Retrato do economista Eduardo Moreira em sua residência, São Paulo - BR, 29/11/21. Para The Intercept Brasil.

A máquina da morte da extrema direita está literalmente botando fogo em nosso país, enquanto muitos fingem que não.

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Entrevista: ‘Vivemos uma ditadura do sistema financeiro’, diz Eduardo Moreira, ex-banqueiro que agora trabalha com MST

O carioca Eduardo Moreira, que ajudou a 'hackear' o próprio mercado para financiar projetos do MST, vê os bancos como o fator que mais corrói a democracia.

Retrato do economista Eduardo Moreira em sua residência, São Paulo - BR, 29/11/21. Para The Intercept Brasil.

O carioca Eduardo Moreira, de 45 anos, fez carreira no mercado financeiro. Foi sócio de um banco e fundador de outro. Hoje, porém, dedica grande parte de sua energia criticando o trabalho de seus ex-colegas. Já escreveu três livros sobre problemas econômicos que assolam o país e ajudou a “hackear” o sistema ao usar o próprio mercado para financiar projetos do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, o MST.

Conversei com Moreira, que também se tornou youtuber, por cerca de uma hora, entre um compromisso e outro. Para ele, os bancos brasileiros são o que mais corrói e corrompe a democracia do país, abusando do poder de controlar, conforme seus interesses, para onde vão os recursos essenciais para a geração de riqueza no país.

“É como se você tivesse num condomínio com 100 apartamentos, e um morador tivesse ganhado uma procuração de 50 apartamentos para votar por eles na reunião. A gente dá uma procuração aos bancos para ‘votarem’ no país que eles querem”, me disse ele.

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Conhecedor desse controle, Moreira usou o que aprendeu como banqueiro para conseguir que cooperativas do MST tomassem empréstimos diretamente com 1,5 mil investidores a juros baixíssimos. Fez o MST emitir títulos de dívida, os CRA, certificado de recebíveis do agronegócio, um papel que circula pelo mercado financeiro do país.

Na conversa, ele explicou como isso foi possível, como a experiência do MST pode ser replicada por cooperativas de outros segmentos produtivos, além de como o governo poderia – se quisesse – ajudar.

Defendeu também mais regulação do setor bancário. Apontou, inclusive, que a forma como os bancos agem tem algo de perverso. “Você ter um país em pandemia, na segunda semana o governo anunciar um programa de R$ 1,2 trilhão para bancos, e isso demorar para chegar a pessoas e pequenas empresas? Isso é corrupção!”, bradou.

E se é aí que está a verdadeira corrupção, o que explica que bancos e o dito mercado sigam apoiando o governo Bolsonaro, e em especial Guedes, independentemente de quão quebrado esteja o país, disse, são vantagens de sempre. Se eles não estão ganhando dinheiro diretamente nas ações, estão ganhando e muito naquilo que está sendo liquidado a “preço de banana” pelo governo enquanto parte da nação passa fome.

Retrato do economista Eduardo Moreira em sua residência, São Paulo - BR, 29/11/21. Para The Intercept Brasil.

‘O mercado financeiro é onde rico empresta para rico, pobre perde dinheiro para rico e empresta dinheiro para rico também’, diz Moreira.

Foto: Ivan Pacheco para o Intercept Brasil

Intercept – Por que o MST recorreu ao mercado financeiro para buscar recursos?

Eduardo Moreira – O MST, como qualquer um que quer empreender, precisa de recursos. E esses recursos já são obtidos no mercado financeiro. Só que são obtidos por meio de empréstimos dados por bancos a taxas absolutamente absurdas. Só a título de curiosidade: a taxa de juros mais alta cobrada hoje no Brasil é de 965% ao ano. Uma pessoa que pega R$ 10 mil emprestado nessa taxa, em cinco anos, deve R$ 1,5 bilhão. Ninguém tem noção disso! Tem gente que fala que é um contrassenso o MST pegar dinheiro no mercado financeiro. Quem fala isso não tem a menor ideia de como funciona um acampamento ou assentamento. Todo mundo que produz, seja de acampamento, agricultor familiar, seja de qualquer lugar, tem que pegar dinheiro para comprar sementes, ferramentas. Elas pegam dinheiro no mercado financeiro.

Como surgiu a ideia?

O MST, há um ano e meio, precisava pagar uma grande reforma de uma planta de produção de arroz orgânico e carne suína perto de Porto Alegre. Eles tinham resolvido ampliar a planta, mas, com o novo governo, todas as linhas de crédito público para isso foram cortadas. Faltava R$ 1,5 milhão para a reforma. Me perguntaram se eu conhecia algum banco para buscar financiamento. Eu disse: “não vão para o banco, não. Deixa eu juntar uns investidores. Em vez de o nosso dinheiro estar no banco financiando o que a gente nem sabe o que é, a gente quer começar a investir em algo que a gente acredita”.

Investimos em algo que paga uma taxa de juros muito baixa, para ganhar o equivalente ao ganho da poupança, mas que financia a agricultura orgânica, que ajuda famílias a desenvolver uma agricultura familiar, a produzir alimentos que não sejam para exportação, mas para alimentar uma população que passa fome. Fizemos um CRA, certificado de recebíveis do agronegócio, um título de dívida, e uma securitizadora padronizou esse título para ele poder ser comercializado. Primeiro, o MST, na verdade, pegou dinheiro emprestado comigo e outros seis investidores. Fizemos o CRA já para fazer um projeto piloto. Queríamos que esses títulos padronizados, de mercado, levassem dinheiro para as pessoas que não são atendidas pelo mercado financeiro.

Por que não são atendidas?

O mercado financeiro é onde rico empresta para rico, pobre perde dinheiro para rico e empresta dinheiro para rico também. Nunca as pessoas que são mais pobres conseguem acessar dinheiro a uma taxa competitiva. Isso é muito importante. No Brasil, o pobre pega dinheiro a uma taxa mais alta que o rico. O pobre tem menos capital que o rico. O rico, que já tem capital, consegue ter escala na produção. Como o pobre vai ser competitivo? Só consegue essa competitividade com subsídios para compra de materiais, de tratores.

‘O mercado financeiro é onde rico empresta para rico, pobre perde dinheiro para rico e empresta dinheiro para rico também.’

Isso foi cortado. Aí você inviabiliza o pequeno negócio. O pequeno vai quebrando, perdendo todos os negócios dele para os grandes, até o dia em que ele está endividado até a alma e vende sua terra para o grande. O assentado não pode vender, porque não tem a posse da terra, que é da União. O que o governo quer agora? Dar o título para que ele venda para um grande. Por isso o MST é contra a titulação [de terras em nome dos assentados].

A ideia de criar um título da dívida do MST foi testar o modelo em outras operações?

Sim. Inauguramos no Brasil o conceito de financiar o mundo que acreditamos. Depois da primeira operação, tínhamos um novo desafio: fazer com que todo mundo pudesse fazer isso. A primeira operação, para poder sair rapidamente, foi para investidor qualificado, que tem pelo menos R$ 1 milhão em investimentos. E eles, em tese, estão mais acostumados com risco, e não vão ser destruídos se perderem dinheiro com esse investimento. Há menos exigências da CVM [Comissão de Valores Mobiliários].

Mas queríamos o Brasil inteiro fazendo isso. Resolvemos então fazer uma segunda operação disponível para o pequeno investidor. Há uma instrução da CVM que exige uma infinidade de informações, de licenças, de alvarás, para mostrar que todas as atividades que serão financiadas são 100% legais e regulares, para proteger o pequeno investidor. Foi feito um documento de mais de 600 páginas que quebrou todo um argumento de que o MST é um banco de terroristas. Passou-se pelo maior de todos os crivos. Aí fizemos essa segunda emissão, aberta para todo mundo. Perguntamos: “quem topa investir, sabendo que vai receber menos financeiramente, mas vai receber mais em retorno para o mundo?”

Houve resistência do mercado a essa ideia? 

Muito repórter perguntava: “mas essa operação tem um retorno menor. E aí?”. Eu digo sempre: tem um retorno financeiro menor, mas retorno é algo muito além da taxa de juros. Adianta comprar um arroz que desmata, que faz propaganda antivacina, que tem milícia de fazendeiro, que exporta para outro país e pagar R$ 0,10 a menos? O que é retorno? O que volta do investimento? Essa operação tem um retorno inédito. Essa operação foi pequena, de R$ 17,5 milhões, mas deu retorno a 13 mil pessoas do MST.

Quantas pessoas compraram o título da dívida para financiar o MST?

Os títulos foram divididos entre dois tipos de investidores. Um comprou R$ 3 milhões em cotas subordinadas e outros  puderam comprar R$ 14,5 milhões em cotas seniores. O que é uma cota subordinada e uma cota sênior? Suponhamos que 10 pessoas emprestem R$ 100 cada para um indivíduo que precisava de R$ 1 mil. Se essa pessoa devolve só R$ 500, cada um que emprestou deveria receber R$ 50, certo? Mas, se entre essas 10 pessoas, você tiver cinco que comprem uma cota subordinada e cinco que fiquem com a cota sênior, antes de impactar a cota sênior, você come toda a cota subordinada. Se o indivíduo deixar de pagar R$ 500, quem tem cota subordinada perde tudo e todo mundo com cota sênior recebe. É uma proteção.

Nesta operação do MST, se você tivesse uma inadimplência de R$ 3 milhões, o pequeno investidor não perdia nada. Cinco mil pessoas abriram conta na corretora para investir nessas cotas, e 1,5 mil conseguiram efetivamente investir [média de R$ 9 mil por investidor efetivo], porque só havia R$ 14,5 milhões disponíveis para serem vendidos. Isso é incrível. Uma operação ligada ao MST, sem propaganda, com uma taxa de 5,5% ao ano, quando o governo já tomava empréstimos a 11%. É histórico no mundo. Uma cooperativa captar dinheiro por cinco anos numa taxa que é metade da taxa livre de risco no país, que é a taxa da emissão da República. E isso poderia ser feito com cooperativas de pescadores, de artesãos, pode ser geograficamente estabelecido, ou seja, investido na cidade ou comunidade delas.

Entrevista: ‘Vivemos uma ditadura do sistema financeiro’, diz Eduardo Moreira, ex-banqueiro que agora trabalha com MST

Moreira usou o que aprendeu como banqueiro para conseguir que cooperativas do MST tomassem empréstimos diretamente com 1,5 mil investidores a juros baixíssimos.

Foto: Mauro Pimentel/AFP via Getty Images

Como isso poderia ser ampliado? 

Hoje, no Brasil, existem cerca de R$ 4 trilhões investidos em fundos, poupanças, etc. Se tivermos 5% desse valor, teremos R$ 200 bilhões para financiar produção sustentável. Isso não é doação, não. Tem retorno. Se isso fosse uma política de estado, se tivéssemos o governo investindo na cota subordinada, teríamos muito recurso para investimento a custo zero do orçamento. Isso não é gasto. O governo vai receber de volta.

Tem quase R$ 5 trilhões nos bancos que poderiam ser usados para tudo que é necessário no Brasil. Isso não acontece, porque quem decide o que fazer com esse dinheiro são os bancos. Eles que escolhem emprestar para as mesmas famílias, os mesmos latifundiários –até porque os bancos, muitas vezes, são sócios desses negócios todos. Quando você tira esse poder dos bancos, você destrava a economia e tem um ganho enorme até em democracia, pois há uma distribuição de poder. O poder de escolha de onde a riqueza do país será empenhada é um poder democrático, que afeta diretamente os rumos do país.

‘Quem mais alimenta desigualdade e privilégios é o sistema financeiro.’

O governo decide fazer um programa para incentivar a indústria tecnológica, mas tem R$ 3 milhões para emprestar. Peraí, não tem dinheiro no país? Claro que tem. Tem R$ 5 trilhões. As pessoas não poderiam financiar esse programa? Poderiam, mas os bancos não deixam. Eles querem essa procuração para votar no país que eles precisam.

A operação do MST foi um grande sacolejo. Gerou um monte de críticas. Tentaram boicotar. Por que essa preocupação? Porque ela foi um golpe frontal na estrutura do sistema financeiro brasileiro, que, na minha opinião, é quem mais corrói e corrompe a democracia e economia brasileira. É o maior câncer do Brasil. Quem mais alimenta desigualdade e privilégios é o sistema financeiro.

Como assim?

Um dos maiores problemas que temos é o acúmulo de poder entre aqueles que são donos de instituições financeiras. O sistema financeiro do Brasil é concentrado. Os cinco maiores bancos do Brasil detêm cerca de 90% dos ativos do setor: os títulos, ações, títulos da dívida pública, etc. Se formos olhar só para a dívida pública, quase 90% dela – cerca de R$ 5 trilhões – é controlada nos escritórios dos principais bancos e corretoras do país..

Mas esse dinheiro não é dos bancos. Ele está no bancos. O dinheiro é teu, é meu, da dona Maria e do José. A questão no Brasil é que, em vez das pessoas terem essas dívidas diretamente, elas dão o dinheiro para o banco, para ele comprar essa dívida. Só 1,5% da dívida brasileira está nas mãos de pessoas físicas. O cliente compra um CDB, ou um título no banco. O banco precisa rentabilizar esse dinheiro e compra dívida pública. Só que o cliente poderia não usar esse intermediário. Esse intermediário cobra uma fortuna, mas não só.

Aqui, a gente vai chegar no principal entrave para o desenvolvimento brasileiro: a gente delega o mundo que a gente quer para ser escolhido pelos bancos. Se 90% da dívida é controlada pelo bancos, quando o governo diz que vai passar uma reforma, vai furar o teto de gastos, vai mudar a Lei de Responsabilidade Fiscal, começa a chantagem dos bancos: “se você fizer isso, a dívida vai ter taxa mais alta, porque o risco país vai aumentar”. O banco toma essa decisão com dinheiro que não é dele. Ele escolhe o que vai passar ou não. Esse grupo decide o rumo do país, decide o que vai ser feito. É como se você tivesse num condomínio com 100 apartamentos, e um morador tivesse ganho uma procuração de 50 apartamentos para votar por eles na reunião. Ele é dono de um apartamento, mas manda no condomínio. Pode ser um ditador, decidir todas as regras, já que tem uma procuração para votar por todos. É isso que a gente faz no sistema financeiro do Brasil. A gente dá uma procuração aos bancos para “votarem” no país que eles querem. E aí, a gente vive uma ditadura do sistema financeiro. Muitas pessoas que se dizem ambientalistas têm seu dinheiro emprestado para uma mineradora. Muitos pacifistas podem estar emprestando dinheiro para uma fabricante de armas. Muitos camponeses, pressionados pelo avanço do agronegócio, podem estar emprestando para os latifundiários sem saber.

Para a operação do MST dar certo, é preciso que investidores abram mão de um ganho que poderiam ter com outros investimentos?

Ganhar o quê? Ganhar dinheiro! A nossa lógica coloca todo ganho e perda como uma coisa só. O retorno no nosso investimento é uma coisa só, seja ele financeiro ou de outra qualidade. Os bancos se beneficiam dessa lógica de que ganhar é só ganhar dinheiro e de que retorno é só retorno financeiro. Isso é só um pedaço da história. Tinha gente que dizia que nossa taxa de retorno deveria ser maior, entre 7% e 8% ao ano. Para o MST ainda seria bom. Já os investidores iriam ganhar mais. Mas eu fazia questão de que o retorno para o investidor fosse baixo, exatamente para a gente não entrar em nenhum tipo de disputa ou raciocínio de risco contra retorno. Se você entra nessa lógica, a pessoa não para para pensar. O investidor tem que ter esse choque. Está claro que ela está abrindo mão de retorno financeiro. Então, a pessoa quer ter retorno em outro lugar. E existe retorno em outro lugar.

Há suficientes pessoas dispostas a abrir mão disso e financiar algo em maior escala?

A primeira operação foi piloto. A segunda foi [para] demonstrar que existe o interesse das pessoas e que isso é escalável. Daqui em diante, acho que é impossível isso crescer sem ajuda dos bancos estatais. Essa é uma operação que tira poder dos bancos privados. E tira o maior poder de todos, que é decidir para onde vão ser destinados os recursos que estão nesses bancos. Então, não teremos ajuda dos bancos privados. Isso não quer dizer que não vamos mais fazer operações desse tipo sozinhos. Mas vamos crescer no ritmo que dá para crescer organicamente e sendo atacado pelos grupos mais poderosos do país, que serão incomodados por isso. A mensagem da operação é de que dá para fazer R$ 100 bilhões em títulos, mas precisa ter interesse.

Por que os bancos públicos são importantes?

Eles podem comprar as cotas subordinadas e, principalmente, podem dar capilaridade às operações. Todo mundo no Brasil saberia das operações, poderia comprar cotas. Você vai na Caixa e compra um título do MST. Imagina um presidente da República e os presidentes de bancos públicos dizendo que vão criar um tipo de investimento transparente em que pessoas vão financiar, com garantias, as atividades que elas querem financiar no país.

Retrato do economista Eduardo Moreira em sua residência, São Paulo - BR, 29/11/21. Para The Intercept Brasil.

Para o ex-banqueiro, o sistema financeiro atual cria um mecanismo de transferência de riqueza das pessoas para os bancos.

Foto: Ivan Pacheco para o Intercept Brasil

Levando essa experiência do MST em conta, dá para dizer que o mercado financeiro não é tão ruim assim?

O mercado financeiro existe em qualquer país. Não sou contra o mercado financeiro. Sou contra a forma de atuação dele e do poder que ele acumula no Brasil. Em todo lugar em que há banco, dinheiro e pessoas que negociam coisas por valor monetário existe mercado financeiro. Ele deveria servir para que quem tem capital em excesso e não tem capacidade de transformá-lo em produção possa deixar fluir esse capital improdutivo para aqueles que têm capital em falta e podem produzir riqueza, o que beneficiaria a todos. É como se fosse um mecanismo de estradas onde fluem as riquezas dos que têm e não usam para os que sabem usar e não têm. Essas estradas, no esquema capitalista, são privadas, e os donos das concessões são os bancos. Os bancos são remunerados como num pedágio. Toda vez que a riqueza passa por ali, ele cobra uma taxa.

‘O sistema cria uma escravidão financeira de pessoas que ficam a vida inteira devendo.’

Existem países em que os “pedágios” são um pedaço pequeno da riqueza que circula pelas estradas, estimulando um tráfego cada vez maior. Vale a pena circular pela estrada. No Brasil, se você é pobre, você passa com seu caminhão pelo “pedágio”, e ele te toma o baú inteiro que você está carregando. Sai do “pedágio” com o caminhão vazio. Não faz sentido ter “estrada” assim. Aqui, a taxa média de empréstimo é de quase 50% ao ano. Que negócio tem um retorno acima desse? Não existe! Como vai ter um sistema de crédito estimulando a produtividade? Se o “pedágio” pega mais riqueza que o caminhão pode carregar, não faz sentido transitar caminhão pelas estradas. A taxa de juros é maior do que a taxa de riqueza que pode ser gerada. Logo, o sistema não serve para estimular a produção. Serve para sequestrá-la e criar dependentes financeiros.

Que dependência é essa?

O sistema cria uma escravidão financeira de pessoas que ficam a vida inteira devendo. Você cria um mecanismo de transferência de riqueza das pessoas para os bancos. Isso ocorre de duas maneiras: a óbvia, que é quando alguém compra uma televisão de R$ 1.000 no crediário de uma loja de departamento, passa a vida inteira pagando essa televisão e, depois de pagar R$ 10 mil, ainda deve R$ 30 mil; e tem a maneira por meio do estado. Você pega a dívida pública, que é detida pelas pessoas mais ricas do país, tem uma das taxas de juros mais altas do mundo, e você paga os juros dessa dívida com dinheiro dos impostos, que no Brasil são maiores sobre o consumo. O pobre paga mais, proporcionalmente. Essa dívida é igual à de crediário. Há uma década, ela era R$ 1 trilhão. Nesse tempo, o Brasil pagou uma vez e meio essa dívida e ainda deve R$ 5 trilhões. No crediário e na dívida pública, os beneficiados são os mesmos, os ricos, e os prejudicados são os pobres.

É possível quebrar esse sistema perverso utilizando o próprio sistema?

A solução que criamos para o MST é hackear o sistema. É usar o sistema que existe para mudá-lo. Agora, tem que existir soluções que mudem o sistema. Os bancos no Brasil têm que ter um limite máximo de juros que podem cobrar. Isso existiu até a Constituição de 1988. A partir de um certo percentual de juros, as dívidas são impagáveis. É como decretar uma pena de morte para a vida financeira da pessoa.

O banco diz que o juro é alto por causa da inadimplência.

Há dois erros conceituais gigantes nesse conceito. Primeiro, a falta de causalidade. Duas coisas acontecem ao mesmo tempo, logo uma é a causa da outra? Não! Uma dívida com uma taxa de 500% é impagável. Então, a inadimplência é pela alta taxa de juros, e não é que a taxa de juros é causada pela inadimplência. Se uma dívida é impagável, é claro que haverá inadimplência. O segundo argumento é que uma taxa de 500% ao ano destrói a vida de qualquer um. Não é aceitável que, para compensar os que não pagaram, você destrua a vida de todos que pagam. Deveria haver algo que determine que a taxa de juros pode ser de, no máximo, cinco vezes a taxa Selic. Só isso já seria uma maluquice, uma baita taxa. Mas os bancos não aceitariam, porque isso colocaria um limite no poder que eles têm sobre a vida das pessoas.

Haverá eleição no ano que vem. Há alguma candidatura que apresenta solução para esse problema do sistema financeiro?

O projeto de Ciro Gomes e de Lula, em termos de projeto, endereçam essa questão. Diria até mais. Apesar de no social, o programa do PT ser mais elaborado, na questão econômica, o programa do PDT confronta mais essa lógica do mercado. Eu tenho um ótimo relacionamento com os dois partidos. Me sinto à vontade para falar. Gostaria de ver o programa do PT mais desafiador dessa lógica do sistema, mesmo entendendo toda a dificuldade de desafiar o sistema. E acho que o programa do PDT precisa abraçar causas como a do racismo estrutural, dos programas sociais que deram certo.

Entrevista: ‘Vivemos uma ditadura do sistema financeiro’, diz Eduardo Moreira, ex-banqueiro que agora trabalha com MST

Segundo o economista, a manobra feita pelo MST para captar recursos pode ser reproduzida por outras cooperativas, como a de pescadores e de artesãos, e até ser geograficamente estabelecida, garantindo o investimento na cidade ou comunidade delas. 

Foto: Pedro Ladeira/Folhapress

Lula já esteve no governo, e os bancos ganharam muito com isso. Ele quer mesmo resolver essa questão?

Lula teve que viver um acordo tácito com o setor financeiro para poder governar e não foi capaz de fazer as reformas que eram importantes. Eu digo que, nos governos do PT, o dinheiro não chegou aos pobres para ficar. Ele passou pelos pobres. Se você não muda a estrutura do modelo, o dinheiro não chega e fica com os mais pobres. Ele simplesmente passa, para depois voltar para os ricos, por meio de todos os mecanismos existentes: juros altíssimos ou o fato de não ter acesso ao capital, seja ele terra, máquina ou conhecimento. Se o Lula foi convencido pelo sistema financeiro de que ele não deveria mudá-lo ou se ele precisou agir assim para poder fazer outras coisas no social, por exemplo, isso não tenho como avaliar. Eu torço para que, se ele for eleito, ele tenha experimentado que é impossível o Brasil seguir assim, se não mudar essa farra do setor financeiro.

O fato de os programas do PT e do PDT não se juntarem deixa o Brasil à mercê do sistema?

É um erro da esquerda imaginar que o problema do Brasil é a briga entre Ciro Gomes e Lula. A esquerda acredita nisso. E é tudo que a direita quer é que a esquerda acredite nisso. Quem dera o problema fosse esse. Quando você soma as cadeiras do Parlamento e vê quantas o partido do Ciro e do Lula têm juntos, você vai ver que eles não têm um sétimo do todo. Se eles tivessem juntos, seria bom, mas não resolveria nosso problema. Ele é muito maior que isso. O que eu mais queria na vida é que os dois se relacionassem de uma forma diferente. Vou lutar para isso. Mas o problema é muito maior e diferente.

Qual é o real problema, então?

Assumir os verdadeiros protagonistas da corrupção no Brasil. A corrupção política é super importante, tem que ser combatida. Agora, você ter um país em pandemia, na segunda semana o governo anunciar um programa de R$ 1,2 trilhão para bancos, e isso demorar para chegar às pessoas e pequenas empresas? E demorar para aprovar um auxílio emergencial? Isso é corrupção! No auge da pandemia, no pior semestre das últimas décadas, os bancos lucraram R$ 40 bilhões. Isso é corromper o sistema. Essa é a verdadeira corrupção. Quando você tem uma discussão sobre saneamento, reforma administrativa, em todos os canais da grande mídia só há notícia que favorece o banco e a seguradora que pagam anúncio. Isso é corrupção! Essa corrupção da grande mídia, da ajuda que só vai para grandes bancos, do crédito que só tem para quem é amigo do Guedes [Paulo Guedes, ministro da Economia], que quer desmontar o sistema de saúde e educação para trocar por voucher que será usado em empresas de amigos, essa é corrupção que destrói o país. Precisamos falar disso sem medo. Dizer que não pode ter um lucro de R$ 40 bilhões enquanto o PIB brasileiro caiu 30% em dólar. Não pode! Tem que ter regulação, limite, interferência do estado. E cada vez mais, as pessoas que são donas da “casa grande” estão defendendo desregular mais.

Guedes é o maior representante do mercado, da Faria Lima, no governo. Por que ele está no governo?

Quando a eleição aconteceu, o candidato preferido da Faria Lima era o Alckmin [Geraldo Alckmin, do PSDB]. Ele acabou tendo uma candidatura que se mostrou inviável. Quando a de Bolsonaro se mostrou viável para ganhar da centro-esquerda, o mercado resolveu abraçá-lo. Ele funcionava como um representante da Faria Lima, mas não um representante ideal. Guedes nunca foi um cara que gozasse de grande prestígio no mercado financeiro. Ele não tem nenhuma publicação famosa, artigo famoso, nenhum livro famoso. Como economista, nunca foi bom prevendo o que iria acontecer e, como operador, sempre foi péssimo. Sempre perdeu muito dinheiro. Era essa a fama dele no mercado. Mas era a única opção disponível para a Faria Lima enfrentar a esquerda ou centro-esquerda.

A economia brasileira, incluindo a financeira, a Bolsa de Valores, vai mal. Há seis meses, o Ibovespa estava com 130 mil pontos. Hoje, está com 105 mil. Por que, mesmo assim, o tal mercado mantém o apoio a Guedes?

Quando a gente pega a Bolsa e analisa desde o começo da pandemia até agora, seja computando em real, seja em dólares, ela é a pior de todas as economias relevantes do mundo. Todas as bolsas subiram muito porque, nesse cenário de crise, os governos injetaram muita liquidez, e isso acaba inflacionando os ativos financeiros. Mas a economia brasileira se destaca como a pior de todas as bolsas. Mesmo assim, o mercado mantém o apoio a Guedes, porque, se ela [a economia] não está ganhando dinheiro nas suas posições líquidas, nas ações, ela está ganhando muito dinheiro naquilo que está sendo liquidado a “preço de banana” pelo governo. Guedes está vendendo ativos públicos, do estado ou de estatais a preços ridiculamente baixos, no pior momento da crise. Ou seja, está entregando. Um bom exemplo é a TAG, empresa da Petrobras, que foi vendida pelo equivalente a três anos de receita que ela gera. É este o nível em que o Guedes entregando os ativos para o mercado financeiro, que, é claro, está super feliz. Há o fato também de ele conseguir encaminhar essas reformas trabalhista, previdenciária e administrativa, que diminuem o custo da mão de obra para a iniciativa privada representada pelo mercado.

Apesar de todos os rompantes autoritários do presidente, o mercado também parece estar sempre disposto a perdoá-lo.

Na área econômica, esse governo está fazendo absolutamente tudo que esse mercado quer: vender o público a preço de banana, tirar o público para se transformar em privado por meio de reformas administrativas e privatizações, dar todo auxílio financeiro de que o mercado precisa, quando ele precisa. Quando houve a pandemia, demorou duas semanas para o governo anunciar um pacote de mais de R$ 1 trilhão para o mercado. Demorou meses para anunciar ajuda aos trabalhadores e a micro e pequenas empresas. Trabalhadores e pequenas empresas pagam o preço disso até hoje. Já os bancos, que receberam ajuda no logo no começo, tiveram lucros recordes atrás de lucros recordes. É por isso que mercado atura Bolsonaro.

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Quando o assunto é a ascensão da extrema direita no Brasil, muitos acham que essa é uma preocupação só para anos eleitorais. Mas o projeto de poder bolsonarista nunca dorme.

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