Francisco de Souza dirige para a Uber há dois anos. Era do seu carro, um Nissan Versa financiado, que o paulistano de 55 anos tirava seu sustento até os últimos dias de setembro de 2021, quando uma colisão danificou o veículo. Enquanto estava na oficina, Souza fez o que parte cada vez maior dos motoristas de aplicativo fazem: alugou outro carro para trabalhar. O Chevrolet Onix branco custou R$ 900 por duas semanas, valor pago adiantado à proprietária do veículo.
Dois dias depois, seu carro foi apreendido – embora a Uber tivesse lhe dado permissão para rodar, a empresa não forneceu as informações do novo veículo à prefeitura, como preconiza a legislação municipal. Além do carro apreendido, Souza precisará pagar uma multa de mais de R$ 5 mil.
A situação de Souza aconteceu pelo menos com 2.400 motoristas desde 2019. Os dados, levantados pela CPI dos Aplicativos de Transporte na Câmara Municipal de São Paulo e obtidos pelo Intercept, mostram que a negligência da Uber e outros apps de transporte ao ceder informações cadastrais não é problema pontual – mas um fenômeno repetitivo que deixa milhares de pessoas na rua sem conseguir trabalhar.
De acordo com o documento, entregue por Roberto Cimatti, diretor do Departamento de Transporte Público, o DTP, 2.406 veículos de motoristas de aplicativo foram apreendidos pelo órgão apenas por inconsistências cadastrais. A lei exige que esses dados sejam fornecidos pelas OTTCs – sigla criada pela prefeitura para Operadoras de Tecnologia de Transporte Credenciadas –, mas muitas vezes isso não ocorre. Então, quem é penalizado é o motorista – e nada acontece com as gigantes, que se gabam de investir em tecnologia de ponta.
Dirigir um carro alugado não é proibido pela Uber e outros apps. Pelo contrário: apesar de se apresentar como uma plataforma de renda extra para pessoas que possuem veículo próprio, a empresa estimula o aluguel de carros com descontos em grandes locadoras. Há até ferramentas para disponibilização de veículos de pessoas físicas dentro do próprio aplicativo. É uma relação parecida com as diárias cobradas por frotas de táxi.
A Uber permite que qualquer motorista cadastrado na plataforma habilite até quatro veículos distintos para trabalhar. O veículo alugado foi o segundo de Souza, que o inseriu na plataforma da Uber em 18 de outubro. Dois dias se passaram até que a empresa liberasse o carro para rodar – às 8h do dia 20, o motorista saiu de casa com a permissão da plataforma para usar o Onix alugado e com uma meta agressiva a cumprir para compensar os dias parados.
Às 15h30, uma viagem terminou com o desembarque de duas passageiras na Terminal Rodoviário do Tietê, na zona norte da capital paulistana. O local é uma das áreas em que o DTP mantém fiscalização sobre o transporte de pessoas. Abordado por um funcionário do órgão, Souza soube que quase todas as suas informações estavam corretas no sistema da Secretaria Municipal da Fazenda de São Paulo, que registra o trabalho de motoristas de aplicativo, com exceção de uma: o carro alugado, liberado pela Uber para o trabalho, não constava no sistema. Após entregar a chave do veículo aos agentes fiscalizadores, ele teve direito de pegar seus pertences pessoais, como celular e dinheiro, e então o Chevrolet Onix foi apreendido.
A Uber, por meio de sua assessoria de imprensa, disse que compartilha dados com o município de São Paulo “em conformidade com a regulação local e respeitando todos os preceitos da Lei Geral de Proteção de Dados”. “Alguns dos dados são compartilhados com o município diariamente, inclusive”, disse a empresa. Sobre Souza, a Uber afirmou que não foi possível verificar o caso, “porque não foram fornecidas à empresa informações para checar se a ocorrência mencionada está mesmo relacionada à plataforma”.
‘Dificuldades para desenrolar’
Desde maio de 2016, o decreto municipal nº 56.981 regulamenta a operação de aplicativos de transporte na cidade de São Paulo. Esse documento norteia as obrigações de prestadoras do serviço, como a Uber. Em 2019, um decreto de adendo ao artigo 3º obrigou as empresas, que até então deveriam compartilhar com a prefeitura apenas dados como origem e destino da viagem, preço cobrado e avaliação feita pelo passageiro, a compartilharem também a identificação do condutor e do veículo utilizado no trabalho. É com esse banco de dados que órgãos públicos, como o DTP, podem fiscalizar a situação cadastral dos motoristas. A disponibilização das informações é de responsabilidade exclusiva das empresas.
Quando a regra foi criada, em 2019, o número de apreensões explodiu – foram mais de duas mil. 2020 e 2021 tiveram taxas bem menores – nove e 81, respectivamente –, mas o problema persiste e tem crescido nos últimos meses. Só em setembro passado, foram 51 apreensões por falta de documentos enviados pela Uber e outros apps de transporte.
‘A prefeitura não possui nenhum poder de atuação sobre os aplicativos’.
Atualmente, segundo informações fornecidas por Cimatti, o DTP possui 106 agentes de fiscalização de trânsito no município – todos cedidos ao órgão pela SPTrans, companhia responsável pela gestão do transporte público na cidade. São eles que retêm, autuam ou apreendem os veículos. No caso de apreensão, o condutor do veículo é obrigado a pagar à prefeitura taxas de remoção e valores que se acumulam por cada dia de estadia no pátio municipal de apreensão, além de uma multa de R$ 5.100.
Os aplicativos de transporte, no entanto, não são responsabilizados pelo atraso ou falta de repasse das informações cadastrais de seus motoristas. Perguntado sobre a injustiça do esquema perpetrado pela legislação vigente por Marlon Luz, vereador do Patriota e vice-presidente da CPI, Cimatti disse que o DTP encaminha “inúmeros processos ao CMUV para que eles façam autuações nas plataformas, porque elas que realmente causam esse problema ao condutor”.
Para Adilson Amadeu, vereador pelo DEM e presidente da CPI, “a prefeitura não possui nenhum poder de atuação sobre os aplicativos”.
Questionado se o Comitê Municipal de Uso do Viário, o CMUV, já havia multado ou autuado os aplicativos de transporte pela sonegação de informações, o diretor explicou que o secretário-executivo do comitê, Felipe Scigliano Pereira, assumiu recentemente o cargo e “pode estar tendo dificuldades para desenrolar”. “Realmente parece injusto que o motorista seja penalizado por uma incompetência ou até uma sonegação de impostos das plataformas”, finalizou o vice-presidente da CPI.
Após a apreensão do veículo de Souza, a Uber transmitiu as informações cadastrais à prefeitura. Em consulta no dia 25 de outubro, cinco dias depois da apreensão, a liberação para uso no transporte de passageiros constava no sistema municipal.
Souza conseguiu dinheiro emprestado de um amigo para retirar o veículo do pátio após nove dias de apreensão – os R$ 1,5 mil pagos em taxas administrativas deverão ser devolvidos com juros. Ele tentou contato com a Uber por e-mail e telefone, mas não teve retorno da plataforma.
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