Frederico Westphalen é uma cidade de 31 mil habitantes no norte do Rio Grande do Sul, a mais de 420 km de Porto Alegre. Apesar do nome germânico, ali predominam os descendentes de italianos. Uma população tranquila e ordeira, que se orgulha de ir à missa aos domingos.
Assim como em boa parte das colônias italianas do interior gaúcho, a Igreja Católica exerce grande influência sobre a comunidade local. No caso de Frederico, como a cidade é carinhosamente chamada pelos moradores, a igreja ainda controla o principal grupo de comunicação da região, o Luz e Alegria, dono da rádio mais popular da cidade, de um jornal impresso e de um site. O Conselho da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, a URI, também conta com a participação de autoridades católicas.
Nos últimos anos, a aparente tranquilidade das calçadas frederiquenses foi abalada por uma denúncia de pedofilia contra o bispo da cidade, Dom Antonio Carlos Rossi Keller, assinada por membros da própria igreja. Acima dos padres na hierarquia da igreja, o bispo é o líder regional dos católicos, chefe da diocese de Frederico Westphalen, que compreende 39 paróquias em 56 municípios.
A acusação veio em forma de uma carta redigida por sete padres e cinco fiéis, na qual acusavam o bispo Keller de abusar de meninos menores de idade ligados à igreja. “Pedofilia no interior do clero e do clero com seminaristas”, diz o texto. Sem poder recorrer ao bispo, enviaram a carta, ainda em 2017, ao arcebispo da cidade de Passo Fundo, ao Núncio Apostólico (representante diplomático da Santa Sé em países de grande população católica) e ao Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul.
No texto, eles também reclamavam do esvaziamento das missas, abuso de poder do bispo com outros sacerdotes, falta de transparência no uso do dinheiro recolhido pela congregação e “aproximação intensa com o seguimento radical da Opus Dei”, denominação ultraconservadora da igreja que prega, por exemplo, castigos físicos como forma de autopunição.
Ao menos dois padres que assinaram o documento acabaram afastados da igreja, impedidos de rezar missas e sem os benefícios fornecidos pela instituição, como a contribuição para a Previdência Social, plano de saúde e a côngrua, como é conhecido o “salário” recebido pelos sacerdotes. Um deles enfrenta ainda um processo de expulsão da igreja.
Quatro anos após a denúncia, os signatários não tiveram qualquer resposta por parte do Núncio. Enquanto a igreja preferiu dar pouca atenção ao caso, o Ministério Público abriu um inquérito e, em agosto de 2020, denunciou o bispo Keller por estupro de vulnerável contra o ex-coroinha Lucas Faligurski. Tive acesso com exclusividade à investigação e ao processo, que corre em sigilo.
Para o promotor Gerson Luis Kirsch Daiello Moreira, o bispo se aproveitou de sua “autoridade como bispo” e da “fragilidade afetivo-psicológica da vítima” para cometer os abusos. Os crimes, segundo o MP, ocorreram entre agosto de 2008 e fevereiro de 2010, quando o ex-coroinha tinha 13 e 15 anos.
A denúncia aponta ainda os crimes de lesão à saúde e coação no curso do processo em função das punições aplicadas a Claudir Miguel Zucchi, um dos padres que assina a carta. Para o MP, as penalidades impostas a Zucchi, que pode ser expulso da igreja, serviram para desencorajar outros possíveis denunciantes.
O juiz da comarca local, porém, rejeitou a denúncia, alegando que parte das condutas imputadas ao bispo não caracterizavam crime e que as demais condutas não teriam sido descritas de forma satisfatória pelo Ministério Público, o que representaria “violação do contraditório, da ampla defesa e da necessidade de uma acusação certa”. O MP recorreu. Em junho deste ano, o caso foi encaminhado ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, onde aguarda julgamento.
‘Paz e harmonia’
Meses depois da carta que deu início à investigação do MP, ainda em 2017, circulou pela cidade outro texto. Dessa vez, em defesa do religioso. Era assinado por cerca de 20 pessoas, entre empresários, presidentes de associações, funcionários da rádio comandada pela igreja e até mesmo pelo prefeito José Alberto Panosso, do MDB, reeleito em 2020.
A segunda carta não faz qualquer menção às suspeitas de pedofilia, apenas afirma que a diocese está “em paz e harmonia” e defende o trabalho do bispo “de alma pura, coração bondoso e ações predominantemente evangelizadoras”. Ainda afirmava que as missas tinham bom público.
Conversei com dois dos signatários, que disseram não saber a finalidade do documento. Sobre a denúncia em si, não quiseram comentar. Falar da igreja parece ser algo bastante delicado para os católicos e não católicos da cidade. É o tipo de assunto que se comenta em voz baixa, quase em tom confessional.
Keller chegou à cidade em 2008, vindo do estado de São Paulo. O bispo forasteiro logo chamou atenção por manter hábitos diferentes de seus antecessores. Trazia a tiracolo um rapaz de 18 anos que morava com ele e o ajudava nas tarefas da igreja. Keller também tinha como costume levar adolescentes ligados à igreja para viver com ele, o que também não ocorria antes.
Entre os meninos do seminário, que estudam para se tornarem padres, morar com o bispo era sinal de prestígio e também de conforto: na lista dos agrados do religioso aos jovens estavam viagens, geladeira farta e presentes, que chegavam a celular, notebook e até um cheque em branco – coisas que as famílias dos seminaristas, no geral formadas por gente simples do interior, não poderiam lhes oferecer.
O bispo, relataram moradores e religiosos com quem conversei, era muito próximo e carinhoso com os jovens. Na cabeça de adolescentes interioranos criados dentro da igreja, era uma relação quase de pai e filho. Entre os adultos, despertava suspeitas.
Lucas Faligurski, figura central na denúncia do MP, foi o primeiro menino local que morou com o bispo, na residência episcopal. Era provavelmente o mais vulnerável dos coroinhas e cerimoniários, adolescentes que auxiliam os padres e o bispo nas tarefas religiosas. O sonho da mãe era que ele e o irmão se tornassem padres, mas ela morreu quando ele tinha cinco anos. O pai era distante e trabalhava viajando. O jovem acabou sendo criado por um casal de tios beatos da igreja. Na única vez em que inocentemente atribuiu à tia a relação de maternidade, um tapa bem dado no pé do ouvido lhe ensinou que mãe só há uma.
Passados mais de dez anos, o nome Lucas ficou só no documento. Após um processo de transição de gênero, hoje se reconhece como mulher e atende pelo nome de Tainá D’Oyá. É mãe de santo de batuque, vertente gaúcha da religiosidade de matriz africana.
Tainá me recebeu na sala de sua casa, em Frederico, que funciona também como centro religioso, onde presta atendimento espiritual. Ela me contou que, logo ao chegar à cidade, o bispo teve a ideia de criar um grande grupo de meninos para serem seus ajudantes.
“Aceitei participar. No outro dia, teve missa de manhã, e o bispo já demonstrou muito interesse, começou a me ensinar a mexer no missal, antes mesmo de formar o grupo. Nisso, já começou a me levar para tomar café da manhã na casa dele”, narrou.
Na época, tinha 13 anos. O bispo Keller, 55. O menino virou mestre de cerimônias e passou a acompanhar as viagens do religioso pelas paróquias da diocese. O bispo, conta, lhe dava presentes. Ganhou roupas, dinheiro e até um notebook e um celular. Para o MP, os presentes serviam para “cativar e premiar o silêncio às investidas libidinosas do denunciado”.
Após algum tempo, relembra, as carícias, aparentemente inocentes, foram se tornando mais frequentes. Carinhos na mão, na perna, abraços com a cabeça do jovem encostando no peito do bispo. Em 2008, dois meses depois de ter completado 14 anos, teria ocorrido a primeira investida sexual do religioso.
“A mãe dele tinha vindo para a cidade, e ele a levou para conhecer o monumento do Martírio dos Beatos. Na volta, ele me agarrou pela primeira vez. Eu nem tinha minha sexualidade resolvida ainda. Ele disse que queria me mostrar uma coisa no computador, fechou a cortina, trancou a porta e, quando eu sentei na cadeira, ele me levantou e começou a me beijar. Ele falou ‘eu faço isso porque eu te amo’. Eu fiquei assustado”, contou.
Foi o primeiro beijo da sua vida. As investidas prosseguiram. “No escritório dele, depois que a empregada ia embora, ou no carro, me levava para passear e parava em algum lugar. O máximo que rolou foi sexo oral”, recordou.
O menino chegou a morar com o bispo por cerca de um mês, quando deixou a casa da tia após uma briga, aos 14 anos, e procurou o Conselho Tutelar. Logo circularam suspeitas sobre a relação entre os dois, e o adolescente se mudou para a casa de uma família da região, também ligada à igreja. No novo lar e na escola, foi perguntado sobre o bispo pelo casal que o acolheu, mas negou os abusos.
A indicação de morar com o bispo foi do próprio conselho, segundo Tainá. Em depoimento ao Ministério Público, a conselheira tutelar da época, que participa ativamente da igreja, faz elogios ao religioso e diz que não se lembra se Lucas chegou a morar com ele. Sobre o menino, diz recordar apenas de dois atendimentos, sem muitos detalhes. Quando o promotor insiste um pouco mais, ela diz que caiu “do céu” neste caso, “de paraquedas”.
Ela confirma que ouviu boatos de que representantes da Santa Sé estiveram na cidade investigando alguma coisa, mas que ela não sabia o que era e não teve curiosidade em saber.
Hoje, Tainá reconhece que sofreu abuso pelo bispo e acredita que, na época, tenha se apaixonado pelo religioso. “Nunca na vida ninguém tinha dito que me amava”, disse ela.
As investidas teriam ocorrido por cerca de um ano, até que a vítima decidiu dar um basta na história e passou a se afastar do bispo. Tainá contou que, nesse período, membros da igreja, com apoio de seu pai, tentaram lhe internar à força em uma clínica psiquiátrica em Porto Alegre, por meio de um processo judicial.
Sem saber, o adolescente foi levado a uma consulta psiquiátrica, que resultou em um laudo recomendando a internação. No curso do processo, o juiz pediu nova avaliação, por um psiquiatra do município. O segundo exame descartou a necessidade de internação e recomendou tratamento no Centro de Apoio Psicossocial da cidade.
Tainá acredita que o objetivo da interdição era evitar que o caso ganhasse repercussão. “Eles queriam me internar como louco. Queriam se livrar de mim, me tirar do convívio da igreja”.
Ela afirma que nunca tomou a iniciativa de denunciar o bispo, em função do poder da igreja. “Hoje, eu sei que ele usou da minha fraqueza, da minha fragilidade emocional para se aproveitar de mim. Acredito que uma criança jamais se apaixonaria por uma pessoa da idade dele. A gente vê, em casos de pedofilia e estupro, que muitas vezes o agressor se aproxima da vítima, faz carinhos, se faz de amigo… E foi isso que ele fez”.
Tentei conversar com o bispo denunciado, mas ele não quis falar. No depoimento ao MP, acompanhado por um advogado, ele também lançou mão do direito de ficar calado. Keller permanece no exercício de suas atividades na igreja, como bispo regional.
‘Excesso acusatório’
Ao longo da investigação, o Ministério Público ouviu outro jovem que morou com o bispo na adolescência, quando estudava para se tornar padre – seu sonho de infância. O rapaz conta que ganhou diversos presentes e até um cheque em branco dado pelo religioso para comprar um violão.
Ele nega que tenha sido abusado sexualmente, mas diz que hoje vê que havia segundas intenções nas carícias e presentes. A família do rapaz não se convenceu completamente dessa versão. O promotor também chamou a mãe do rapaz para depor. Ela conta que, depois de deixar a casa do bispo, o filho chegou a ser expulso do seminário sem explicação. Nesta ocasião, ouviu do adolescente que algo muito triste aconteceria com a diocese, e ele não queria estar lá para ver.
Nervosa, ela chorou e disse em depoimento em vídeo ao MP ao qual tive acesso que acredita que o filho foi abusado. E concluiu que entregou à igreja um adolescente “que vivia fazendo carinho” e recebeu de volta um jovem “revoltado, agressivo” até mesmo com a própria mãe. A mãe disse ainda que o jovem parece guardar algum segredo muito sério. No depoimento, o rapaz reconhece que, após este período, se tornou “explosivo” e que se irrita muito facilmente, mas diz não saber se a mudança no seu comportamento tem relação com o convívio com o bispo.
Na denúncia apresentada ao Judiciário, o promotor pede que o bispo seja proibido de exercer suas funções durante o processo e que Tainá passe por uma avaliação psicossocial.
O MP enquadrou o bispo no artigo 217-A do Código Penal, que define o estupro de vulnerável como “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos”. Para a promotoria, as carícias iniciadas quando a vítima tinha 13 anos têm relação direta com os abusos sexuais sofridos aos 14. Pediu ainda que a pena seja aumentada em 50%, em função da relação entre agressor e vítima.
Já para o juiz, os fatos ocorridos antes da criação da lei que tipifica o crime de estupro de vulnerável, que é de agosto de 2009, não poderiam ser enquadrados dessa forma. Antes da vigência dessa lei, explica o magistrado, o Código Penal previa que o crime de estupro fosse cometido contra mulher e mediante violência ou grave ameaça.
Quanto aos fatos ocorridos após a vigência dessa lei, segundo o Código Penal, o menor já tinha 14 anos completos e, neste caso, só poderia ser vítima de estupro de vulnerável se não pudesse oferecer resistência.
O MP sustenta a “total vulnerabilidade afetivo-psicológica” do menino, que morava na casa do bispo, dependia economicamente dele e estava submetido a ele em função de sua posição na igreja. Mas, para o juiz local, o argumento é “excesso acusatório”, “porquanto as aludidas fraquezas individuais não são capazes de indicar a incapacidade do então adolescente consentir”..
‘O que qualquer cristão faria’
Também segue sem desfecho a situação dos padres que denunciaram o caso.
Com formação em Teologia e doutorado em Educação, na época da carta-denúncia, o então padre Zucchi era também professor universitário na URI, onde a Diocese tem cadeira cativa no conselho universitário. Alguns meses depois da carta, foi demitido. Ouviu que a demissão foi por questões econômicas, mas não se convenceu da explicação. A universidade afirma que não houve influência da igreja na demissão e que não tem conhecimento de denúncia contra o bispo.
Após o episódio, ele entrou em depressão e precisou de tratamento psicológico. Desde março de 2021, Zuchi enfrenta também um processo de expulsão da igreja. Ele tenta na justiça comum anular seu afastamento. Já processou o bispo por difamação e pediu uma indenização, pois sua suspensão foi publicada na imprensa local – nos veículos do grupo Luz e Alegria.
Ele diz que só fez o que qualquer cristão faria. Em 2019, o papa Francisco promulgou novas regras, que obrigam padres e outros religiosos a denunciarem suspeitas de abuso sexual na igreja e tentativas de acobertá-las. A mudança foi editada por um decreto do papa intitulado “Vos estis lux mundi”, “Vós sois a luz do mundo”, em tradução livre.
Meses depois, Francisco acabou com o sigilo em casos de violência sexual e abusos de menores e vulneráveis por parte de representantes da igreja. O objetivo é acabar com a lei do silêncio que geralmente paira sobre estes casos. A mudança obriga a igreja a cooperar com as investigações.
“Tomamos as medidas que o Vaticano indica, que qualquer um tomaria, como cidadão e como cristão. Ele expôs meu nome no jornal da diocese, na internet. Me suspendeu de padre sem o devido processo canônico. Isso é uma clara represália por eu ter sido uma das pessoas que o denunciaram”, disse o padre.
Mas Claudir Zuchi não foi o único dos denunciantes que sofreu penalidades dentro da igreja. O padre Silvério Klassen, primeiro a assinar a carta-denúncia contra o bispo, também acabou afastado de suas funções.
No mesmo ano em que a carta foi enviada ao Núncio e ao MP, ele recebeu uma “advertência canônica reservada”, assinada pelo bispo Rossi Keller. No documento, escrito em primeira pessoa, o bispo diz ter recebido relatos de “condutas indignas” do padre, como alcoolismo e agressividade com os fiéis. Klassen nega e garante que se trata de perseguição motivada pela carta-denúncia.
Na advertência, Keller determina que o padre renuncie ao cargo de pároco e vá morar “num território fora da diocese”. Em contrapartida, garante que o padre seguirá recebendo a côngrua. Na época das denúncias, Klassen era pároco na paróquia de Santa Catarina de Braga, no município de Braga, que tem cerca de 3,6 mil habitantes e fica na região comandada pelo bispo Keller. Conforme determinado pela advertência, ele renunciou ao cargo e se mudou.
Ainda assim, me disse que recebeu a côngrua somente nos primeiros dois anos. Hoje, vive de uma aposentadoria. “Me jogou fora, como jogou fora outros. Tive de me virar, vim para o Rio de Janeiro”, me contou.
Aos 67 anos, segue vinculado à igreja, mas não cumpre função. Em tom de lamentação, ele encerrou assim nossa conversa: “a nossa igreja é santa e também pecadora, infelizmente”.
Cabe agora aos desembargadores do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul decidirem quão santa foi a atuação do bispo Keller em Frederico.
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