Presidente do CFM editou resolução para esconder falta de evidências sobre cloroquina inalatória

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Presidente do CFM editou resolução para esconder falta de evidências sobre cloroquina inalatória

E-mails internos mostram que Mauro Ribeiro agiu pessoalmente para esconder trechos que alertavam para 'estudos controversos'.

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A crise do coronavírus

Parte 168


O presidente do Conselho Federal de Medicina, Mauro Luiz de Britto Ribeiro, agiu pessoalmente para esconder informações sobre a ineficácia do uso de hidroxicloroquina e cloroquina por via inalatória – método que havia culminado na morte de pacientes semanas antes. E-mails internos mostram que, às vésperas da publicação, Ribeiro pediu para editar uma resolução do CFM, suprimindo os trechos do texto que alertavam para a falta de evidências científicas sobre o tratamento.

As mensagens foram anexadas ao inquérito civil aberto pelo Ministério Público Federal de São Paulo para investigar irregularidades na conduta do CFM com relação ao falso tratamento precoce, documento ao qual o Intercept teve acesso .

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Em 13 de maio de 2021, foi publicada no Diário Oficial da União a resolução do Conselho Federal de Medicina classificando o uso de hidroxicloroquina e cloroquina inalatórias como “experimental”. Com o posicionamento do CFM, esses tratamentos só poderiam ser realizados por meio de protocolos de pesquisa aprovados pelos Comitês de Ética em Pesquisa e Comissão Nacional de Ética em Pesquisa.

Na época, discutia-se a possibilidade delirante de fazer inalação com os componentes químicos dos medicamentos e até dissolver os comprimidos para utilizá-los em nebulização. Nada disso encontrava qualquer respaldo na ciência. O primeiro problema é óbvio: os componentes da hidroxicloroquina e da cloroquina não ajudavam a tratar a doença. Quase um mês antes dessa discussão, no dia 2 de março, a OMS já havia cravado que hidroxicloroquina não servia para tratar a covid-19.

Em segundo lugar, os remédios foram concebidos para serem administrados por via oral. Os fabricantes não tinham qualquer orientação de uso por via inalatória. Por isso, a resolução do CFM serviria para, teoricamente, colocar um freio nos experimentos. O conselho decidiu emitir a resolução em uma sessão plenária no dia 27 de abril, pedido encaminhado diretamente por Mauro Ribeiro. Nos dois dias seguintes, seguiu-se um processo intenso de discussão e edição do texto. Frases como “Na covid-19, devido ao amplo uso off label de HCQ [hidroxicloroquina], os eventos adversos, incluindo efeitos leves, passaram a ser motivo especial de atenção” foram cortadas.

Mas foi quando o texto chegou nas mãos do presidente do CFM que um parágrafo inteiro sobre falta de evidências de eficácia dos medicamentos desapareceu da resolução.

A primeira versão do texto afirmava que “os resultados dos estudos realizados do tratamento da covid-19 com HCQ oral são controversos”, que “as evidências não são conclusivas” e que, por isso, surgiu a ideia de aplicar doses maiores diretamente no tecido pulmonar, por meio da inalação.

Em 30 de abril, pouco antes da publicação da resolução, no entanto, o presidente pediu que o trecho sobre os tais resultados controversos fosse eliminado. No documento, há um grande xis feito com caneta sobre o parágrafo.

Presidente do CFM editou resolução para esconder falta de evidências sobre cloroquina inalatória

E-mail enviado em nome do presidente do CFM, Mauro Ribeiro, pedindo mudanças ao conselheiro Domingos Sávia Matos Dantas, representante do estado de Roraima, na resolução sobre cloroquina e hidroxicloroquina inalatórias.

No lugar, Ribeiro pediu que fosse incluído um parágrafo que poderia servir para justificar o uso do remédio ineficaz: “A hipótese inicial para o uso da hidroxicloroquina inalatória foi de que a administração da droga por essa via, em doses menores, possibilitaria concentrações maiores no tecido pulmonar (alvo inicial da infecção) do que aquela administrada por via oral”, ele escreveu. A versão do presidente do conselho foi mantida no texto final.

Em 5 de maio, o texto foi enviado para revisão gramatical, com um pedido expresso de urgência. Tratava-se, segundo o CFM, de um material que precisava ser publicado no Diário Oficial “o mais breve possível”. Nessa etapa, mais uma canetada: a frase “excessos têm acontecido na ânsia de se encontrar tratamento eficaz que impeça a covid-19 de evoluir da fase inicial de sintomas leves para quadro crítico” também foi riscada.

Presidente do CFM editou resolução para esconder falta de evidências sobre cloroquina inalatória

Corte feito pelo CFM na resolução esconde excessos cometidos na busca por tratamentos para a covid-19.

Duas semanas antes, em Manaus, uma mulher havia morrido após receber hidroxicloroquina inalatória. A ginecologista e obstetra Michelle Chechter fez a paciente assinar um termo autorizando o uso de comprimidos do remédio macerados e diluídos como nebulização e a divulgar um vídeo com os resultados do experimento. A paciente não resistiu. A médica foi demitida. Outra mulher idosa morreu em Itacoatiara, também no Amazonas, após o procedimento.

Antes ainda, em 22 de março, na cidade de Alecrim, Rio Grande do Sul, um homem de 69 anos também foi a óbito depois de ser submetido ao experimento. A família disse não ter autorizado a nebulização. O Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul abriu sindicância para apurar a conduta do profissional, mas arquivou a denúncia “por não haver indícios de infração ao Código de Ética Médica”, já que o paciente havia chegado ao hospital em estado grave e o médico escolhera o tratamento “como medida desesperadora”.

No mesmo estado, também no fim de março, outros três pacientes morreram depois de fazerem o procedimento em um hospital de Camaquã. A médica responsável, Eliane Scherer, foi denunciada ao Ministério Público, mas ganhou uma defesa de peso: Jair Bolsonaro. “A doutora me disse e eu já tinha comprovado isso também. Ela falou, muito humildemente, que não é uma ideia dela a questão da nebulização. A primeira vez que ouviu falar foi lá no estado do Amazonas”, afirmou o presidente na ocasião, em entrevista a uma rádio gaúcha. Segundo o diretor do hospital onde a tragédia aconteceu, os pacientes apresentaram taquicardia e arritmias após o procedimento.

“Essa prática é certamente danosa ao já combalido sistema respiratório do paciente”, afirmou a Sociedade Paulista de Pneumologia, em uma nota publicada em março deste ano. Segundo os pneumologistas, que fizeram a publicação em forma de “apelo” para que em “nenhuma circunstância” fosse prescrita a cloroquina inalatória, o comprimido tem talco em sua composição. Inalado, ele agride o tecido dos pulmões, podendo causar uma inflamação pulmonar aguda e piorar o quadro causado pela covid-19.

“Em nenhuma diretriz para tratamento de nenhuma doença é recomendado o uso de comprimidos por via inalatória. O acúmulo desse material pode, inclusive, causar consequências a longo prazo como insuficiência respiratória crônica”, disse o comunicado dos pneumologistas. Não adiantou.

A resolução do CFM foi finalmente publicada no Diário Oficial da União em 13 de maio de 2021, com data do dia 29 de abril.

‘Segurança jurídica’

O inquérito civil partiu de uma representação feita pelo médico cardiologista Bruno Caramelli, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. “A diretoria do CFM continua permitindo, inclusive, ozonioterapia e cloroquina por via inalatória. Continua permitindo o kit covid em nome de uma pretensa autonomia médica”, ele nos disse.

Para Caramelli, a posição de Mauro Ribeiro, que o levou a entrar no rol dos investigados pela CPI, “é pura e simplesmente para manter um discurso e defender uma pessoa: o presidente da República”.

A advogada Cecilia Mello, que redigiu a representação, vê na atuação do CFM uma resposta às diretrizes bolsonaristas. “Houve um claro direcionamento. Eles respaldaram uma conduta irresponsável, quiçá criminosa do governo federal”, ela argumentou.

Em documentos anexados ao inquérito, o CFM justificou sua atuação afirmando que a covid-19 é uma doença “nova e desconhecida” e que, por isso, os médicos deveriam ter autonomia para escolher junto ao paciente o suposto melhor tratamento. O conselho diz que concedeu “segurança jurídica” aos médicos – em outras palavras, permitiu que aqueles que prescrevessem remédios ineficazes ou mesmo danosos não fossem punidos conforme preconizam as regras de conduta médica.

Um ano antes, em abril de 2020, o CFM já havia soltado sua infame resolução 4/2020, que condicionou o uso de cloroquina, hidroxicloroquina e outros medicamentos off label  – ou seja, cuja aplicação não está prevista na bula – à “autonomia” do médico, uma das obsessões de Mauro Ribeiro.

“Caso os médicos usassem como parâmetro objetivo apenas a prescrição de medicamentos cientificamente comprovados para o caso, estariam de mãos atadas sem a possibilidade de nada fazer. Motivo pelo qual é autorizada, caso assim compreenda útil o profissional, à luz do caso concreto, e em concordância com o paciente, a utilização de medicamentos em caráter off label“, diz a resolução.

De acordo com a Anvisa, o uso off label “é feito por conta e risco do médico que o prescreve, e pode eventualmente vir a caracterizar um erro médico”. Por isso a resolução do CFM foi tão importante: isentou de responsabilidade os médicos que decidiram pela aplicação dos tratamentos.

O Intercept mostrou que, dois meses depois da resolução, um dos vice-presidentes, Emmanuel Fortes Silveira Cavalcanti, representante do estado de Alagoas, e dois conselheiros suplentes do Conselho Federal de Medicina – Luís Guilherme Teixeira dos Santos, do Rio de Janeiro, e Annelise Mota de Alencar Meneguesso, da Paraíba – participaram de um encontro secreto em que incentivaram a prescrição de cloroquina junto a membros do Ministério da Saúde e do chamado “gabinete paralelo”. Investigado pela CPI da Covid, esse grupo assessorava informalmente o presidente Jair Bolsonaro em decisões sobre a doença e contava com ocupantes de cargos no Ministério da Saúde e médicos como Nise Yamaguchi e Anthony Wong, que morreu de covid-19 no começo deste ano.

Naquela época, os medicamentos já eram considerados comprovadamente ineficazes. Em 15 de abril deste ano, um estudo publicado na revista Nature mostrou que o uso de hidroxicloroquina e cloroquina foi devastador: ele aumentou a taxa de mortalidade entre os pacientes.

Segundo o relatório preliminar da CPI da Covid, o parecer do CFM, “embora conclua pela inexistência de evidências robustas para a indicação de uma terapia farmacológica específica para a covid-19, avaliza o uso da cloroquina e a da hidroxicloroquina”. Para os senadores, o conselho “transferiu aos médicos em geral a responsabilidade pela prescrição desses fármacos, mesmo tendo conhecimento da ineficácia do tratamento”, e fundamentou as decisões do Poder Executivo.

Em seu relatório final, a CPI pede que a responsabilidade sobre a conduta do presidente do CFM, Mauro Ribeiro, seja apurada.

Procurado, o conselho não respondeu aos questionamentos do Intercept até a publicação desta reportagem.

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