Embora o Auxílio Brasil ainda siga incerto, nos últimos anos, sem muito alarde, criou-se no Brasil um dos maiores programas de transferência de renda de todos os tempos: o Auxílio Mercado Financeiro.
Depois do impeachment controverso da presidenta Dilma Rousseff, o mercado financeiro capturou de uma só vez o orçamento público e a Petrobras. Ainda em 2016, o governo Temer implementou duas importantes mudanças de política econômica. A primeira foi a instituição do teto de gastos (EC95), que congelou a despesa pública primária real por pelo menos 10 anos, visando reduzir o tamanho do Estado. A segunda foi a mudança na política de determinação de preços de combustíveis da Petrobras, que vinculou os preços cobrados pela empresa aos preços internacionais cotados em dólares.
A Petrobras do passado foi um importante motor do crescimento do país, tendo sido responsável direta por até 2% do PIB em investimentos. Porém, nas mãos do mercado financeiro, ela se tornou um Robin Hood às avessas: retirando dinheiro dos mais pobres para dar aos mais ricos.
A nova política da Petrobras fez os preços dos combustíveis dispararem nos últimos anos. O preço da gasolina subiu impressionantes 73,4% só em 2021, e o do diesel, 65,3%. Esses aumentos são explicados pelo aumento do preço internacional do petróleo e pelas barbeiragens neoliberais de Paulo Guedes, que junto às barbaridades políticas de Bolsonaro, fizeram o câmbio disparar.
Como resultado da nova política de preços, em 2021 a Petrobras acumulou até novembro lucros de R$ 75,1 bilhões. Conforme destacou o professor Eduardo Costa Pinto, da UFRJ, com esse resultado o retorno sobre o patrimônio líquido (ROE) da empresa foi sete vezes maior do que a média das demais petroleiras.
A empresa poderia ter investido esses recursos, gerando emprego e renda para os brasileiros, ou expandido seu P&D em energias limpas, como diversas petroleiras têm feito. Mas a Petrobras fez o contrário: reduziu seus investimentos para distribuir a maior parte de seus lucros aos seus acionistas na bolsa de valores.
Dos R$ 63,4 bilhões de dividendos distribuídos pela estatal em 2021, cerca de R$ 26,6 bilhões (42%) vão a estrangeiros, e outros R$ 13,3 bilhões (21%) para alguns brasileiros, os mais ricos, que conseguem poupar e aplicar em ações. E vale lembrar que esses dividendos são isentos de imposto de renda.
O governo receberá 37% dos dividendos, cerca de R$ 23,5 bilhões. Mas nem um centavo desse dinheiro poderá ser gasto para melhorar a condição de vida atual do povo. Devido ao teto de gastos, qualquer aumento de receitas do governo ou vira superávit financeiro poupado na conta do Tesouro, ou vai para o pagamento da dívida pública, ou seja, para alguns dos brasileiros mais ricos, que conseguem poupar e aplicar em títulos públicos.
O dinheiro para pagar esses R$ 63,4 bilhões do Auxílio Mercado está vindo, num país desigual e populoso como o Brasil, da população mais pobre.
Com a alta dos preços dos combustíveis, diversos outros preços sobem, puxando para cima a inflação. Estudos indicam que quase metade da inflação brasileira, que pode superar 10% esse ano, deve-se à alta de preços de combustíveis, energia e gás. Isso ocorre tanto porque muitos insumos são importados quanto porque boa parte da produção brasileira é transportada por caminhões. Além disso, com a falta de água, termoelétricas foram ligadas, e várias delas funcionam a petróleo, encarecendo também a energia elétrica.
Assim, todos os dias, à medida que os preços aumentam, quando compramos pão, gasolina, arroz, feijão, etc., pagamos um pouco do Auxílio Mercado. Para piorar, um estudo do IPEA aponta que enquanto a inflação para os mais pobres chegou a 11% nos últimos 12 meses, para os mais ricos ela foi de apenas 1%.
E não para por aí. Para tentar controlar a inflação criada em boa medida pela Petrobras, sob o comando de Bolsonaro, Guedes e do General Silva e Luna, o Banco Central está elevando rapidamente a taxa de juros. De janeiro a outubro deste ano, a taxa Selic aumentou de 2% para 7,75%.
Segundo estimativas do Banco Central, cada aumento de 1 ponto percentual da Selic, se mantido por 12 meses, aumenta a dívida bruta em R$ 31,3 bilhões. Estudos apontam custo acumulado superior a R$ 200 bilhões com os aumentos de juros. Não sabemos onde pararão as taxas de inflação e juros, mas mais uma vez sabemos que este gasto público é renda para alguns dos brasileiros mais ricos, detentores de títulos públicos.
No total, o Auxílio Mercado Financeiro deverá custar mais de quatro vezes o finado Bolsa Família. Se considerarmos que metade do aumento dos juros pode ser atribuído aos efeitos da política de preços da Petrobras, tem-se um custo anual extra de R$ 90 bilhões. Somando-se esse valor aos R$ 63,4 bilhões de dividendos pagos pela empresa, têm-se um total de impressionantes R$ 153,4 bilhões para o Auxílio Mercado, enquanto o extinto programa Bolsa Família custava apenas R$ 35 bilhões ao ano.
Como se não bastasse tudo isso, com aumento de juros e baixo crescimento do PIB projetado para 2022, a tendência é a relação dívida/PIB voltar a aumentar. Com o aumento da dívida pública volta o argumento de que é preciso cortar gastos. Mas como os gastos já estão estrangulados pelo teto, o mais provável é que sejam buscados novos cortes de gastos com saúde, educação, ciência e assistência. Para se ter ideia: em 2022 o gasto com saúde deverá cair R$ 25 bilhões em relação ao que seria sem o teto de gastos.
Os cortes de gastos sociais representam a continuidade do programa de transferência de renda pró-ricos iniciado no governo Temer, agora expandido no governo Bolsonaro. A redução desses gastos diminui indiretamente a renda dos brasileiros mais pobres, que são mais dependentes dos serviços públicos de saúde, educação e assistência. Ou seja, novamente, retira-se dos mais pobres para dar aos mais ricos.
A Petrobras é uma empresa de capital misto, de controle estatal, que lida com um ativo estratégico (energia com matriz em petróleo) e cujo acionista majoritário ao longo de seus mais de 50 anos de história foi o povo brasileiro, financiador do Tesouro via impostos, que assim conformou a vasta parte do capital social da empresa. Portanto, não se espera que se comporte como uma empresa privada típica. Não se espera, aliás, que o povo, acionista majoritário da Petrobras, não seja considerado seu acionista e usufrua de uma outra política de preços da companhia.
Além de buscar a geração de lucros, ela deve buscar também gerar outros benefícios para a sociedade. Dentre os efeitos positivos que gera, chamados de externalidades, está o fortalecimento da cadeia produtiva nacional, motivando a elevação do investimento, do emprego e da inovação. Em especial, destaca-se seu importante papel na regulação dos preços dos combustíveis, de forma a evitar as inúmeras externalidades negativas que estamos vendo se desenrolar diante de nossos olhos.
Será que não teria sido mais eficiente o governo ter adotado uma política de preços diferente na Petrobras para controlar os preços dos combustíveis? Será que não teria sido mais barato para os cofres públicos subsidiar um fundo de estabilidade de preços, que resultariam em preços menores de combustíveis e evitariam a aceleração da inflação, que traz consigo custosos aumentos dos juros e da dívida, e queda do crescimento e do emprego? Em tempo: será que não teria sido melhor adotar uma regra de gastos diferente, que tivesse protegido gastos sociais e permitido investimentos voltados a tornar nossa matriz energética e de transportes menos dependentes de combustíveis fósseis nos últimos cinco anos, uma urgência dada a emergência climática?
Em vista dos elevados custos (fiscais e sociais) das políticas de preços da Petrobras e de controle de gastos, tudo indica que as alternativas mencionadas acima seriam, sim, mais eficientes e gerariam melhores resultados que a política atual. A inflação estaria mais controlada, os juros menores, enquanto o crescimento, o emprego e os gastos sociais estariam um pouco maiores. Mas aí não haveria Auxílio Mercado: um dos maiores programas de transferência de renda pró-ricos do mundo.
Para o povo brasileiro fica a inflação, a fome, o desemprego e o desamparo. Para os brasileiros mais ricos, ficam ganhos bilionários de juros e dividendos.
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