“Queremos privilegiar os pequenos produtores de leite”, disse o deputado Major Vitor Hugo em uma audiência pública sobre um PL de sua autoria que muda o Programa Nacional de Alimentação Escolar. O que ele não falou é que a proposta foi construída com grupos do submundo da base bolsonarista ligados ao agro – um público estratégico para a campanha eleitoral de 2022. É, literalmente, um grupo do zap assumindo o papel de legislador por meio do Major para fazer lobby pró-mercado, e não pelas políticas públicas de alimentação escolar.
O que o Major – que até junho do ano passado restringia sua atuação a temas como o “liberou geral” das armas e, mais recentemente, o voto impresso – fez ao pautar a alimentação escolar foi colocar a merenda na mesa, como moeda de troca eleitoral.
Acusado de ter recebido mais de R$ 300 milhões do “orçamento secreto” de Bolsonaro, ele é líder do PSL na Câmara e alimenta o sonho de se eleger governador ou senador nas próximas eleições. Porém, para alcançar a vitória, precisa conquistar votos em Goiás. O estado é o quarto maior produtor de leite do país – é em território goiano, por exemplo, que fica a maior empresa de laticínios do Brasil, a Piracanjuba, que desbancou a Nestlé no último ranking da Associação Brasileira de Produtores de Leite.
O PL, que foi aprovado na Câmara dos Deputados em maio deste ano, prevê a retirada da prioridade de comunidades indígenas e quilombolas na venda de alimentos à merenda e abre brechas para o desrespeito da cultura alimentar local. Mas sua mudança mais importante é a inclusão da obrigatoriedade de que 40% das compras de leite, realizadas com recursos transferidos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação para o PNAE, sejam de leite em forma líquida, adquiridos sem licitação – não há dados sobre a proporção atual.
Para entender como a merenda virou escambo, acompanhamos por meses grupos de empresários bolsonaristas da cadeia leiteira no Facebook e Telegram, e encontramos os verdadeiros proponentes do PL do Major e de outras iniciativas do parlamentar em Brasília, como a Frente Parlamentar em Apoio ao Produtor de Leite, a FPPL, lançada em outubro último.
República do toma lá, dá cá
Em uma publicação no Facebook, em maio deste ano, o produtor e líder do grupo Construindo Leite Brasil, Joel Dalcin, parabenizou os deputados que defenderam o PL do Major. Dalcin postou uma lista dos que votaram contra a proposta. Ainda disse: “lembrem dessa lista nas próximas eleições. Apenas o primeiro passo. Lembrando que este projeto de lei foi criado com a participação dos produtores de leite dos movimentos de base Construindo Leite Brasil, Inconfidência Leiteira, Aliança e Ação, União e Ação, Aproveite Goiás”.
Enquanto o Major trabalha em Brasília abrindo as portas para os interesses e encontros das lideranças – Dalcin, Rafael Hermann, Marco Sérgio Batista Xavier e Awilson Viana – com representantes de ministérios e até com o presidente Jair Bolsonaro, Dalcin trabalha na base – em que os grupos a favor do PL fazem campanha para o parlamentar.
É provável que você nunca tenha ouvido falar de nenhum desses grupos, que assumiram posição central nas tomadas de decisão do deputado. Não encontramos nenhum registro oficial deles. Nem um CNPJ e muito menos um estatuto ou ata de fundação. Também não há site oficial. Apenas grupos de Telegram e páginas no Facebook, todos criados de 2018 para cá. Uma publicação do Major Vitor Hugo diz que eles “reúnem milhares de pecuaristas em grupos nas mídias sociais e aplicativos de mensagens”.
Para encontrar mais informações sobre esses movimentos e a relação deles com o Major, precisei acompanhar por meses publicações em redes sociais e no canal do deputado no Telegram. Em comentários feitos por membros dos grupos no Facebook, é possível identificar que nem todos os participantes são, de fato, produtores de leite. Alguns são apenas apoiadores de Bolsonaro. Contudo, os grupos se apresentam como “representantes de produtores e empresários”. Notemos que, no plenário, o deputado os chama de “pequenos produtores”, mas em suas redes, de “pecuaristas”.
O Aliança e Ação e o União e Ação reúnem produtores de Goiás, estado do Major, e são liderados pelo empresário Marco Sérgio Batista Xavier, de Orizona, no interior do estado. Ele também é presidente da Associação dos Produtores de Leite de Goiás, a Aproleite, fundada em 2020. O Inconfidência Leiteira reúne produtores de Minas Gerais, maior produtor de leite do país, e é liderado por Awilson Viana, do município mineiro de Candeias. Já o Construindo Leite Brasil é de âmbito nacional e liderado por Joel Dalcin, de Doutor Maurício Cardoso, no Rio Grande do Sul, e Rafael Hermann, de Boa Vista do Cadeado, do mesmo estado. Tentei contactá-los, mas não obtive retorno.
Dalcin é o que tem mais presença digital – faz mais publicações nos grupos, interage com as publicações do Major no Telegram e aparece em entrevistas no Youtube. Em um vídeo publicado em 2018, ele conta que tem uma propriedade com aproximadamente 11 hectares, em que produz leite há mais de uma década. Em outro vídeo, deste ano, conta que a propriedade chegou a ter sete funcionários e 120 vacas, que eram ordenhadas três vezes ao dia e produziam cerca de 4 mil litros de leite por dia.
Atualmente, em função da crise no setor, causada especialmente pelo aumento dos preços de combustíveis e insumos usados na alimentação dos animais, além da falta de uma política de garantia de preços mínimos que tire o produtor da posição de refém dos preços praticados por grandes laticínios, o rebanho e o quadro de funcionários, diz, foram reduzidos.
Dalcin publicou no grupo do Construindo Leite Brasil, no Facebook, mais de 50 vídeos de produtores apoiando o PL 3.292/2020 – em geral, com até 30 segundos, nos quais as pessoas dizem que apoiam o projeto e citam o nome do deputado. Depois, eles foram transformados em material para as redes sociais do Major, reunidos em um vídeo com trilha sonora emocionante e o logotipo do mandato.
Joel Dalcin também cumpre o papel de compartilhar nos grupos as publicações oficiais do Major.
Já em Brasília, o deputado articulou o encontro de Dalcin, Rafael Hermann, Marco Sérgio Batista Xavier e Awilson Viana com técnicos dos ministérios da Agricultura e da Economia. A reunião consta na agenda oficial do ex-subsecretário de Competitividade e Melhorias Regulatórias, Adriano de Carvalho Paranaíba. De acordo com publicação do site Agro em Dia, também participaram da reunião o subsecretário de Advocacia da Concorrência (área cuja missão é promover a “desburocratização”, ou seja o livre o mercado), Andrey Vilas Boas de Freitas, e um assessor da Secretaria Executiva do Ministério da Agricultura, Luis Rangel. Ainda de acordo com o site, empresários pediram ao governo mais previsibilidade nos preços do leite praticados no mercado, além de isenções fiscais, incentivo à exportação e ações que estimulem o consumo do produto no país.
Nas redes, representantes de todos os grupos, que somam mais de 14 mil membros, fizeram campanha pela criação da Frente Parlamentar em Apoio ao Produtor de Leite, iniciativa do Major. No lançamento da Frente, em outubro, participaram o presidente da Câmara, Arthur Lira; a ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Tereza Cristina; o empresário Marco Sérgio, dos grupos Aliança e Ação e União e Ação, e da Aproleite Goiás, além dos principais coordenadores da Frente: o presidente, Major Vitor Hugo; a vice, Aline Sleutjes, do PSL paranaense, que também preside a Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara dos Deputados; o também vice, deputado Evair de Melo, do PV do Espírito Santo, e o secretário, Ubiratan Sanderson, do PSL do Distrito Federal.
O Major, na ocasião, pediu que Marco Sérgio se levantasse, além de solicitar à plateia uma salva de palmas. Em seguida, disse: “o Marco é, também, um dos grandes responsáveis. Foi quem trouxe, no passado, essa demanda para mim. Eu não preciso fazer qualquer rodeio”. Depois, apresentou o PL 3.292/2020 como outro resultado da parceria, rasgou elogios à Frente Parlamentar da Agropecuária, a FPA, e anunciou Marco como secretário executivo da FPPL, “aquele que vai fazer o planejamento estratégico da Frente”, disse.
Entre os objetivos da frente, estão a proposição e apoio de projetos de lei que promovam a cadeia leiteira e a aproximação desses grupos de produtores com o Congresso.
‘Há uma possibilidade de se abrir a porteira’
O período de tramitação do projeto foi curto. Em junho de 2020, foi apresentado. Em março de 2021, passou a tramitar em regime de urgência – ainda que as urgências da alimentação escolar naquele momento fossem outras, como a garantia da distribuição dos alimentos às famílias de estudantes durante a pandemia. Em maio, portanto, menos de um ano depois, foi aprovado, com 243 votos favoráveis, 177 votos contrários e três abstenções. Agora, o PL aguarda apreciação do Senado.
O deputado Thiago Mitraud, do Novo mineiro, resumiu o cenário da sessão de votação do PL: “não se trata de uma visão da esquerda, da direita, de centro ou o que for. É basicamente de todo e qualquer parlamentar, de todo e qualquer partido, que, minimamente, entende o funcionamento do PNAE e os incentivos perversos que estão criados aqui com esse projeto de lei”.
O texto ameaça pontos sensíveis do PNAE, frutos de anos de construção da legislação que orienta o programa. Hoje, 30% dos recursos repassados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, o FNDE, devem ser destinados à compra direta da agricultura familiar, sendo que as comunidades indígenas e quilombolas têm prioridade. O PL retira essa prioridade.
Hoje, o cardápio da merenda é elaborado por nutricionistas, respeitando a cultura alimentar e a vocação produtiva da região. O PL sugere a “possibilidade de se introduzirem, paulatina e respeitosamente, experiências gustativas que aumentem a qualidade do cardápio”, uma forma mais branda de dizer o que o Major e outros defensores do projeto afirmaram em outras ocasiões. O PL propõe a criação de uma cota para o leite.
“Há uma possibilidade de se abrir a porteira”, ressaltou a deputada federal Talíria Petrone, do PSOL fluminense, na votação. Isso porque há outros projetos de lei em tramitação na Câmara dos Deputados que querem tornar obrigatória a inclusão de um ou outro alimento na merenda escolar – da carne suína, proposta do engenheiro agrônomo e deputado pelo PP do Rio Grande do Sul, Afonso Hamm, até mel e suplemento de vitamina C.
“Isso não é matéria de lei. Se um deputado quer fazer lobby para produtor de leite, vá fazer de outra forma”, criticou na sessão o deputado Daniel Coelho, do Cidadania pernambucano.
O discurso do Major e de outros defensores do PL no Congresso seguiu duas linhas: uma muito típica do bolsonarismo, que é desqualificar o adversário, sugerindo que os parlamentares contrários à proposta ou não tinham lido o projeto ou estavam votando por “birra ideológica”, como disse Carlos Jordy, do PSL fluminense. Outra, que soa muito nova, é a aparente defesa de pequenos produtores e da agricultura familiar.
“Nova”, porque o bolsonarismo anda de mãos dadas com a indústria do agronegócio. “Aparente”, porque já vimos que esses “pequenos produtores” são, na verdade, pecuaristas que não têm nenhuma relação com a agricultura familiar.
Tanto é que os movimentos que representam a agricultura familiar, como a Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares e o Movimento dos Pequenos Agricultores se posicionaram contra o PL. Eles assinaram, junto com entidades representativas de nutricionistas, povos tradicionais e movimentos que defendem o direito humano à alimentação adequada e saudável, uma nota técnica do Observatório da Alimentação Escolar, na qual o PL é caracterizado como uma ameaça.
“Apesar de intencionar uma alimentação com menor nível de processamento – o que as organizações e movimentos que assinam a nota também defendem, de forma alinhada ao Guia Alimentar para a População Brasileira –, ao criar cota específica para a aquisição de um determinado tipo de alimento, a presente proposta abre precedente para uma série de possíveis reservas de mercado, que respondem aos interesses dos mais diversos tipos de lobby”, diz a nota.
Até porque, de acordo com dados do Sistema de Gestão de Prestação de Contas, do FNDE, a maior parte dos fornecedores de leite da merenda não vem da agricultura familiar, que jamais será a prioridade do bolsonarismo.
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