista, capital do estado, montado pela operação Acolhida para atender venezuelanos e brasileiros durante a pandemia de covid-19.
Quem detectou o mau negócio foi o Tribunal de Contas da União, o TCU, em processo aberto em setembro de 2020. Cópia da investigação foi enviada para a CPI da Covid no Senado, mas passou despercebida e permanecia intocada entre os terabytes de documentos recolhidos pela investigação. É mais um contrato mal explicado firmado por autoridades federais durante a pandemia – e mais um motivo para que o Exército seja chamado a se explicar por sua responsabilidade na pandemia, algo que a própria CPI procura evitar.
O negócio cercado de suspeitas foi firmado com a Ágora Produções, de Brasília, para a “locação de mobiliário hospitalar e administrativo”. A empresa recebeu uma solicitação de orçamento do 6º BEC para fornecer os itens e realizar sua manutenção por seis meses. Após esse período, tudo seria doado definitivamente à unidade militar. O contrato foi assinado em agosto de 2020 e fechado com dispensa de licitação, graças à lei de fevereiro daquele ano que facilitou processos de contratação durante a pandemia. Por ele, o Exército pagou mais de R$ 3 milhões. Mas o TCU descobriu que seria possível comprar os mesmos produtos por cerca de R$ 1,6 milhão, ou seja, pagando 46% menos.
Damasceno era o comandante do Destacamento de Engenharia da operação Acolhida e assinou, em junho de 2020, o projeto básico que deu origem ao processo de contratação da Ágora Produções. Também foi ele quem garantiu que os preços apresentados pela empresa eram “compatíveis com [o] mercado e no âmbito da administração pública”. Atualmente, ele trabalha em Pernambuco.
Já o então tenente-coronel Carlos Evando foi o ordenador da despesa – isto é, quem mandou pagar – e assinou o contrato suspeito. Mesmo com o TCU já investigando o caso, ele foi promovido pelo Exército a coronel, o que lhe valeu um aumento salarial e, desde janeiro passado, passou a comandar o 6º BEC.
A possível irregularidade foi notada pela Secretaria de Controle Externo de Aquisições Logísticas do TCU, que acompanha os contratos publicados no Diário Oficial da União, principalmente os relacionados ao enfrentamento da covid-19, para os quais as exigências se tornaram menos rigorosas devido à emergência sanitária. Em 28 de agosto, apenas uma semana após a assinatura do contrato entre o 6º BEC e a Ágora Produções, o TCU enviou um e-mail para o Centro de Controle Interno do Exército solicitando todos os documentos do processo envolvendo a escolha da empresa. Eu li os documentos, além de vários relatórios de auditores do TCU, todos em poder da CPI.
O caso ainda está em andamento e – aí é que está o problema – terá como relator o ministro Jorge Oliveira. Policial militar da reserva e amigo do presidente Jair Bolsonaro desde 2013, ele era secretário-geral da Presidência da República até ganhar do chefe o cargo vitalício no TCU. Por isso, a investigação pode dar em coisa nenhuma, mas não por falta de motivos. Outra ministra do TCU, Ana Arraes, já havia identificado “risco de irregularidades” no contrato num outro relatório, de setembro de 2020, e alertou que o caso merecia atuação imediata do tribunal.
“Os valores de diversos itens do contrato, ao final dos seis meses, mostraram-se muito superiores aos valores de aquisição desses itens no mercado. A manutenção e eventual reposição de alguns itens durante o período de locação não justificariam pagar preços tão elevados”, escreveu a ministra em seu despacho. Se o Exército tinha a intenção adquirir os bens, “utilizar-se da modalidade de locação temporária acabou por se mostrar alternativa antieconômica”. Arraes deixou a relatoria do caso ao assumir a presidência do Tribunal, e todos os processos do gabinete dela foram encaminhados ao de Oliveira.
Relatórios de diferentes auditores – os profissionais concursados e especializados em contas públicas – que compõem o processo dão fartos exemplos de itens com preço exagerado. Os 18 carrinhos de madeira com gavetas e rodas, usados para transportar medicamentos dentro do hospital, por exemplo, custaram 373% mais caro por terem sido alugados a R$ 22 mil mensais. Após os seis meses, o 6º BEC teria que pagar aproximadamente R$ 133 mil. No comércio varejista, apontou o auditor Rafael Faria Braga em um parecer de outubro de 2020, a mesma quantidade de carrinhos poderia ser comprada por apenas R$ 28 mil.
Somente com instalações de pontos de energia, a Ágora Produções receberia mais de R$ 500 mil, mas os materiais que constam no contrato não são comuns em instalações como tendas, que é o caso dos hospitais de campanha. “O órgão realizou a contratação sem qualquer parâmetro objetivo”, chamou a atenção o auditor Braga.
Em sua defesa, o hoje coronel Carlos Evando informou ao TCU que o contrato com a Ágora Produções foi rescindido em dezembro de 2020, dois meses antes do previsto “devido ao encerramento das atividades da Área de Proteção e Cuidados”. Curiosamente, a rescisão se deu logo após o TCU identificar Carlos Evando e o tenente-coronel Damasceno como os principais responsáveis pelo negócio suspeito.
Com isso, em vez dos R$ 3 milhões que pagaria caso o contrato fosse executado conforme o previsto, o Exército entregou à Ágora quase R$ 1,5 milhão por quatro meses de aluguel do mobiliário. O que o tenente-coronel Carlos Evando tentou apresentar como uma economia, contudo, é mais um indício de que o negócio de fato precisa ser investigado.
Cartas marcadas
Encontrei ainda indícios de combinação de preço em benefício da Ágora Produções, algo que não foi mencionado nos relatórios do TCU. Há uma coincidência de datas em decisões que envolvem o processo de contratação. A Ágora foi a última das quatro concorrentes a entregar o orçamento para o Exército, em 10 de junho de 2020. As demais, duas delas de Roraima e uma do Amazonas, enviaram suas propostas entre os dias 28 de maio e 1º de junho. A Ágora venceu com uma proposta apenas R$ 620 mais barata que a da Mais Opções, de Manaus, a penúltima a entregar o orçamento.
No mesmo dia em que a Ágora entregou a sua proposta de preço, a chefia da 4ª seção do 6º BEC pediu ao ordenador de despesas, o tenente-coronel Carlos Evando, que autorizasse o início do procedimento para contratação de empresa com dispensa de licitação. A resposta foi imediata, com a abertura do processo administrativo na mesma data.
Há ainda outra coincidência que o auditor Luiz Rodrigo Airosa Castro considerou “oportuno citar” em seu parecer de setembro de 2020: Wanderson Pereira Tavares Gomes, um dos sócios da Ágora Produções, e Marco Rodrigo Giordani, proprietário de uma das concorrentes da empresa na disputa pelo contrato com o Exército, possuem sociedade em outro negócio. A questão que o auditor deixa nas entrelinhas é se a disputa entre orçamentos requisitados informalmente foi mero jogo de cena.
Há outros indícios de que pode ter sido. No mesmo 10 de junho em que a Ágora entregou sua proposta, o tenente-coronel Damasceno, então comandante do Destacamento de Engenharia da operação Acolhida, apresentou o projeto básico para “contratação emergencial de locação de mobiliário hospitalar e administrativo para ser aplicado na Área de Proteção e Cuidados”, espaço em que foi montado o hospital de campanha. Nesse projeto constava a relação dos itens a serem alugados e os respectivos valores. A lista que Damasceno apresentou era a proposta que a Ágora Produções havia entregue naquele mesmo dia. Ainda que não seja, em si, uma irregularidade, é curioso que o Exército tenha achado razoável deixar de fazer uma pesquisa de preços por conta própria.
Essa, inclusive, foi a orientação da advogada da União Maria Francelina de Sousa no parecer entregue em 7 de julho de 2020 em que analisava o processo de contratação pela modalidade dispensa de licitação. Ela sugeriu que o 6º BEC explicasse a metodologia usada para fazer o orçamento e que justificasse por que não utilizou o Painel de Preços – o site do governo federal usado como referência para compras públicas.
A resposta do tenente-coronel Carlos Evando veio em uma semana, no dia 15 de julho. Ele respondeu que a pesquisa de preço havia sido feita junto aos fornecedores, que receberam pedidos para enviar orçamentos. Quase um mês depois, em 12 de agosto, o militar assinou outro documento que tentava explicar internamente a dispensa de licitação. Entre as justificativas está a “alta especificidade do objeto” do contrato – que, como já vimos, era composto por itens corriqueiros como colchões, mesas, cadeiras e armários em MDF.
Todo esse esforço para explicar o negócio foi necessário antes mesmo da assinatura do contrato e da abertura do processo do TCU. A assessoria jurídica do 2º Grupamento de Engenharia, que fica em Manaus e ao qual o 6º BEC é subordinado, já havia alertado em 20 de julho que a coisa estava mal explicada. O tenente-coronel Marcos da Silva Castro, chefe da assessoria jurídica, citou o exemplo da televisão que custava cerca de R$ 2 mil no mercado, mas cujo aluguel por seis meses sairia a R$ 4.746,24. “Não cabe apenas o argumento de que na possibilidade de quebra, o referido item será substituído imediatamente, pois trata-se de um aparelho novo”.
O assessor jurídico antecipava o que seria questionado pelos auditores do TCU dois meses depois. Ele chegou até mesmo a aventar o que seria um motivo razoável para a decisão dos colegas de farda: “As oscilações da área de Boa Vista, público e notório, costumam queimar aparelhos elétricos [e] eletrônicos”. O contrato com Ágora Produções foi definitivamente assinado em 21 de agosto.
De fato, as “notórias” oscilações de energia em Boa Vista foram usadas pelo então tenente-coronel Carlos Evando em sua justificativa ao TCU. O atual comandante do 6º BEC alegou que, em um único dia, dois computadores queimaram devido a uma sobrecarga no sistema elétrico. Os aparelhos, argumentou o militar, em defesa da locação, foram trocados no mesmo dia pela empresa.
Mas ele não convenceu o auditor Braga, que lembrou ao tenente-coronel a existência de equipamentos como estabilizadores de voltagem. “Não se pode alegar que oscilações na energia elétrica são comuns na região para justificar a aquisição de um bem por valor superior a duas vezes seu custo de mercado”, disse o servidor do TCU em um parecer de outubro de 2020.
A Ágora também apresentou defesa ao TCU em dezembro passado. Alegou que era a “única empresa apta, financeiramente e comercialmente, a fornecer os mobiliários em um prazo tão exíguo e em local tão remoto”. Por isso, mesmo admitindo que os preços eram “manifestadamente superiores aos praticados no mercado”, a proposta apresentada era vantajosa “dado ao atendimento imediato”.
Além disso, a justificativa se choca com a curiosa maneira como o Exército conduziu o negócio. Em vez de publicar um edital convocando interessados a apresentarem orçamentos, o tenente-coronel Carlos Evando simplesmente escolheu quem ele julgou que deveria disputar o contrato, enviando solicitação de orçamentos diretamente do 6º BEC.
A dispensa de licitação já favoreceu a Ágora Produções em outras oportunidades. De acordo com o Portal da Transparência do governo federal, a empresa assinou 13 contratos com o 6º BEC relacionados à operação Acolhida. Em seis deles, que somam R$ 29,5 milhões, foi selecionada sem precisar disputar uma concorrência pública. Mesmo com tantos contratos milionários, a empresa sequer possui um site, nem é facilmente localizada pela internet. O número de telefone que consta na Receita Federal não existe mais, e o que encontrei na internet é de uma consultoria de contabilidade.
Enviei perguntas sobre o negócio que é objeto desta reportagem ao Exército e aos advogados da Ágora Produções e não tive resposta. Reencaminhei os e-mails e avisei por telefone a assessoria do 6º BEC e a advogada da empresa a respeito. Mesmo assim, ninguém se deu ao trabalho de responder.
‘Condições severas de utilização’
Os tenentes-coronéis Carlos Evando e Damasceno têm se esforçado para tentar justificar o contrato que fecharam. Em relatório datado de setembro de 2020, o auditor Luiz Rodrigo Airosa Castro falou sobre a improvável chance de que todos os itens do contrato precisassem ser substituídos ou consertados em um intervalo de seis meses. Um dos exemplos que ele citou foi o dos colchões. O aluguel de cada um custou cerca de R$ 200 mensais, o que daria R$ 1.234,26 ao longo de seis meses. No Painel de Preços, mostra o auditor, um colchão com as mesmas características custava R$ 218,19 – e tem até cinco anos de vida útil.
Sem ter mais o que argumentar, o coronel Carlos Evando, agora já assinando como comandante do 6º BEC, disse em um documento de maio de 2021 que foram necessários “reparos nos acabamentos dos colchões ou substituição de peças das camas devido aos movimentos bruscos” feitos pelas equipes de plantão porque os “pacientes tinham parada cardíaca e precisavam ser reanimados”.
Sobre as manutenções nos armários, o militar disse que as equipes médicas trabalhavam sob pressão e, por isso, “no stress do plantão, perdiam as chaves”, fazendo com que os miolos das fechaduras tivessem que ser substituídos. Sobre vários outros itens como bandejas, cadeiras ou contêineres para roupas e coleta de lixo, o coronel alegou que nenhum deles seguiu intacto devido às “condições severas de utilização, somado ao ambiente tenso de um hospital onde quase diariamente algum paciente veio a óbito”.
O problema é que não há provas dessas demandas tão constantes por manutenções ou trocas de equipamentos. A empresa mostrou ao TCU apenas prints de pedidos esporádicos feitos por WhatsApp. De acordo com o próprio contrato, as solicitações de reparos tinham que ser formalizadas por e-mail. Mais uma vez, os militares apelaram para o “clima de tensão” devido ao intenso fluxo de atendimento na Área de Proteção e Cuidados da Operação Acolhida, que exigiu que “os procedimentos fossem se ajustando ao longo do tempo de forma a promover o resultado esperado com a máxima eficiência possível”.
‘No mínimo essa análise comparativa entre o custo da aquisição e o custo da locação deveria ter sido empreendida’.
Mas eficiência não é a palavra certa para descrever o negócio dos tenentes-coronéis. No documento enviado ao TCU em maio de 2021, Carlos Evando insiste em defender que o contrato de aluguel, embora custasse quase o dobro, era mais vantajoso porque dispensaria a necessidade de mão de obra para instalar, montar e fazer a manutenção dos equipamentos. “Receber mais de cinco mil itens de fornecedores diversos seria uma tarefa inviável para um Batalhão de Engenharia de Construção”.
O militar também afirma que não saberia o que fazer com todo esse material após seis meses, caso o tivesse comprado. Por seu caráter temporário, diz o militar, a “Operação Acolhida sempre opta por locação, para reduzir investimento com material permanente” – a missão em Roraima iniciou-se em 2018 e não há previsão de encerramento. Mesmo assim, para Carlos Evando, o Exército corria o risco de “ser acusado por ter deixado patrimônio público sendo deteriorado pelo tempo sem utilização”. Essa é mais uma explicação que não convence. Segundo o contrato, todos os itens seriam doados ao 6º BEC. De todo modo, o órgão ficou com a responsabilidade de dar uma destinação correta ao material.
A ideia de fazer a doação, aliás, foi da própria Ágora Produções. Pelo menos foi o que o militar disse ao TCU. Isso porque, ele alegou, devolver todos os itens traria custos extras com desmontagem e transporte de retorno, o que “encareceria ainda mais o contrato e necessitaria estar embutido no preço final da locação”.
O argumento de Carlos Evando só reforça a tese dos auditores do TCU – comprar os itens, em vez de alugar, era a decisão mais inteligente e responsável. “Não conseguimos vislumbrar a vantajosidade da solução adotada”, disse o auditor Márcio Motta Lima da Cruz, em um parecer de março de 2021, que nomeou Damasceno e Carlos Evando como possíveis responsáveis por desperdiçar R$ 1,3 milhão em dinheiro público. “No mínimo essa análise comparativa entre o custo da aquisição e o custo da locação deveria ter sido empreendida”.
Com reportagem adicional de Guilherme Mazieiro.
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