Uma gigantesca mina de ferro e duas barragens com 90 vezes o volume de rejeitos que soterrou parte de Brumadinho em janeiro de 2019 devem se tornar parte da paisagem do Cerrado do norte de Minas Gerais. Da mina sairá uma tubulação para transporte de minério de 478 quilômetros de extensão que chegará ao litoral da Bahia. Trata-se do empreendimento bilionário de uma empresa chamada Sul Americana de Metais, ou SAM, controlada pela Honbridge Holdings, grupo sediado em Hong Kong, na China, que também é dono de empresas de energia, tecnologia e um aplicativo de transporte.
O investimento prometido é de 2,1 bilhões de dólares na extração e beneficiamento do minério e 1,4 bilhão no mineroduto que irá transportá-lo – ou quase R$ 20 bilhões, ao todo. É o equivalente ao valor original da obra da mega-hidrelétrica de Belo Monte (que acabou custando estimados R$ 40 bilhões ao final da obra).
Por ser considerado ambientalmente inviável, o empreendimento estava parado há quase 10 anos no Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis, o Ibama. Não está mais. Em julho de 2019, Eduardo Bim, presidente da autarquia, assinou um parecer que fez o projeto voltar a andar – apenas seis meses depois do desastre de Brumadinho.
Indicado ao cargo pelo ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, Bim delegou ao governo de Minas Gerais o licenciamento ambiental de todo o empreendimento, antes uma atribuição do órgão que ele próprio preside. Também autorizou que os gestores mineiros fatiassem o projeto em duas partes, o que na prática dá a impressão de que os impactos sociais e ambientais serão menores.
Com isso, Bim aumentou significativamente as chances de que o empreendimento saia do papel, algo que dificilmente ocorreria se ele fosse analisado como uma coisa só pelo Ibama. A decisão do presidente de um dos órgãos responsáveis pela preservação do meio ambiente brasileiro contrariou todas as recomendações dadas pelas próprias equipes técnicas, formadas por servidores de carreira.
Os técnicos do Ibama já haviam alertado que o empreendimento iria forçar a remoção de comunidades tradicionais e a supressão de cerca de 70 nascentes d’água numa região em que costuma chover pouco. Além disso, também prejudicaria reservas subterrâneas de água, tecnicamente chamadas de aquíferos, por excesso de demanda.
Para os técnicos, não é possível avaliar separadamente o impacto ambiental da mina e do mineroduto, uma geringonça mais extensa que a Via Dutra, entre Rio de Janeiro e São Paulo, e que deverá atravessar nove municípios mineiros e 12 baianos até o porto de Ilhéus. Isso seria, como comparou um pesquisador do assunto, como comer um ovo cru e em seguida um pedaço de queijo para avaliar o sabor de um omelete.
Mas era exatamente o que desejava a mineradora. E Bim concordou. “É perfeitamente possível que a mina seja licenciada separadamente do mineroduto. Os impactos ambientais são plenamente gerenciáveis de forma autônoma”, diz trecho do despacho assinado por ele.
Para a antecessora de Bim no Ibama, a advogada Suely Araújo, o dispositivo legal usado para delegar o licenciamento do mineroduto apenas a Minas Gerais – mesmo com estrutura passando também pela Bahia – “fragiliza o pacto federativo”. Na prática, o Ibama retirou da Bahia a chance de avaliar que impactos haverá sobre seu território e sua população.
O descaso de quem deveria cuidar da segurança do meio ambiente – que engloba não apenas os recursos hídricos e naturais que serão destruídos, mas também os atuais moradores do local onde a SAM quer enfiar sua mina de ferro – permite que um projeto com erros avance com poucos obstáculos.
Um dos mais flagrantes é a construção de barragens de rejeitos a menos de 10 quilômetros de comunidades, o que vai contra a lei que instituiu a política de segurança de barragens em Minas. Também chamam a atenção os cálculos de consumo de água apresentados pela SAM, obviamente subestimados, segundo um especialista com quem conversei.
A história do ambicioso projeto de mineração no norte de Minas Gerais começou em 2010, quando a SAM fez o primeiro pedido de licenciamento ao Ibama. À época, o projeto ainda se chamava Salinas, em referência à cidade que é tida como capital brasileira da cachaça artesanal e que fica na região. Mais tarde, ele foi rebatizado como projeto Vale do Rio Pardo. Em fevereiro de 2016, o Ibama rejeitou a licença, alegando a inviabilidade ambiental do projeto integral – ou seja, mina e mineroduto.
Em janeiro de 2017, a SAM tentou novamente. Dessa vez, solicitou ao Ibama que dividisse o licenciamento, mantendo o processo do mineroduto no órgão federal – já que ele atravessa os estados de Minas e Bahia – e delegando ao governo mineiro o estudo das demais estruturas. O Ibama negou o pedido, argumentando que a fragmentação “impediria a análise integrada do empreendimento como um todo”.
A solução encontrada pela SAM foi pedir o arquivamento do projeto Vale do Rio Pardo para repaginá-lo. A mina passou a se chamar projeto Bloco 8 e foi submetida a licenciamento junto ao governo de Minas Gerais em abril de 2018. Em dezembro, o mineroduto, batizado de Lotus 1, foi apresentado para licenciamento do Ibama pela Lotus, empresa da qual a SAM é sócia.
A artimanha falhou. Em junho de 2019, o Ibama voltou a afirmar que só seria possível licenciar o mineroduto juntamente com a mina, num único processo. A Lotus, então, fez dois pedidos de reconsideração ao diretor de licenciamento ambiental do Ibama, Jônatas Souza da Trindade.
Foi aí que a sorte da Lotus – e da SAM, sua dona – começou a mudar.
O passo da boiada
“Esse projeto da mineração está há 10 anos para ser licenciado. O que mudou em 10 anos, minha gente? Mudou o índice pluviométrico da região? Está chovendo mais? Os rios estão correndo novamente? O povo se deslocou do lugar?”, questionou a deputada estadual Leninha Alves, do PT, durante uma audiência pública realizada em agosto passado na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Assembleia Legislativa de Minas Gerais. A pauta era justamente o projeto Bloco 8.
A mudança aventada pela parlamentar não ocorreu em Minas Gerais, mas em Brasília: a eleição de Jair Bolsonaro à Presidência da República. Com ele, chegaram ao Ministério do Meio Ambiente políticos igualmente comprometidos com o desmonte das políticas públicas de proteção às águas, fauna, flora e povos tradicionais.
A disposição dos novos dirigentes ambientais brasileiros em colocar o interesse econômico acima de tudo foi bem recebida em Belo Horizonte.
Eduardo Bim assinou o documento com que a SAM sonhou por quase 10 anos em 26 de julho de 2019. Apenas quatro dias antes, o presidente do Ibama havia viajado a Minas Gerais para uma reunião de trabalho de 10 horas de duração sobre o caso. Dela também participam membros do governo mineiro, entre eles o então secretário estadual de Meio Ambiente, Germano Luiz Gomes Vieira.
Um dos pontos da pauta da reunião era uma instrução normativa do Ibama que trata justamente da delegação de licenciamento, assinada cinco meses antes pelo próprio presidente do Ibama. Ela foi a justificativa usada por Bim no parecer que destravou as ambições da SAM.
Germano Vieira era um velho conhecedor das aflições da mineradora sino-brasileira. Ele já havia sido secretário do Meio Ambiente no governo de Fernando Pimentel, do PT, e foi mantido no cargo pelo sucessor, Romeu Zema, do Novo, por quase dois anos – saiu em setembro de 2020.
O ex-secretário do governo petista foi o único ocupante de cargo no primeiro escalão a sobreviver à mudança ideológica promovida pelo eleitorado mineiro. A admiração de Zema, um político de direita, parece se dever justamente à intimidade de Vieira com o negócio da mineração. Segundo reportagem da Repórter Brasil, Vieira era um aliado de mineradoras e da Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais, a Fiemg, lobista do setor industrial.
Em 2014, quando era chefe do gabinete da Secretaria do Meio Ambiente, a Semad, Vieira participou de uma reunião com a Vale em que a mineradora sugeriu mudanças para simplificar as normas de licenciamento ambiental. Em 2017, já secretário, ele incorporou as sugestões da Vale e assinou norma que reduziu etapas do licenciamento ambiental. A empresa se valeu da medida para fazer alterações na barragem da Mina de Córrego do Feijão – justamente a que se rompeu e matou pelo menos 270 pessoas em Brumadinho em janeiro de 2019.
Após a canetada de Bim, o projeto da SAM finalmente começou a se movimentar. Em setembro daquele ano, Romeu Zema, Germano Vieira e o então diretor-presidente do Instituto de Desenvolvimento Integrado de Minas Gerais, o Indi, Thiago Toscano, assinaram um protocolo de intenções com a SAM para viabilizar a implantação da mina de ferro.
Pedi ao governo Zema informações que não estão no protocolo assinado. Perguntei, por exemplo, que garantias a SAM deu sobre a segurança do empreendimento e sobre sua adequação à lei mineira Mar de Lama Nunca Mais, criada após as tragédias de Brumadinho e Mariana, que regula a instalação de barragens de rejeitos e é desrespeitada pelo projeto da sino-brasileira.
A Secretaria de Desenvolvimento Econômico, a Sede, tergiversou. Alegou que detalhes sobre protocolos de intenção são sigilosos, conforme decreto que regula o acesso à informação no governo mineiro. Acrescentou que o protocolo de intenções não garante a viabilidade ambiental de empreendimentos, nem apresenta dispositivo para a concessão de licenças ou autorizações ambientais. Por isso, “não há correlação direta entre o protocolo assinado com a empresa SAM e o resultado do seu licenciamento ambiental”.
Enquanto isso, o projeto da SAM já havia chamado a atenção dos Ministérios Públicos Federal, o MPF, e de Minas Gerais, o MPMG. Um inquérito aberto por eles deu origem a uma ação civil pública, ajuizada em fins de 2019 na 3ª vara da Justiça Federal de Montes Claros. Em julho de 2020, o juiz federal Marco Frattezi Gonçalves decidiu a favor do MPF e determinou que o Ibama era o único órgão competente para realizar o licenciamento da mina e do mineroduto.
Em agosto, entretanto, o juiz Gonçalves abriu uma brecha. Em novo despacho, definiu que não havia impedimento para que o Ibama delegasse o poder de licenciar o empreendimento ao estado de Minas Gerais. No início do mês seguinte, setembro de 2020, a SAM se reuniu, por videoconferência, com Eduardo Bim. A reunião está na agenda do burocrata, que não traz detalhes da pauta tratada.
Finalmente, seis meses depois, em março e abril de 2021, e com base em seu próprio parecer de 2019, Eduardo Bim assinou dois acordos de cooperação técnica com a atual secretária do Meio Ambiente de Minas Gerais, Marília Carvalho de Melo. Os documentos formalizaram a outorga do Ibama ao governo mineiro do licenciamento da mina e do mineroduto.
A previsão de delegação do licenciamento pelo Ibama a órgãos ambientais regionais existe há 24 anos e está numa resolução de 1997 do Conselho Nacional do Meio Ambiente, o Conama, e numa lei complementar, a 140, de 2011. Segundo o próprio Ibama, de 2009 a outubro de 2021, 85 empreendimentos, entre hidrelétricas, rodovias, portos, projetos de mineração e outros tantos, tiveram o licenciamento delegado a órgãos estaduais. Mas isso nunca havia ocorrido para um mineroduto como o da SAM.
A Semad me informou que desde 2011 há processos de delegação de licenciamento em tramitação. Mas a mina da SAM e seu mineroduto são os primeiros casos a serem formalizados em Minas Gerais, graças à assinatura do acordo de cooperação técnica com o Ibama.
A secretaria me disse ainda que, a partir da delegação, tem competência para atuar em Minas e na Bahia, mas que buscou o governo baiano para tratar do impacto do mineroduto no estado vizinho. Procurei a Secretaria de Meio Ambiente e o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia, mas nenhum deles me respondeu até a conclusão desta reportagem.
Menos de um mês após assinar o segundo acordo com a Semad, Bim foi afastado do cargo por 90 dias em medida cautelar do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal. Uma operação da Polícia Federal investiga se Bim atuou para afrouxar as regras e facilitar a exportação ilegal de madeira. O caso foi denunciado, em 2020, pelo Intercept. Ele voltou ao cargo em 19 de agosto passado.
‘Estudos de impacto feitos separadamente são a mesma coisa que comer um ovo cru e depois um pedaço de queijo para dizer que comeu um omelete’.
Suely Araújo, que antecedeu Bim na presidência do Ibama e hoje atua como especialista em políticas públicas no Observatório do Clima, vê problemas técnicos e legais em decisões como a que delegou o licenciamento do mineroduto à Semad. “O controle a ser efetuado pelo órgão de apenas um estado, sem um possível acordo entre eles, pode vir a prejudicar a gestão ambiental do empreendimento”, me falou. O problema está, justamente, na invasão de atribuições legais de um estado por outro. Por ser um órgão federal, o Ibama é quem poderia melhor acompanhar e controlar o cumprimento das obrigações da empresa previstas no licenciamento ambiental nos dois estados.
Araújo diz que pode haver, inclusive, dificuldades operacionais nas vistorias do empreendimento e em eventuais aplicações de sanções administrativas, caso sejam cometidas infrações no estado que não participa do processo de licenciamento.
“Há que se lembrar que o respeito à federação está na essência da Constituição. Tanto é assim que o tema é um dos poucos que configuram cláusula pétrea”, diz Araújo. Ela se referiu a trecho do artigo 60, que diz que não será considerada para deliberação a proposta de emenda que tente abolir a forma federativa de estado.
Para além da delegação, Luis Sánchez, professor da Escola Politécnica da USP e autor do livro “Avaliação de impacto ambiental: conceitos e métodos”, aponta um óbvio problema na fragmentação arquitetada pela SAM e permitida pelo Ibama. “Com avaliação separada, não se analisam os impactos que podem resultar da construção e da operação simultâneas de ambos os empreendimentos. Então, as medidas que possam ser necessárias para mitigar esses impactos – chamados de cumulativos – não são consideradas”.
A avaliação de Sánchez é compartilhada por Bruno Milanez, professor da Faculdade de Engenharia da Universidade Federal de Juiz de Fora e coordenador de um grupo da instituição que discute os impactos da mineração na sociedade e na economia. “Se os estudos de impacto são feitos de forma separada, é a mesma coisa que comer um ovo cru e depois um pedaço de queijo para dizer que comeu um omelete”, comparou Milanez.
A defensora pública Ana Cláudia Alexandre Storch classificou os parâmetros da negociação dos entes estatais com a empresa de “muito permissivos”. “A premissa que está orientando todas as ações estatais, inclusive a do Ministério Público, é de que é necessário levar desenvolvimento econômico para aquela região. Mas não temos nem clima, nem água e nem meio ambiente que possam suportar tamanha exploração sem critérios objetivos”, ela me disse.
Em dezembro de 2021, as Defensorias Públicas da União e do Estado de Minas Gerais ajuizaram ação civil pública contra governo de Minas Gerais, SAM, Lotus, Agência Nacional de Águas e Ibama. Nelas, pedem a suspensão do licenciamento do projeto até que seja concluída a regularização fundiária do território dos geraizeiros impactados. As defensorias alegam que os denunciados estão violando o direito à consulta prévia, livre e informada dos povos tradicionais do Vale das Cancelas.
População ignorada
Em maio de 2021, logo após a assinatura dos dois acordos entre o Ibama e o governo de Minas Gerais, foi a vez do Ministério Público de Minas Gerais, MPMG, entrar em campo – a favor da SAM. O procurador-geral de justiça mineiro, Jarbas Soares Júnior, nomeado por Romeu Zema para chefiar a instituição, assinou termo de compromisso com a mineradora para que ela bancasse os custos de uma equipe técnica que auxilie o órgão a entender os estudos do processo de licenciamento.
Após a assinatura do documento, Zema publicou fotos da solenidade em sua conta no Instagram. No texto que acompanha as imagens, ele dá a concessão da licença ambiental como algo certo e afirma que o empreendimento da SAM será instalado.
O procurador-geral seguiu o exemplo do político: em sua conta pessoal do Instagram, afirmou que o MPMG “está ao lado do desenvolvimento sustentável e, sempre, dos atingidos”. Perguntei a Soares Júnior se as comunidades potencialmente impactadas pelo empreendimento foram consultadas para a formulação do termo de compromisso. “O acordo é exatamente para ouvir a comunidade”, ele se justificou, numa entrevista que me concedeu por chamada de vídeo. Ou seja: confirmou que quem será mais afetado pela instalação do empreendimento não participou da formulação do acordo.
A comunidade acadêmica, que acompanha o caso com atenção, criticou a pressa do MPMG – que tem como uma de suas principais atribuições constitucionais a defesa do direito coletivo. Em nota técnica divulgada pelo coletivo de assessoria jurídica Margarida Alves, grupos de pesquisa – entre eles a Associação Brasileira de Antropologia – disseram ver o empreendimento com preocupação e denunciaram que “nenhuma comunidade teve acesso ou foi consultada quanto ao acordo firmado” pelo procurador-geral.
Soares Júnior é um dos membros do MPMG que, ao lado do Ministério Público Federal, Defensorias Públicas do Estado e da União e do governo mineiro, costurou o acordo bilionário com a Vale como forma de reparação pelo crime cometido pela empresa em Brumadinho. O acordo, assinado em fevereiro de 2021, é alvo de críticas dos movimentos de atingidos pela lama da mineradora. Eles alegam que não foram chamados a participar das negociações e que os termos foram tratados de forma sigilosa.
O Ministério Público mineiro escolheu a Aecom do Brasil para assessorá-lo durante o processo de licenciamento do empreendimento da SAM. A conta da assessoria, como prevê o acordo, será paga pela mineradora sino-brasileira. A escolha foi feita sem licitação, e chama a atenção que o MPMG tenha escolhido a subsidiária da norte-americana Aecom para o serviço. A Aecom presta serviços de assessoria técnica no exterior a gigantes da mineração como Rio Tinto, BHP Billiton (sócia da Samarco, responsável pela tragédia em Mariana) e Anglo American. As duas últimas têm negócios no Brasil. Em 2020, foi contratada pela Agência Nacional de Mineração, a ANM, do governo federal, para fiscalizar barragens de empresas que são suas clientes no exterior, levantando suspeitas sobre um possível conflito de interesses.
Segundo o MPMG, o contrato da consultoria já foi assinado entre SAM e Aecom e já há inclusive um relatório preliminar pronto. Pedi acesso a ambos, contrato e relatório. O Ministério Público saiu-se com uma desculpa que é comum a empresas pouco interessadas com a transparência de seus negócios, mas que chama a atenção por vir de um órgão público. Me disse que o contrato não pode ser lido “por conta da questão sigilosa” e que o relatório não pode ser divulgado, porque “a publicação antecipada poderia prejudicar o andamento das negociações”.
Também pedi à SAM acesso aos dois documentos. A empresa respondeu que “o acordo possui cláusula de confidencialidade, principalmente considerando que os trabalhos são desenvolvidos em prol do MPMG, sendo este o destinatário da avaliação que ainda está em curso, não cabendo qualquer divulgação pela SAM”.
90 potenciais novos Brumadinhos
Um laudo até agora inédito, produzido pelo engenheiro florestal Hugo de Salis, da Universidade Federal de Minas Gerais, aponta que as duas barragens de rejeitos do projeto da SAM devem ser construídas a menos de 10 quilômetros de distância de comunidades. A lei Mar de Lama Nunca Mais, sancionada um mês depois do crime da Vale em Brumadinho, diz que isso é proibido.
De acordo com a lei de 2019, é vedada a concessão de licença ambiental para construção, instalação, ampliação ou alteamento de barragem cujos estudos de cenários de rupturas identifiquem a presença de comunidades na chamada zona de autossalvamento. Essa zona é toda a área existente num raio de até 10 quilômetros de distância da linha de projeção da eventual mancha de lama.
A maior das duas barragens de rejeitos do projeto comportaria quase 900 milhões de metros cúbicos de material poluente. Para efeitos de comparação, a barragem que se rompeu em Brumadinho deixou vazar cerca de 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos. Caso ocorra uma ruptura e os mecanismos de segurança falhem – como em Brumadinho –, em poucas horas a lama contaminaria a bacia do Rio Vacaria, uma das mais importantes da região e da qual dependem quase 2 mil famílias tradicionais geraizeiras. O termo é usado para identificar os habitantes dos campos gerais do norte mineiro, que abrange os municípios de Grão Mogol, Josenópolis e Padre Carvalho.
Mesmo que não haja um rompimento, a simples instalação do empreendimento da SAM irá produzir impactos em comunidades tradicionais nos três municípios. Famílias irão perder as terras em que vivem, casas e até cemitérios serão cobertos pelas estruturas e grandes áreas de Cerrado, um bioma ameaçado, serão destruídas irreversivelmente.
Tudo isso sem que o Ibama possa fazer nada. Graças à estratégia desejada pela SAM e acatada por Eduardo Bim, todos os riscos e danos ambientais do projeto passaram a ser analisados de forma fragmentada, em dois projetos diferentes, pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente de Minas Gerais, a Semad.
“A fragmentação de processos de licenciamento ambiental no Brasil não é fenômeno recente”, me disse Lucas Magno, professor de Geografia do Instituto Federal do Sudeste de Minas Gerais e do programa de pós-graduação em Geografia da Universidade Federal de Viçosa. “Essa é uma estratégia das empresas para ‘agilizar’ a obtenção de licenças e escamotear os impactos socioambientais cumulativos ou integrados”.
A estratégia de fatiar empreendimento também permite que grandes corporações econômicas negociem diretamente com governos regionais ou locais – inclusive prefeituras de pequeno porte, que raramente dispõem de quadros técnicos especializados. “É muito mais fácil convencer esses governos do que os técnicos e analistas ambientais dos órgãos federais. No caso da SAM, ao fragmentar o licenciamento da mina e do mineroduto, ela consegue mobilizar diferentes interesses políticos, em especial aqueles alinhados com os seus”, avaliou Magno.
Se a mina sair, a cidade de Grão Mogol vai ter que decidir se bebe água, toma banho ou produz alimentos. O rio não vai dar conta disso e de abastecer a demanda da SAM.
A mina de ferro que a SAM quer instalar no norte de Minas Gerais tem vida útil estimada em 18 anos, segundo a empresa. Nesse período, a ideia é produzir, anualmente, 27,5 milhões de toneladas de pellet feed, nome técnico de um agregado de partículas finas do minério de ferro.
Nas operações de extração, beneficiamento e transporte do minério, a SAM estima gastar inicialmente 6,2 mil metros cúbicos – ou 6,2 milhões de litros – de água por hora. Toda essa água viria da barragem que a empresa pretende construir no Rio Vacaria. Em contrapartida, a SAM afirma que vai retirar outros 4 mil metros cúbicos de água por hora para consumo da comunidade local e projetos de irrigação.
Esse volume, diz a SAM, é suficiente para o abastecimento de mais de 640 mil pessoas por dia. Levando em conta ainda outros 1,6 mil metros cúbicos de água por hora que a empresa pretende usar na manutenção do nível do Vacaria, já considerados os processos de evaporação, filtragem e extravasamento natural do rio, ao todo, ao longo de 18 anos, a SAM quer gastar um volume de água equivalente ao consumido em Maceió, que tem 1 milhão de habitantes: 11,8 mil metros cúbicos de água por hora, ou mais de 280 milhões de litros de água por dia.
É preciso considerar que a região do empreendimento é semiárida e suscetível à desertificação, de acordo com documento de 2010 do Ministério do Meio Ambiente e do Instituto de Desenvolvimento do Norte e Nordeste de Minas Gerais.
Segundo me informou o Instituto Mineiro de Gestão das Águas, o Igam, entre 2011 e 2020, a vazão média mensal do Vacaria, na estação Ponte Vacaria, na divisa entre Fruta de Leite e Padre Carvalho, é de 18,8 mil metros cúbicos por hora. A se considerar como verdadeiro o que está no site da SAM, a empresa pretende ficar com quase dois terços do rio.
“A retirada de toda essa água vai aumentar intensamente a intermitência do rio”, me disse José Carlos de Araújo, professor da Universidade Federal do Ceará, especialista em hidrologia e sedimentologia de ambientes semiáridos.
A intermitência é uma característica de rios do semiárido, que alternam períodos de cheia com outros de seca, em que o curso d’água pode chegar a desaparecer. Araújo faz parte de um grupo internacional multidisciplinar de quase 50 cientistas que estuda o aumento da intermitência dos rios em diversas partes do mundo, seja pelas mudanças climáticas, ou seja pelo aumento das retiradas de água.
“Isso tem consequências fortíssimas do ponto de vista ecológico, da sobrevivência das espécies que dependem daquela água. Sobra menos água para uma função de autolimpeza: o rio perde grande parte da sua capacidade de tratar o esgoto que é lançado nele. Mesmo que ele seja tratado, começa a predominar o esgoto ao invés da água. Com isso, o rio pode rapidamente perder oxigênio, e [se multiplicam] as bactérias que decompõem sem oxigênio o esgoto. Aí, o rio começa a feder”, ele me explicou.
Em outubro passado, estive durante três dias em Grão Mogol e Padre Carvalho, abastecidas pelo rio Vacaria, entrevistando famílias geraizeiras. Ouvi reclamações dos frequentes “cortes” do rio, ou seja, que já há trechos em que ele tem ficado seco, algo que antes não acontecia, segundo os relatos. Em junho passado, o prefeito de Grão Mogol, Diêgo Fagundes, do PTB, decretou estado de emergência “em razão da seca que assolava o município” à época.
O cientista Araújo comparou os dados alardeados pela SAM com os do Igam e foi enfático. “Há um dado esquisito aí: considerando-se somente o consumo doméstico, 4 mil metros cúbicos por hora correspondem a um consumo per capita de 150 litros por dia. Não sobraria água para irrigação. Se houver uso em irrigação, o consumo per capita teria que ser inevitavelmente inferior a 150 litros por dia, o que é pouco, principalmente considerando-se que os sistemas de distribuição de água têm perdas que chegam a 20%”. O consumo médio de água no Brasil é de 154 litros por dia por pessoa. Ou seja: a cidade vai ter que decidir se bebe água, toma banho ou produz alimentos. O rio não vai dar conta de tudo.
Araújo afirma que 4 mil metros cúbicos de água por hora não são suficientes para garantir o consumo de mais de 640 mil pessoas por dia, como alardeia a SAM, e ainda viabilizar projetos de irrigação. “É um número que para o padrão de Minas está artificialmente jogado para baixo, para dar uma população beneficiada maior do que na verdade é”, criticou.
Perguntei à SAM de que forma seu projeto poderia resolver ou agravar o problema da água na região. A empresa afirmou que “a região norte de Minas conta com um ciclo hidrológico com quantidade relevante de chuvas, porém concentrado em período curto durante o ano” e “carece de estruturas de armazenamento dessa água que, sem reservação, corre para o oceano”. “A SAM irá construir a Barragem de Água do Rio Vacaria, contribuindo para a disponibilidade hídrica da região. Seu enchimento é previsto por meio das águas de chuva”, prometeu.
‘Yongshi gostou disso’
Mesmo sem ter sequer autorização para iniciar as obras de seu megalomaníaco empreendimento, a presença de representantes da SAM é algo com que as comunidades e os políticos da região já se acostumaram. Sabendo que precisa contar com a simpatia deles, a empresa se esforça em se mostrar atenciosa e prestativa.
São comuns a distribuição de cestas básicas e de máscaras de proteção contra a covid-19 bancadas pela mineradora. A SAM também propagandeia em sua conta no Instagram que comprou tablets para alunos de escolas públicas de Grão Mogol, Josenópolis, Fruta de Leite e Padre Carvalho.
Mas não para por aí. Em live realizada em março passado com os prefeitos de Grão Mogol e Padre Carvalho, a SAM discutiu a elaboração dos planos diretores dos dois municípios. Como diz um velho ditado, o diabo mora nos detalhes.
O plano diretor é o documento que orienta como será feita a ocupação do solo urbano em cidades com mais de 20 mil habitantes. Um plano desse tipo pode decidir, por exemplo, se o município irá destinar uma determinada área para indústrias ou para moradias. Em português claro, a SAM é interessada direta no que irão decidir os dois planos.
De acordo com notícia sobre a reunião publicada num jornal local, a diretora de Relacionamento e Meio Ambiente da SAM, Gizelle Tocchetto, explicou que aguardava a retomada do licenciamento ambiental do projeto – à época suspenso – para iniciar o “processo de custeio dos planos diretores que deverão ser conduzidos pelas prefeituras, de forma participativa junto às suas populações”. Sim, é isso mesmo: a SAM vai pagar pela elaboração de um documento público que poderá beneficiá-la.
As cidades na mira da SAM são pobres. No ranking de desenvolvimento humano dos 853 municípios mineiros, Grão Mogol, Padre Carvalho, Josenópolis e Fruta de Leite estão entre as posições 768 e 845. Em 2019, o salário médio mensal de um trabalhador formal em Fruta de Leite – município com o pior IDH entre os quatro – era de 1,4 salários mínimos. Na comparação nacional, era um dos mais pobres, na posição 5.265 – o país todo tem 5.570 municípios. Isso desequilibra a balança em favor da mineradora, que sabe que a promessa de empregos e investimento soa como música nos ouvidos de políticos e moradores locais e desvia a atenção dos grandes problemas que virão no pacote.
Assim, já em outubro e novembro de 2018, os prefeitos de Grão Mogol, Fruta de Leite, Josenópolis e Padre Carvalho assinaram documentos declarando que o projeto da SAM estava em conformidade com as leis e regulamentos administrativos dos referidos municípios, especialmente com a legislação sobre uso e ocupação do solo.
CPI que tratou do caso de Brumadinho chamou a atenção para ‘as enormes dimensões das barragens’ que a SAM quer construir.
Esse documento é um requisito legal para o licenciamento do projeto. “Para se chegar a uma declaração desse porte tem que ter um procedimento anterior, não basta uma simples declaração. Isso é um documento importante para o processo de licenciamento. Imagino que todos tomaram as providências necessárias”, me disse Soares Júnior, o procurador-geral de justiça de Minas Gerais. Ou seja: nem ele sabe dizer se a coisa foi feita com o rito e a precaução necessários.
Perguntei ao governo mineiro se as prefeituras apresentaram, junto com as declarações assinadas, os processos administrativos que devem subsidiá-las, incluindo as leis de uso e ocupação do solo de cada município. O governo Zema afirmou que as declarações dos prefeitos chegaram às suas mãos sem os processos municipais e sem cópias das leis de uso e ocupação do solo. “Não cabe ao poder Executivo o papel de fiscalizar atos emanados dos demais poderes, sendo imprópria a determinação de comprovação dos fatos apresentados em documentos oficiais, uma vez que são dotados de boa-fé pública”, respondeu o governo mineiro em nota.
Eu pedi esses documentos aos prefeitos de Grão Mogol, Padre Carvalho, Josenópolis e Fruta de Leite, e também solicitei entrevistas. Não recebi resposta.
A SAM também gosta de alardear a relação próxima que tem com prefeitos e gestores públicos municipais e estaduais. Em uma das poucas aparições que fez no Instagram da empresa, o presidente da companhia no Brasil, o chinês Jin Yongshi, posou ao lado do ex-prefeito de Grão Mogol Hamilton Nascimento, e do atual mandatário de Padre Carvalho, José Nilson Bispo de Sá. Nos depoimentos, todos dão como certa a instalação do projeto no Cerrado mineiro.
Yongshi costuma replicar algumas das postagens da SAM em seu Linkedin, rede social de negócios, onde é ativo nas curtidas em postagens de seus contatos. Alguns dos posts que Yongshi mais “gosta”, nos termos do Linkedin, são os da secretária estadual de Meio Ambiente, Marília Carvalho de Melo, do superintendente do Ibama no estado, Enio Fonseca, do ex-secretário Germano Luiz Gomes Vieira e de Thiago Toscano, ex-diretor-presidente do Indi.
No mundo real, nem tudo são flores. Em 2019, o projeto da SAM foi denunciado pelas comunidades impactadas à CPI instalada na Assembleia Legislativa mineira para tratar do crime ambiental da Vale em Brumadinho. A comissão acolheu a denúncia, “dadas as enormes dimensões das barragens, a necessidade de muita água no processo de beneficiamento e a localização em região já com déficit hídrico e sujeita a sismos naturais.”
Em seu relatório final, a CPI recomendou que fossem investigadas justamente a fragmentação do licenciamento ambiental e a atuação “controversa” de representantes do governo de Minas Gerais nesse processo. A história se repete.
Reportagem
Felipe Sabrina
Roteiro de vídeo
Yzadora Monteiro
Fotografia/Captação de vídeo e montagem
Ingrid Barros
Design
Júlia Coelho
Julia Custodio
Coordenação de reportagem e de texto
Rafael Moro Martins
Coordenação de vídeo
Luiza Drable
Marlon Peter
Coordenação de arte
Rodrigo Bento
Você sabia que...
O Intercept é quase inteiramente movido por seus leitores?
E quase todo esse financiamento vem de doadores mensais?
Isso nos torna completamente diferentes de todas as outras redações que você conhece. O apoio de pessoas como você nos dá a independência de que precisamos para investigar qualquer pessoa, em qualquer lugar, sem medo e sem rabo preso.
E o resultado? Centenas de investigações importantes que mudam a sociedade e as leis e impedem que abusadores poderosos continuem impunes. Impacto que chama!
O Intercept é pequeno, mas poderoso. No entanto, o número de apoiadores mensais caiu 15% este ano e isso está ameaçando nossa capacidade de fazer o trabalho importante que você espera – como o que você acabou de ler.
Precisamos de 1.000 novos doadores mensais até o final do mês para manter nossa operação sustentável.
Podemos contar com você por R$ 20 por mês?