O presidente do Conselho Federal de Medicina, Mauro Luiz de Britto Ribeiro, agiu pessoalmente para esconder informações sobre a ineficácia do uso de hidroxicloroquina e cloroquina por via inalatória – método que havia culminado na morte de pacientes semanas antes. E-mails internos mostram que, às vésperas da publicação, Ribeiro pediu para editar uma resolução do CFM, suprimindo os trechos do texto que alertavam para a falta de evidências científicas sobre o tratamento.
As mensagens foram anexadas ao inquérito civil aberto pelo Ministério Público Federal de São Paulo para investigar irregularidades na conduta do CFM com relação ao falso tratamento precoce, documento ao qual o Intercept teve acesso .
Em 13 de maio de 2021, foi publicada no Diário Oficial da União a resolução do Conselho Federal de Medicina classificando o uso de hidroxicloroquina e cloroquina inalatórias como “experimental”. Com o posicionamento do CFM, esses tratamentos só poderiam ser realizados por meio de protocolos de pesquisa aprovados pelos Comitês de Ética em Pesquisa e Comissão Nacional de Ética em Pesquisa.
Na época, discutia-se a possibilidade delirante de fazer inalação com os componentes químicos dos medicamentos e até dissolver os comprimidos para utilizá-los em nebulização. Nada disso encontrava qualquer respaldo na ciência. O primeiro problema é óbvio: os componentes da hidroxicloroquina e da cloroquina não ajudavam a tratar a doença. Quase um mês antes dessa discussão, no dia 2 de março, a OMS já havia cravado que hidroxicloroquina não servia para tratar a covid-19.
Em segundo lugar, os remédios foram concebidos para serem administrados por via oral. Os fabricantes não tinham qualquer orientação de uso por via inalatória. Por isso, a resolução do CFM serviria para, teoricamente, colocar um freio nos experimentos. O conselho decidiu emitir a resolução em uma sessão plenária no dia 27 de abril, pedido encaminhado diretamente por Mauro Ribeiro. Nos dois dias seguintes, seguiu-se um processo intenso de discussão e edição do texto. Frases como “Na covid-19, devido ao amplo uso off label de HCQ [hidroxicloroquina], os eventos adversos, incluindo efeitos leves, passaram a ser motivo especial de atenção” foram cortadas.
Mas foi quando o texto chegou nas mãos do presidente do CFM que um parágrafo inteiro sobre falta de evidências de eficácia dos medicamentos desapareceu da resolução.
A primeira versão do texto afirmava que “os resultados dos estudos realizados do tratamento da covid-19 com HCQ oral são controversos”, que “as evidências não são conclusivas” e que, por isso, surgiu a ideia de aplicar doses maiores diretamente no tecido pulmonar, por meio da inalação.
Em 30 de abril, pouco antes da publicação da resolução, no entanto, o presidente pediu que o trecho sobre os tais resultados controversos fosse eliminado. No documento, há um grande xis feito com caneta sobre o parágrafo.
No lugar, Ribeiro pediu que fosse incluído um parágrafo que poderia servir para justificar o uso do remédio ineficaz: “A hipótese inicial para o uso da hidroxicloroquina inalatória foi de que a administração da droga por essa via, em doses menores, possibilitaria concentrações maiores no tecido pulmonar (alvo inicial da infecção) do que aquela administrada por via oral”, ele escreveu. A versão do presidente do conselho foi mantida no texto final.
Em 5 de maio, o texto foi enviado para revisão gramatical, com um pedido expresso de urgência. Tratava-se, segundo o CFM, de um material que precisava ser publicado no Diário Oficial “o mais breve possível”. Nessa etapa, mais uma canetada: a frase “excessos têm acontecido na ânsia de se encontrar tratamento eficaz que impeça a covid-19 de evoluir da fase inicial de sintomas leves para quadro crítico” também foi riscada.
Duas semanas antes, em Manaus, uma mulher havia morrido após receber hidroxicloroquina inalatória. A ginecologista e obstetra Michelle Chechter fez a paciente assinar um termo autorizando o uso de comprimidos do remédio macerados e diluídos como nebulização e a divulgar um vídeo com os resultados do experimento. A paciente não resistiu. A médica foi demitida. Outra mulher idosa morreu em Itacoatiara, também no Amazonas, após o procedimento.
Antes ainda, em 22 de março, na cidade de Alecrim, Rio Grande do Sul, um homem de 69 anos também foi a óbito depois de ser submetido ao experimento. A família disse não ter autorizado a nebulização. O Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul abriu sindicância para apurar a conduta do profissional, mas arquivou a denúncia “por não haver indícios de infração ao Código de Ética Médica”, já que o paciente havia chegado ao hospital em estado grave e o médico escolhera o tratamento “como medida desesperadora”.
No mesmo estado, também no fim de março, outros três pacientes morreram depois de fazerem o procedimento em um hospital de Camaquã. A médica responsável, Eliane Scherer, foi denunciada ao Ministério Público, mas ganhou uma defesa de peso: Jair Bolsonaro. “A doutora me disse e eu já tinha comprovado isso também. Ela falou, muito humildemente, que não é uma ideia dela a questão da nebulização. A primeira vez que ouviu falar foi lá no estado do Amazonas”, afirmou o presidente na ocasião, em entrevista a uma rádio gaúcha. Segundo o diretor do hospital onde a tragédia aconteceu, os pacientes apresentaram taquicardia e arritmias após o procedimento.
“Essa prática é certamente danosa ao já combalido sistema respiratório do paciente”, afirmou a Sociedade Paulista de Pneumologia, em uma nota publicada em março deste ano. Segundo os pneumologistas, que fizeram a publicação em forma de “apelo” para que em “nenhuma circunstância” fosse prescrita a cloroquina inalatória, o comprimido tem talco em sua composição. Inalado, ele agride o tecido dos pulmões, podendo causar uma inflamação pulmonar aguda e piorar o quadro causado pela covid-19.
“Em nenhuma diretriz para tratamento de nenhuma doença é recomendado o uso de comprimidos por via inalatória. O acúmulo desse material pode, inclusive, causar consequências a longo prazo como insuficiência respiratória crônica”, disse o comunicado dos pneumologistas. Não adiantou.
A resolução do CFM foi finalmente publicada no Diário Oficial da União em 13 de maio de 2021, com data do dia 29 de abril.
‘Segurança jurídica’
O inquérito civil partiu de uma representação feita pelo médico cardiologista Bruno Caramelli, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. “A diretoria do CFM continua permitindo, inclusive, ozonioterapia e cloroquina por via inalatória. Continua permitindo o kit covid em nome de uma pretensa autonomia médica”, ele nos disse.
Para Caramelli, a posição de Mauro Ribeiro, que o levou a entrar no rol dos investigados pela CPI, “é pura e simplesmente para manter um discurso e defender uma pessoa: o presidente da República”.
A advogada Cecilia Mello, que redigiu a representação, vê na atuação do CFM uma resposta às diretrizes bolsonaristas. “Houve um claro direcionamento. Eles respaldaram uma conduta irresponsável, quiçá criminosa do governo federal”, ela argumentou.
Em documentos anexados ao inquérito, o CFM justificou sua atuação afirmando que a covid-19 é uma doença “nova e desconhecida” e que, por isso, os médicos deveriam ter autonomia para escolher junto ao paciente o suposto melhor tratamento. O conselho diz que concedeu “segurança jurídica” aos médicos – em outras palavras, permitiu que aqueles que prescrevessem remédios ineficazes ou mesmo danosos não fossem punidos conforme preconizam as regras de conduta médica.
Um ano antes, em abril de 2020, o CFM já havia soltado sua infame resolução 4/2020, que condicionou o uso de cloroquina, hidroxicloroquina e outros medicamentos off label – ou seja, cuja aplicação não está prevista na bula – à “autonomia” do médico, uma das obsessões de Mauro Ribeiro.
“Caso os médicos usassem como parâmetro objetivo apenas a prescrição de medicamentos cientificamente comprovados para o caso, estariam de mãos atadas sem a possibilidade de nada fazer. Motivo pelo qual é autorizada, caso assim compreenda útil o profissional, à luz do caso concreto, e em concordância com o paciente, a utilização de medicamentos em caráter off label“, diz a resolução.
De acordo com a Anvisa, o uso off label “é feito por conta e risco do médico que o prescreve, e pode eventualmente vir a caracterizar um erro médico”. Por isso a resolução do CFM foi tão importante: isentou de responsabilidade os médicos que decidiram pela aplicação dos tratamentos.
O Intercept mostrou que, dois meses depois da resolução, um dos vice-presidentes, Emmanuel Fortes Silveira Cavalcanti, representante do estado de Alagoas, e dois conselheiros suplentes do Conselho Federal de Medicina – Luís Guilherme Teixeira dos Santos, do Rio de Janeiro, e Annelise Mota de Alencar Meneguesso, da Paraíba – participaram de um encontro secreto em que incentivaram a prescrição de cloroquina junto a membros do Ministério da Saúde e do chamado “gabinete paralelo”. Investigado pela CPI da Covid, esse grupo assessorava informalmente o presidente Jair Bolsonaro em decisões sobre a doença e contava com ocupantes de cargos no Ministério da Saúde e médicos como Nise Yamaguchi e Anthony Wong, que morreu de covid-19 no começo deste ano.
Naquela época, os medicamentos já eram considerados comprovadamente ineficazes. Em 15 de abril deste ano, um estudo publicado na revista Nature mostrou que o uso de hidroxicloroquina e cloroquina foi devastador: ele aumentou a taxa de mortalidade entre os pacientes.
Segundo o relatório preliminar da CPI da Covid, o parecer do CFM, “embora conclua pela inexistência de evidências robustas para a indicação de uma terapia farmacológica específica para a covid-19, avaliza o uso da cloroquina e a da hidroxicloroquina”. Para os senadores, o conselho “transferiu aos médicos em geral a responsabilidade pela prescrição desses fármacos, mesmo tendo conhecimento da ineficácia do tratamento”, e fundamentou as decisões do Poder Executivo.
Em seu relatório final, a CPI pede que a responsabilidade sobre a conduta do presidente do CFM, Mauro Ribeiro, seja apurada.
Procurado, o conselho não respondeu aos questionamentos do Intercept até a publicação desta reportagem.
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