Em qualquer tempo, e especialmente naqueles permeados pela tragédia, o humor e o riso são poderosas armas que servem não só para aliviar a dor e garantir a nossa sobrevivência, mas também como meios de crítica e combate. Muitas vezes, rir de algo é a melhor forma de desobediência – ou é a única coisa que nos resta. O humor, no entanto, pode ser sedutor a ponto de transformar a aberração em possibilidade. Como exemplo, basta escrever apenas um nome: Jair Bolsonaro.
É ponto pacífico entre quem se dedicou a estudar o político que o seu “reposicionamento” no mercado se deu em grande parte por meio de sua transformação em um cara zueiro, bonachão, o tio do churrasco. Não importava se ele fosse racista ou homofóbico: bastava congelar sua imagem e colocar sobre seu rosto aqueles óculos pixelizados símbolos da thug life (algo como vida loka, mas Tupac te explica melhor aqui). Assim, foi possível transformar um nome da ultra-direita em um meme engraçado e, por isso, palatável. Hoje, o “zueiro” veste a faixa presidencial e, entre outras loucurinhas, sugere irresponsavelmente para milhões de pessoas que a vacina contra a covid-19 está associada à aids e ajuda a implementar uma política de assédio contra funcionários da Anvisa.
Mas o fenômeno do meme como forma de rebatismo ou, arrisco dizer, como uma espécie de canonização à base da cultura pop-caótica das redes, torna cool e moderninhos não somente os paletós impregnados de naftalina da política nacional: ele pode ser útil para remodelar uma série de carreiras, do chef de cozinha à atriz, da gamer ao lutador de MMA, do maquiador à pastora evangélica.
Nos últimos meses, a advogada, jornalista e socialite Narcisa Tamborindeguy, já famosíssima muito antes da bombação dos Instagram, Tik Tok e WhatsApp da vida, foi (re)alçada a figura super memetizada após a realização, em setembro de 2021, de uma live entre ela e a atriz Maitê Proença. A conexão da última caiu e Narcisa, a princípio, não compreendeu que estava falando sozinha. “Travou, Maitê!”, disse ela, criando ali, involuntariamente, um novo hit. Depois, soltou outra frase que viraria bordão: “conta da Catharina!”. As caras e bocas de Narcisa, que, como a maioria de nós, faz da tela da transmissão ao vivo uma espécie de espelho, são engraçadíssimas. Logo, esse trecho da live pipocou nas redes, e a dona do famoso “ai, que loucura!” passou a ser rosto ainda mais conhecido, alcançando novos públicos. As agências de publicidade começaram a disputar o passe da socialite, cuja fortuna familiar vem da exploração do petróleo. “Dá para ganhar um extra”, disse ela aqui sobre esse novo momento midiático.
A viralização de Narcisa de certa forma também a trouxe de volta para um nicho do público LGBTQIAP+ que, em 2018, ficou decepcionado com um vídeo publicado pela ex-participante do reality Mulheres Ricas. Nele, usando seus óculos de abacaxis, ela diz que está muito triste com o que aconteceu com Bolsonaro. Ali, refere-se ao atentado à faca contra o então candidato, em Juiz de Fora. “Inclusive eu voto no Jair Bolsonaro”, fala Narcisa, enviando beijos, mãozinhas em coração e o desejo de que o capitão da reserva se restabeleça “para ganhar a presidência da República”.
Foi como um tapa: mas como assim a diva super carismática e irreverente que grita da janela “toca para as gays!” podia apoiar um homem que há anos aparecia nas redes de televisão falando, entre outras declarações de ódio, que preferia ter filho morto em acidente a ter filho homossexual? Diversas manifestações contra o apoio de Narcisa ganharam as redes, e a socialite, pressionada, fez um comunicado dizendo que não estava a par dos posicionamentos homofóbicos do hoje presidente. Foi difícil entender como alguém não tivesse sido exposto ao já onipresente Bolsonaro, principalmente uma pessoa com longa proximidade com a política: o pai de Narcisa, Mário Tamborindeguy, foi deputado federal quatro vezes; sua irmã, Alice Tamborindeguy, foi deputada estadual por seis mandatos no Rio de Janeiro (passou pelo PDT, PSDB e em 2018 estava no PP). Naquele momento, a socialite também mantinha um relacionamento amoroso com o jornalista político Guilherme Fiúza, fortíssimo apoiador de Bolsonaro nas redes e hoje integrante da Jovem Pan.
Na época, Narcisa pediu desculpas publicamente, contou que estava sendo duramente atacada, reclamou que ninguém sentou com ela para mostrar o seu erro (!) e convocou seus seguidores para uma conversa. O texto teve impacto positivo para muita gente: com ele, a dona do “Travou, Maitê!” baixou a temperatura e manteve seu lugar entre uma generosa parte dos grupos LGBTQIAP+ .
Poucas semanas depois, no entanto, a coluna Painel, da Folha de S.Paulo, publicou que, apesar do pedido de desculpas, a socialite tentava agendar uma visita para ver Bolsonaro: queria lhe dar um abraço e levar amigos da Bélgica para conhecê-lo.
Ai, que loucura.
Em março de 2020, em uma entrevista para a jornalista Leda Nagle, fiel escudeira do projeto político de Jair Bolsonaro, Narcisa falou sobre um encontro casual com o ministro da economia, Paulo Guedes, em um mercado no Rio de Janeiro. Ela o reconheceu, se apresentou e, de acordo com uma coluna de Amaury Jr., elogiou o Posto Ipiranga: “oi, ministro, sou sua fã. Você é o melhor economista de todos e está melhorando o Brasil”. À Nagle, Narcisa lembrou que Guedes reclamou da vida: disse que “batiam muito nele”. Ela contemporizou e devolveu informando que o mesmo acontecia com ela. A foto dos dois foi publicada depois nas redes da socialite, madrinha e mantenedora do orfanato Lar de Narcisa, no Rio de Janeiro.
Poucos dias antes, “o melhor economista de todos” havia reclamado da cotação baixa do dólar e afirmado que “até mesmo empregada doméstica” estava viajando para Disney, uma fala que repercutiu fortemente na imprensa.
É aqui que volto para os memes, o humor e a purpurina. É bastante interessante observar como a “reatualização” da socialite por meio da cultura (e de uma economia) memética a recoloca fortemente entre um público que é constantemente atacado pelo governo bolsonarista, seja por. meio da política econômica de Guedes, seja por meio da política de costumes de Damares Alves. Um público importante, inclusive, para cobrar posicionamentos de nomes que se capitalizam com o chamado pink money, mas às vezes preferem silenciar, como já aconteceu com Anitta e Ivete Sangalo. No caso de Narcisa, o “travou, Maitê!” lhe rendeu lugar nas listas dos memes do ano, como a realizada pelo canal Diva Depressão, com mais de três milhões de inscritos. Em setembro do mesmo ano, o programa já havia dedicado um especial sobre Narcisa, bastante celebrado no Vale. Mais visibilidade, mais lucro.
As aparições feéricas da jornalista e advogada, quase sempre muito randômicas e sem filtros, são coalhadas de duas características importantíssimas em uma economia das celebridades: “espontaneidade” e “autenticidade”. Ambas foram capturadas há muito pela política, sendo geralmente calculadas. Obama se deixava ser fotografado correndo com crianças na Casa Branca, Lula não seguia os discursos preparados para ele. O problema é quando “autenticidade” vira airbag para discursos de ódio, como aconteceu diversas vezes quando Jair Bolsonaro ou Donald Trump soltaram ofensas contra mulheres ou imigrantes, por exemplo.
Em uma era pré-meme, a “autenticidade” e a “loucurinha” também atenuaram práticas assombrosas não só de Narcisa, mas de toda uma trupe de endinheirados, como o jornalista e empresário Bruno Chateaubriand e o diretor global Boninho, ex-marido da socialite. Em um vídeo gravado em 2007 por João Brizola, neto do ex-governador do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul Leonel Brizola, vemos uma reunião de gente muito rica falando sobre uma de suas grandes diversões: atirar ovos ou objetos a partir das janelas de seus milionários apartamentos. “Taco tudo, ovo, almofada, balde de água, eu jogo tudo o que eu não gosto, sabe?”, diz Narcisa. Mais à frente, ela completa: “mas eu também jogo flores pela janela! […] aí elas catam, elas sabem que é da Narcisa”.
Chateaubriand, por sua vez, diz que já jogou uma vassoura e uma garrafa de Coca-Cola pela janela. Depois, ouvimos Boninho ensinando uma receita para apodrecer ovos e comentando tranquilamente que já acertou “muita vagabunda em São Paulo” com eles. O caso, repleto de um classismo tenebroso com generosas pitadas de sociopatia, gerou debates naquele momento, mas logo o tema foi deixado de lado. Não teve batida policial (afinal, vandalismo e baderna têm cor, endereço e renda), não teve pedido de desculpas nem qualquer prejuízo para ninguém – a não ser para quem, “vagabunda”, foi alvo da diversão da turma.
O episódio foi retomado em 2014, em uma entrevista que a socialite concedeu a outra hoje famosa apoiadora de Jair Bolsonaro, a atriz e apresentadora Antonia Fontenelle. Poderia ter sido uma oportunidade para discutir o ato grotesco e revê-lo criticamente anos depois, mas foi o contrário: ele foi trazido como pitoresco e um ovo chega a surgir na gravação, em uma simulação do que aconteceu anos atrás.
Me pergunto: do que e com quem estamos rindo, exatamente?
Iluminando um outro aspecto da discussão, o trabalho da pesquisadora Bárbara Zacher Vitória, autora da dissertação Sobre memes e mimimi – letramento histórico e midiático no contexto do conservadorismo e intolerância nas redes sociais mostra como o humor e o meme disseminam toda uma sorte de negacionismos históricos, como afirmar que a escravidão foi boa para pessoas trazidas da África para o Brasil. Nesse sentido, Vitória defende que as escolas se apropriem do meme como ferramenta pedagógica, propondo algo fundamental na formação não só de crianças e adolescentes, mas também adultos: o letramento histórico e midiático. “É fundamental que os memes sejam analisados como fontes históricas e que os educadores da área façam uso do repertório memético disponível nas redes para capacitar os estudantes sobre os usos da História e suas intencionalidades, colaborando para o seu processo de letramento histórico. Servir-se dos memes para conscientizar os estudantes sobre as suas responsabilidades online, qualificá-los na condição de consumidores e produtores críticos de mídia, atentar para como as informações que consumimos nas redes afetam nossas crenças, nossas percepções sobre os outros, e de como estas percepções participam da criação de estereótipos, é também uma estratégia em direção ao letramento midiático de nossos estudantes”, escreve. A pesquisadora discute no trabalho, por exemplo, como o meme “nego” se espalhou de uma maneira completamente racista e tóxica nas redes.
Em tempos de parceria entre a produtora Brasil Paralelo (cujo conteúdo dos produtos afirma, por exemplo, que não houve golpe militar no Brasil) e o G10 das Favelas, esse letramento pode significar a própria sobrevivência da democracia.
Na pesquisa Humor e conservadorismo: análise de memes durante o impeachment de Dilma Rousseff, o cientista social Felipe Corrêa Guaré escreve que o meme pode aumentar suas chances de replicação justamente por meio do humor, que vai aparecer de diferentes formas no contexto social. Aglutinador, o riso, diz ele, “serve como um sinal honesto de que membros de um mesmo grupo possuem ideologias em comum”. É aí que reside a questão: por meio dessa operação, tornamos muitas vezes o intolerável aceitável, inclusive nos atrelando a posicionamentos que podem significar o nosso desaparecimento ou ainda nos transformar em mero objeto da diversão. É como se estivéssemos, muitas vezes, rindo com quem está tacando o ovo podre na cara da gente. Nesse caso, a piada é você.
O problema não está em Narcisa ou qualquer pessoa que declare seu apoio a qualquer governo: apesar dos ensaios mal-ajambrados de golpe realizados em nosso último 7 de setembro, somos livres para apoiar quem quisermos. O ponto é como o consumo de uma cultura do meme, aparentemente muito leve, pode nos talhar, independentemente da idade, em um público que compra a graça pela graça sem observar melhor o que deriva dali. Nossa atenção, obtida tantas vezes pelo humor e pela “autenticidade” de seus personagens, custa caro e capitaliza, justamente, quem já costuma se fartar com a visibilidade midiática.
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