Débora Coutinho, 35 anos, e Vivian Raposo, 32, casadas há quase seis anos, chegaram com a filha Duna em um cartório recifense munidas de toda papelada para registrar a criança: declaração de nascida viva entregue pelo hospital, certidão de casamento, identidades. O rapaz que as atendeu recolheu tudo, tirou xerox, elas preencheram e aguardaram o trâmite. Pouco depois, o moço voltou de uma sala menor e perguntou, meio constrangido: “vocês teriam algum outro documento?”.
Estava aberta uma ainda pouco conhecida caixa de Pandora do tabelionato brasileiro.
O funcionário se referia à obrigação de uma declaração, com firma reconhecida, de um profissional de um centro ou serviço de reprodução humana na qual foi realizada a inseminação. Esse documento passou a ser exigido desde que, em 2017, o Conselho Nacional de Justiça editou o Provimento 63/2017, que regulamenta a certidão de nascimento de crianças geradas a partir de reprodução assistida.
A questão é que Débora e Vivian, assim como centenas de casais no Brasil, principalmente homoafetivos, não buscaram uma clínica: elas realizaram a chamada inseminação caseira, quando o procedimento é feito em casa usando material genético (sêmen) doado. Resultado: as mães saíram do cartório com apenas uma delas com o nome na certidão de nascimento da criança. “Nós sabíamos que isso poderia acontecer, mas, na hora, é chocante. Para registrar, o funcionário chegou a falar em incluir a paternidade, e eu falei que não havia pai, mas duas mães”, conta Vivian.
A conversa expôs o que não deixa de ser uma contradição entre a determinação do CNJ – afinal, o Supremo Tribunal Federal garantiu em 2011 o direito de união estável a casais homoafetivos – e o que de fato acontece no balcão do cartório: comumente, casais heterossexuais que passaram pelo mesmo procedimento caseiro não vivenciam qualquer constrangimento no momento de documentar a criança. Geralmente, é o pai quem dá entrada na certidão, pois as mães ainda estão muitas vezes em repouso pós-parto. “Não se questiona se o homem que vai ao cartório é o ‘pai biológico’ da criança, ou seja, para registrar o filho sem averiguações, basta ter um pênis”, continua Vivian, se referindo a homens cisgêneros.
Procurei a Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais, a Arpen-Brasil, que representa todos os cartórios de registro civil do país. A entidade reconhece que quando um casal heteroafetivo vai até uma unidade com a documentação necessária não há norma ou regra que permita ao funcionário ou funcionária duvidar das informações apresentadas pelos pais (que, se fizeram a inseminação caseira e não declaram, estariam incorrendo em crime de falsidade ideológica). Já em casos trazendo casais homoafetivos, a Arpen justifica – em letras maiúsculas, como mostra a nota completa da entidade neste link – que TEM COMO SABER que houve a reprodução assistida. É o que justificaria o pedido do rapaz que atendeu Débora e Vivian (inclusive sugerindo um “pai” para o registro da criança).
A advogada Luiza Galvão, que há cerca de três anos pesquisa casos de inseminação caseira, diz que este procedimento vem sendo procurado por diversos casais, principalmente homoafetivos, que querem constituir família, mas não têm condições de arcar com o procedimento em uma clínica. Nelas, o valor da inseminação custa, totalizando material genético, repouso e remédios, a partir de R$ 15 mil. Caso não dê certo, é preciso, a depender da clínica, desembolsar um novo valor (algumas fecham o preço considerando duas tentativas).
Luiza reitera a questão heteronormativa e machista exposta na experiência de Vivian e Débora no cartório. “O cartório não vai averiguar a fundo quem é o pai. Ele só precisa que uma mulher se apresente como mãe, o homem como pai e a documentação básica”, observa. Para ela, mesmo casais de mulheres que fazem a reprodução assistida em clínicas também passam por exposição, pois precisam levar a declaração assinada pelo diretor médico do local, com o número da amostra e o número do doador. “O que eu tenho feito é atuar em casos do Brasil inteiro. Proponho ações judiciais para que, por meio de um alvará judicial, seja autorizado o registro em nome das duas mães.”
Nos cartórios, os argumentos para o não registro passam muitas vezes não só pela requisição de uma paternidade, mas ainda pela não garantia do material genético utilizado e do anonimato entre doador e casal (neste caso, algo que é garantido em uma clínica de reprodução assistida), o que pode levar a futuras questões judiciais.
São dois casos bem específicos, cada um com suas características. No primeiro, como bem lembra Luiza Galvão, há novamente um cenário desfavorável para as mulheres: “Se o cartório vai fazer um registro de um filho de casal heterossexual, ele não pede os exames médicos do pai, concorda? E, em todo caso, não é competência de qualquer cartório verificar a situação de saúde de ninguém”, diz a advogada.
No segundo, quando não há anonimato entre família e doador, encontram-se as situações mais delicadas e que demonstram a necessidade de regulamentar a inseminação caseira. O contato entre a família das pessoas tentantes (como são chamadas mulheres e homens que recorrem ao método da inseminação) e o homem que disponibiliza o sêmen abre algum espaço para que, por exemplo, esta paternidade seja envolvida em algum processo judicial de reconhecimento, tanto por parte das mães quanto do pai.
A criança também pode querer saber, mais tarde, quem é seu pai: ter acesso à sua ancestralidade é um direito. Como o doador não é anônimo, essa possibilidade é maior. Por isso, em diversos casos, doadores assinam um documento abrindo mão da paternidade. “Alguns juízes pedem este documento, mas isso é uma aberração jurídica. Não é possível deixar de ser pai de alguém, é algo irrenunciável”, continua Luiza. É necessário pontuar que a busca pela ancestralidade também é garantida mesmo para pessoas geradas através do procedimento da inseminação assistida em clínicas, que guardam os documentos sigilosos dos doadores.
Sobre os doadores
Conversei com dois homens que vêm há anos contribuindo com casais homoafetivos e heterossexuais, ambos também ex-doadores de clínicas de fertilização. Jefferson Brodoux, 36 anos, que trabalha com design de móveis, diz que é mais procurado por casais de mulheres: nos 102 casos em que o resultado da inseminação deu positivo, ele contabiliza apenas seis casais heterossexuais e três ou quatro “mães solo”. “São elas que possuem mais dificuldades para registrar”, diz ele.
Jefferson conta que só entrou em contato duas vezes com crianças nascidas a partir de seu material genético e que não recebe nenhum valor para realizar a doação, a não ser os custos de deslocamento. O corretor de imóveis Alex Bacor, 48, começou a doar em 2017, e, como o colega, diz que nunca foi pago para isso. Este parece ser um padrão entre estes homens: a doação realizada com o intuito de ajudar famílias que não podem bancar os custos da inseminação feita em clínicas.
Ao contrário de Jefferson, no entanto, Alex nunca manteve contato com as famílias após a doação. Os doadores apresentam exames médicos recentes para as pessoas tentantes, comprovando que estão saudáveis, e também podem realizar outros exames a pedido das mães e/ou pais, que, neste caso, pagam pela investigação clínica.
Os riscos assumidos principalmente por casais formados por mulheres valem a pena frente aos custos da inseminação realizada nas clínicas, de acordo com a advogada Luiza Galvão. “Mesmo a judicialização pode ser infinitamente inferior a um procedimento clínico. Às vezes, só o material genético pode custar R$ 20 mil. Em casa, o custo máximo, caso a inseminação não dê certo, é somente o valor do transporte, da passagem aérea”.
Atualmente, o caso de Vivian, Débora e Duna está na Justiça – elas contam que receberam uma resposta favorável do Ministério Público de Pernambuco e estão confiantes no andamento do registro em nome das duas mães. O CNJ, em resposta enviada para esta coluna (leia aqui na íntegra), diz que “a questão envolvendo a inseminação caseira é complexa e está sendo analisada pela Corregedoria Nacional de Justiça, que deve consultar órgãos envolvidos diretamente com o tema para poder avaliar a necessidade de evolução do Provimento”.
Esta avaliação, como mostram as centenas de casais de mulheres que não têm dinheiro para reprodução assistida em clínicas e têm o direito de formar suas famílias, é mais que urgente. Como no caso de Vivian, Débora e a bebê, os casos de judicialização se multiplicam em todo o país (aqui, aqui e aqui).
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