Quem vê a fachada da Emei Monteiro Lobato, cercada por passarinhos e árvores na região do Parque Buenos Aires, no bairro de Higienópolis, em São Paulo, não imagina que ali foram vivenciados dias turbulentos depois que o pai de uma aluna expôs na internet que a escola praticava “ideologia de gênero”.
A exposição trouxe consequências duras: o corpo docente recebeu ameaças de morte por telefone e pelas redes sociais e uma professora chegou a mudar de casa, pedir demissão e afirmar nunca mais querer dar aulas. O fato aconteceu em 2018, mas a história voltou à tona em julho deste ano, quando um vídeo com uma criança relatando ter aprendido questões de gênero na sala de aula foi publicado na internet por um pastor evangélico.
Dias depois, dois policiais civis foram até a escola. Disseram que houve uma denúncia anônima de que o colégio trabalhava com questões de gênero e que estavam procurando a professora citada no vídeo. “Eles entraram com tom de coação. Foi assustador”, relatou a professora Amanda Gomes Pinto, que leciona na unidade.
Um dos policiais era a investigadora Tatiana Cristina Galvão, do 4º Distrito Policial, que deixou um cartão com seus dados para funcionários da escola. Perguntei à Secretaria de Segurança Pública de São Paulo qual foi o motivo que levou os policiais ao local, mas o órgão não respondeu. Se limitando a dizer que a Polícia Civil “efetuou diligências para verificar a denúncia” recebida por meio da Câmara Municipal e que “nada de interesse policial foi encontrado”. “Me causou um grande estranhamento pensar que a polícia, que não investiga coisas básicas, aparece em uma escola do nada”, disse a professora.
‘Minha professora ensinou coisa errada’
Para grupos conservadores, qualquer iniciativa escolar acerca de gênero e sexualidade pode ser vista como “ideologia de gênero”. É desse mesmo universo que surgem invenções como o “kit gay” na escolas e “aulas de sexo”. No caso da Monteiro Lobato, foi um menino com as unhas pintadas que rendeu ameaças de morte a uma educadora.
No vídeo que viralizou, uma criança de quatro anos, ainda de uniforme escolar, relata o que viu em sala de aula. “Minha professora ensinou coisa errada. Que menino usa saia, vestido, brinco e pinta a unha”, conta para a câmera, visivelmente constrangida. O pai, que está com o celular apontado para a garota, pede para que ela fale o nome da escola e da professora, além de dizer que esse tipo de coisa é inadmissível e que vai tomar providências.
Na época, ele levou o assunto para a Câmara Municipal de São Paulo. Ao mesmo tempo, o vídeo era compartilhado efusivamente na internet, e grupos conservadores atacavam a escola nas redes sociais. Principalmente a professora. “Ela morava aqui na região, perto desse pai que fez a denúncia. E ele sabia onde ela morava. Ela teve que vender o apartamento e mudar de casa, porque não se sentiu segura”, me disse um funcionário da escola que preferiu não se identificar por medo de represálias. “Ela ficou emocionalmente abalada, tanto que diz que perdeu a vontade de ser professora de educação infantil, que era a coisa mais importante da vida dela”. A escola registrou um boletim de ocorrência para formalizar os ataques recebidos.
Segundo relatos de funcionários ouvidos pelo Intercept, a conversa proposta pela professora teria acontecido depois que um dos alunos chegou com as unhas pintadas. “Nessa turma, tinha um menino que pintava a unha, filho de artistas, de gente da área cultural. Numa roda de conversa, surgiu o assunto. E a professora disse que menino também pode pintar a unha e usar saia. Que se a família achar legal, tudo bem”.
Eles afirmam que o pai responsável pelo vídeo teria sido penalizado criminalmente pela Promotoria da Infância e Juventude por divulgar imagens da própria filha, que é menor de idade, com teor de denúncia. Apuramos a informação com o Ministério Público do Estado de São Paulo, que não encontrou nada relacionado ao sujeito.
Em 2018, mães e pais de estudantes da Emei Monteiro Lobato chegaram a fazer um ato em frente à escola para defender a professora. Mas, com a saída dela, o assunto parecia ter sido enterrado. Até que o pastor evangélico Jorge Linhares, conhecido por sua militância contra a “ideologia de gênero”, republicou o vídeo da garotinha em seu Instagram, em julho deste ano.
Semanas depois, quem reviveu a história foi uma reportagem da TV Record intitulada “Na Escócia, crianças podem escolher com qual sexo se identificam”. Nela, todos os especialistas consultados criticam a “ideologia de gênero”. E o pai da ex-estudante da Emei Monteiro Lobato dá entrevista e rememora o acontecido, dizendo que, na época em que publicou o vídeo, foi ameaçado de morte nas redes sociais.
Depois que a reportagem foi ao ar, o assédio e as ameaças voltaram com ainda mais força, relatam funcionários da escola. “Começamos a receber telefonemas com ameaças procurando a professora, dizendo que estávamos sexualizando crianças, que iam derrubar a professora e a diretora”, disse um deles. Foi aí que os dois policiais civis se dirigiram até a escola, buscando a professora em questão – ainda que ela não integrasse o quadro de funcionários desde 2018.
O pastor amigo de Damares
Não é a primeira vez que o pastor Jorge Linhares se envolve em questões de gênero ou sexualidade. Em 2016, a Igreja Batista Getsêmani, da qual é presidente, em Belo Horizonte, Minas Gerais, divulgou uma palestra que prometia “prevenir e reverter a homosexualidade”. A repercussão negativa nas redes sociais fez com que o tema do encontro acabasse alterado para “Orientando pais sobre a sexualidade de seus filhos”. Na época, o caso foi denunciado ao Ministério Público de Minas Gerais, o MPMG, e o pastor afirmou que a igreja não era homofóbica.
Linhares é diretor do Colégio Batista Getsêmani, também em Belo Horizonte. Nas redes sociais, a escola rebateu uma campanha publicitária do Burger King que abordava qual era a melhor maneira de falar sobre identidade de gênero e sexualidade com as crianças. Para isso, o pastor postou um vídeo protagonizado por crianças dizendo que a campanha quer confundir as pessoas ao dizer que meninos podem ser meninas. “Querem trocar a verdade de Deus por uma mentira, mas o nosso Deus nunca erra”, diz uma delas.
O pastor foi intimado a depor no MPMG e, no dia, fiéis da igreja ficaram na porta do local aguardando. Ao fim do depoimento, Linhares disse que tudo ocorreu bem, que foi muito bem tratado pelo promotor e ressaltou: “Homem é homem, mulher é mulher, Deus não erra“. O inquérito acabou sendo arquivado. “Da análise de tal conteúdo, não é possível se extrair qualquer fala que incite o ódio à população LGBTQIA+. O discurso não se revela agressivo ou violento em si”, escreveu o promotor Mário Konichi Higuchi Júnior.
Em 1º de novembro deste ano, Linhares também propôs um boicote à Doritos, que divulgou uma campanha mexicana para o Dia dos Mortos com um casal homossexual da terceira idade vindo do “além” para conversar com os vivos. “Dois homens na eternidade ferindo a palavra de Deus, indo contra a palavra de Deus. Nunca mais eu vou comprar Doritos. Vai para o lixo isso daqui”, diz, segurando um pacote do salgadinho. O vídeo foi publicado no perfil do Instagram da Igreja Getsêmani e recebeu mais de 200 comentários. A maioria deles, de pessoas que acataram o boicote à marca.
Em seu Instagram, Linhares tem diversas fotos abraçado com a também pastora evangélica e ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos Damares Alves. O caso da Emei Monteiro Lobato, inclusive, foi encaminhado ao canal de denúncias no ministério. A escola enviou uma resposta afirmando “ser improcedente a denúncia de violência contra criança” imputada no documento e ainda frisou que “entre tantos outros estereótipos e preconceitos, é preciso reconhecer que há muitos modos de ser menino e menina, e que essas regras não devem definir os modos como as pessoas se constituem”. De acordo com o relato de ocorrência do ministério, o caso é classificado como “situação de violência” contra crianças.
A volta do ‘Escola sem Partido’
Ao ser comunicado sobre o acontecido na escola, o vereador Celso Giannazi, do Psol, notificou o Ministério Público estadual e a Secretaria Municipal de Educação. “A Emei Monteiro Lobato virou um centro de ataques de grupos fundamentalistas, e ficamos muito preocupados. Sabemos do projeto pedagógico maravilhoso que eles desenvolvem ali”, relata. “Policiais foram até a escola cobrar providências. Houve um assédio muito grande desses grupos em cima da diretora da escola”.
Para ele, que é membro titular da Comissão de Educação da Câmara Municipal, a professora não fez nada de errado. “A identidade de gênero está dentro do Currículo da Cidade. Então, o que a escola está fazendo nada mais é do que cumprir com ele”. Giannazi se refere ao documento que unifica as metodologias pedagógicas aplicadas em sala de aula das escolas municipais.
“Acredita-se que a escola, ao ser inclusiva, pode desempenhar um importante papel na luta contra a exclusão social e racial”, traz o Currículo da Cidade. O texto reforça também que a unidade escolar, “apesar de seus limites, possui certa autonomia e pode contribuir para reduzir as discriminações e os preconceitos relacionados às diferenças biopsicossociais, culturais, etárias, econômicas, étnico-raciais, de gênero, linguísticas, religiosas, entre outros”.
Nessa história, algo maior está em jogo, ele acredita. “O que está por trás de tudo isso é a volta do ‘Escola sem Partido’. Inclusive, por parte de alguns parlamentares da Câmara. É isso que está em discussão”.
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