Documentos divulgados no final de outubro pelo Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos, NIH na sigla em inglês, levantam novas questões sobre pesquisas de vírus financiadas pelo governo norte-americano e realizadas na China. Os relatórios anuais da EcoHealth Alliance, que o NIH enviou ao Intercept em resposta a uma ação judicial, forneceram evidências adicionais de que a entidade americana — que estuda doenças infecciosas nascentes — e sua parceira, o Instituto de Virologia de Wuhan, estavam envolvidos em experiências arriscadas e que o NIH pode não ter tido pleno conhecimento dessas atividades.
Em setembro, o Intercept recebeu duas propostas de subsídios da EcoHealth Alliance que foram apresentadas ao NIH. Uma delas, “Understanding the Risk of Bat Coronavirus Emergence”(Entendendo o Risco da Emergência do Coronavírus de Morcego), detalhou pesquisas preocupantes e potencialmente perigosas conduzidas com coronavírus de morcego conduzidas em Wuhan, na China. Mas a primeira liberação dos documentos, que o Intercept recebeu mais de um ano após tê-los solicitado, não incluiu o relatório de progresso para o quinto e último ano de financiamento da subvenção.
Em 20 de outubro, o NIH forneceu o relatório que faltava para o período que terminava em maio de 2019, inexplicavelmente datado de agosto de 2021. Esse resumo do trabalho do grupo inclui uma descrição de um experimento que a EcoHealth Alliance conduziu envolvendo clones infecciosos do MERS-CoV, o vírus que causou um surto mortal de síndrome respiratória do Oriente Médio, em 2012. A MERS tem uma taxa de letalidade de até 35%, muito mais alta que a da covid-19. De acordo com o relatório, os cientistas trocaram o domínio receptor do vírus, ou RBD, uma parte da proteína spike que permite que ele entre nas células de um hospedeiro. “Construímos o clone infeccioso completo do MERS-CoV, e substituímos o RBD do MERS-CoV pelos RBDs de várias cepas de coronavírus relacionadas aos coronavírus HKU4 previamente identificados em morcegos de diferentes províncias do sul da China”, escreveram os cientistas.
“Mudar o local de vinculação do receptor na MERS é meio louco”, escreveu Jack Nunberg, virologista e diretor do Centro de Biotecnologia da Universidade de Montana, em um email ao Intercept, após revisar os documentos. “Embora esses novos vírus quiméricos possam reter propriedades da espinha dorsal genética do MERS-CoV, a engenharia de um patógeno humano conhecido levanta novos e imprevisíveis riscos além daqueles colocados pelos estudos previamente relatados usando a espinha dorsal não patogênica do vírus do morcego”. A intenção dos pesquisadores, que alguns cientistas consideram fundamental para definir o ganho de função genética, permanece pouco clara.
“No mesmo relatório, eles mostraram dados de que um de seus vírus quiméricos semelhantes à SARS causou mais doenças em um modelo animal humanizado do que o vírus original”, disse Alina Chan, uma bióloga molecular radicada em Boston e coautora do livro “Viral: The Search for The Origin of Covid-19” (“Viral: a busca pela origem da covid-19”), ainda no prelo. “Depois de ver esse resultado, por que eles fizeram um trabalho similar usando o patógeno humano MERS?”
O Intercept perguntou anteriormente à EcoHealth Alliance sobre o trabalho com MERS-CoV citado em seções da concessão de verbas que o NIH liberou em setembro. Na ocasião, o porta-voz da EcoHealth, Robert Kessler, insistiu que o grupo não havia conduzido o trabalho. “O trabalho com MERS proposto é sugerido como uma alternativa e não foi realizado”, escreveu Kessler em um e-mail em setembro. Ele não respondeu a uma pergunta que o Intercept mandou antes da publicação deste texto, sobre a aparente falsidade de sua declaração anterior.
O trabalho com o vírus MERS complica as alegações anteriores da EcoHealth Alliance de que a pesquisa não tinha envolvido trabalho com “patógenos potencialmente pandêmicos”, ou vírus, bactérias e micro-organismos que têm um risco provável de propagação incontrolável entre humanos. Kessler havia dito anteriormente ao Intercept que “todos os outros vírus estudados sob esta concessão de verbas são vírus de morcegos, não vírus humanos”. Mas é sabido que o MERS infecta e se propaga em humanos, e foi especificamente designado em uma antiga pausa imposta pelo NIH ao financiamento de pesquisas de ganho de função preocupantes.
Outras questões surgem dos experimentos do grupo com coronavírus de morcegos. Como o Intercept escreveu anteriormente, as propostas para obter subsídios feitas pela EcoHealth Alliance e divulgadas em setembro continham descrições de um experimento em ratos que haviam sido geneticamente modificados para conter um receptor enzimático encontrado em células humanas. Esses “ratos humanizados” foram infectados com coronavírus de morcegos contendo partes de outros vírus. Em certos momentos durante o experimento, os vírus mutantes se reproduziram muito mais rapidamente nos ratos do que o vírus original de morcego no qual eram baseados, e também eram um pouco mais patogênicos, levando vários especialistas a concluir que se enquadravam na definição de pesquisa de ganho de função do NIH.
O governo federal dos EUA pausou temporariamente essas pesquisas de ganho de função envolvendo patógenos potencialmente pandêmicos em 2014, mas elas foram retomadas em 2017, quando o Departamento de Saúde introduziu diretrizes conhecidas como P3CO, que buscavam proteger contra o risco de surto de doenças.
Em setembro, o Intercept perguntou ao NIH se alguém na agência estava ciente dos experimentos em ratos humanizados. Também questionou se, depois que eles resultaram em evidência de crescimento do vírus maior que 1 log em relação à cepa original, os pesquisadores foram orientados a “parar todos os experimentos com esses vírus e fornecer ao Oficial do Programa NIAID e Especialista em Gestão de Subsídios, e ao Comitê Institucional de Biossegurança do Instituto de Virologia de Wuhan, os dados e informações relevantes relacionados a esses resultados imprevistos”, como a bolsa exigia especificamente. Perguntamos ainda por que essa pesquisa não estava sujeita nem à pausa temporária nem às diretrizes do P3CO.
Em resposta, a porta-voz do NIH, Elizabeth Deatrick, escreveu: “O IP [investigador principal] relatou esses resultados no relatório de progresso do ano 4 e no pedido de renovação de subsídio. A pesquisa descrita foi revista e foi considerada não sujeita à Pausa de Financiamento de Pesquisa de Ganho de Função 2014-2017 ou às regras estruturadas no P3CO”.
Em uma carta enviada ao deputado republicano James Comer, do Kentucky, o Diretor Adjunto Principal do NIH, Lawrence Tabak, parecia sugerir que a agência não tinha conhecimento da pequisa problemática. “A EcoHealth não relatou essa descoberta imediatamente, como era exigido pelos termos do financiamento”, ecreveu Tabak a Comer, membro do Comitê de Supervisão e Reforma da Câmara, que também recebeu uma cópia do relatório anual de progresso da bolsa para a pesquisa sobre o coronavírus de morcego.
Embora seja crítico da EcoHealth Alliance, Tabak também parecia sugerir que não havia nada de alarmante na pesquisa, a qual ele chamou de “experimentos limitados”. Depois de reconhecer que alguns dos ratos humanizados que foram infectados com os vírus mutantes ficaram mais doentes que os infectados com os vírus originais, ele disse que os cientistas não pretendiam obter esse resultado. “Como às vezes ocorre na ciência, esse foi um resultado inesperado da pesquisa, em vez de algo que os pesquisadores se propuseram a fazer”.
Tabak também enfatizou, como o Intercept relatou anteriormente, que os vírus estudados nos experimentos com ratos estavam tão evolutivamente distantes do SARS-CoV-2 que eles não poderiam ter se transformado no vírus que causou a pandemia de covid-19. Essa visão também foi repetida em uma breve análise da pesquisa que o NIH publicou em seu site.
Também entre os documentos que o NIH entregou ao Intercept estava a versão original de um relatório anual do quarto ano do financiamento para a pesquisa com coronavírus de morcego. A versão divulgada em setembro indicava que ela havia sido aporesentada em 2020, após o início da pandemia e mais de dois anos após o seu vencimento. As duas versões parecem ser quase idênticas, embora incluam publicações de referência diferentes. O NIH ainda não divulgou as comunicações em torno da concessão que possam explicar por que o documento foi atualizado.
De acordo com a carta de Tabak, o NIH exigiu informações adicionais da EcoHealth Alliance. “A EcoHealth está sendo notificada de que tem cinco dias a partir de hoje para enviar ao NIH todo e qualquer dado não publicado dos experimentos e trabalhos realizados com essa verba”, escreveu. “Esforços adicionais de conformidade continuam”.
“É um padrão de desonestidade”, disse Chan, a bióloga molecular e autora de “Viral”. “Deve ficar claro agora que não podemos aceitar a palavra das partes em conflito na busca pela origem da covid-19”, acrescentou ela. “É urgentemente importante que o público e os investigadores tenham pleno acesso a todos os documentos da EcoHealth relacionados à pequisa realizada em Wuhan”.
Tradução: Maíra Santos
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