Sem mais explicações, Jair Bolsonaro convocou seu exército no Twitter, na semana passada, para baixar um app novo que leva seu nome. O Bolsonaro TV, disponível para celulares e tablets, é o “novo aplicativo de informações” do governo, nas palavras do presidente. A plataforma compila todas as publicações de redes sociais dos membros da família Bolsonaro em um só lugar – é possível ver os vídeos do YouTube, tuítes e mensagens no Telegram, por exemplo, na mesma tela. Cada post listado tem um botão para compartilhamento rápido por WhatsApp e em redes sociais.
A simplicidade da plataforma contrasta com as permissões requisitadas aos usuários. Nos celulares Android, o Bolsonaro TV pede o direito de acessar a localização precisa do usuário, impedir que o aparelho entre em repouso, receber dados de internet utilizada, ler a configuração utilizada nos serviços do Google e controlar a vibração. O aplicativo também pode acessar, alterar ou excluir todos os arquivos do armazenamento do celular.
Todas as permissões são concedidas ao administrador do aplicativo, que se identifica nas lojas de aplicativos do Google e da Apple como “BolsoMidiaNaro”. Trata-se de uma pessoa só: Rogerio Cupti de Medeiros Junior. Advogado, assessor parlamentar do vereador Carlos Bolsonaro desde 2021 e perseguidor de jornalistas, é nas mãos de Cupti que todas as informações coletadas pelo aplicativo vão chegar.
É comum que um aplicativo que tenha comando de voz, como o Waze, tenha acesso ao microfone, ou que outro de mensagens, que permita envio de fotos como o WhatsApp, acesse os arquivos. Eles precisam dessas permissões para cumprirem suas finalidades. Mas o Bolsonaro TV não tem nenhum recurso extra: é apenas um simplório feed de redes sociais com um botão para compartilhamento. Não fica claro para que ele pede acesso a tantas informações dos usuários, e é isso o que os termos de uso deveriam explicar.
Mas os Termos de Uso e Privacidade do Bolsonaro TV não dizem nada. Ao contrário: único documento disponível no site do aplicativo, ele é uma carta branca para que Cupti faça o que quiser.
Entre os termos, está a possibilidade de modificação do aplicativo a qualquer momento e sem aviso prévio, a aceitação de que ninguém será responsabilizado por qualquer problema que o aplicativo cause aos usuários e o consentimento com o uso de dados. Ou seja: o assessor de Carlos Bolsonaro não se responsabiliza por danos e também se reserva ao direito de mudar o aplicativo a qualquer momento sem aviso (coletar mais dados e mudar suas funcionalidades, por exemplo).
O documento não cita nenhuma das permissões que o app solicita na Play Store, do Google – e também não diz para que elas serão utilizadas, o que fere a Lei Geral de Proteção de Dados, a LGPD. Nos Termos de Uso e Privacidade, o Bolsonaro TV diz coletar e usar dados técnicos dos aparelhos, como “especificações, configurações, versões de sistema operacional, tipo de conexão à internet e afins”, convenientemente deixando de fora dados pessoais sensíveis como a localização e os arquivos do dispositivo.
Para Eduardo Cuducos, doutor em sociologia pela Universidade de Essex, do Reino Unido, e pesquisador de tecnologia, existem muitos problemas nos Termos de Uso e Privacidade do Bolsonaro TV. Em cada plataforma, ele destaca, as informações sobre dados coletados são diferentes. Na App Store, loja de aplicativos da Apple, o Bolsonaro TV diz não coletar nenhuma informação dos usuários – diferentemente do que foi apresentado na loja do Google. E, nos termos de uso, as informações diferem das apresentadas nos outros dois lugares.
“Quem vai usar fica sem saber exatamente o que esperar do app”, apontou o especialista. Mesmo com tão pouca informação, ele ressaltou, é possível ver irregularidades: “o capítulo 4 dos Termos de Uso e Privacidade é flagrante contra a LGPD. Não basta especificar quais dados serão coletados, mas tem que ser especificado para quais fins serão utilizados. Esse papo de consentir com o uso, de forma genérica, é ilegal. Por exemplo, para que pedir permissão de acesso às fotos do dispositivo, se nos termos de uso isso não está previsto?”.
Na App Store, as informações sobre permissões do aplicativo são disponibilizadas pelo próprio desenvolvedor – nesse caso, por Cupti. Nada impede, porém, lembrou Rafael Zanatta, diretor do Data Privacy Brasil, que o Bolsonaro TV tenha passado em um teste da App Store por realmente não coletar nada e, a qualquer momento, mude as configurações do aplicativo. “A Apple só checa quando há denúncias ou casos graves”, ele explicou. Perguntamos à Apple como é o processo de disponibilização de um aplicativo na loja e o que a discrepância poderia indicar. A assessoria da empresa não nos respondeu.
A página do aplicativo nas lojas do Google e da Apple até acumulam denúncias, mas conspiratórias. Com avaliação de 4,9 estrelas, as resenhas do aplicativo foram escritas por bolsonaristas convictos que chegam a cogitar que as falhas do app sejam tentativas das empresas de prejudicar Bolsonaro. O mais provável, no entanto, é o descaso: tudo ali parece primário.
Nos termos de uso do aplicativo, Cupti indica que o endereço fiscal do Bolsonaro TV é o mesmo de outra empresa sua, uma assessoria para obtenção de porte de armas e compras de armamentos localizada em um prédio residencial em Niterói, cidade da região metropolitana do Rio de Janeiro. Além de assessor de Carlos Bolsonaro, com um salário de R$ 6,7 mil mais bonificações, Cupti mantém a assessoria e, agora, parece fazer mais um bico como desenvolvedor. Advogado, ele se apresenta como especialista em crimes cibernéticos e na legislação para obtenção de porte de armas.
Ligamos para ele com perguntas sobre o desenvolvimento do aplicativo, as permissões pedidas e as responsabilidades que ele tem como responsável pela aplicação. Cupti nos pediu para mandar os questionamentos por WhatsApp, mas nunca respondeu.
Estranhando a finalidade e o financiamento do aplicativo, o PDT ingressou na terça-feira, 25, com uma ação no Tribunal Superior Eleitoral pedindo que o aplicativo fosse suspenso. O partido acredita que, com o aplicativo, Bolsonaro “potencializará a difusão do arsenal de fake news”.
Embora os nomes se pareçam, o Bolsonaro TV não possui relação com a TV Bolsonaro, desenvolvido por empresa que teve contrato com quatro estados brasileiros para fornecimento de aulas online e denunciado pelo Intercept em 2020.
Até agora, o Bolsonaro TV já passou de 100 mil downloads na Play Store. Mas, ao contrário do que disse Bolsonaro, o aplicativo não é novo. Sua primeira versão já estava disponível em fevereiro de 2021. O endereço do site do aplicativo, app.bolsonaro.tv, registrado de maneira oculta, tem sua data de expiração – quando deixa de existir – em um dia bem oportuno: 2 de outubro de 2022, o primeiro turno da eleição presidencial.
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