A maior atrocidade dita neste ano não veio do cercadinho em que se esconde o presidente da República. Veio de um dos podcasts de entrevistas mais assistidos do país. Ao lado dos deputados federais Kim Kataguiri e Tabata Amaral, o apresentador Monark começou com uma estupidez aparentemente inofensiva, mas que prepararia o terreno para um pensamento atroz: “A esquerda radical tem muito mais espaço que a direita radical, na minha opinião. As duas tinham que ter espaço”.
Nada na frase encontra respaldo nos fatos. Enquanto a direita radical está no poder com ajuda do voto de Monark e de Kim Kataguiri, por exemplo, a esquerda radical é representada principalmente pelos partidos PCO e pelo PSTU — dois partidos nanicos, irrelevantes no jogo político-partidário e sem nenhum espaço no noticiário. A constatação mentirosa o levou a uma conclusão repugnante: “Eu acho que o nazista tinha que ter o partido nazista reconhecido pela lei”.
A defesa de direitos políticos para nazistas foi rechaçada por Tábata Amaral, mas Kim Kataguiri concordou com o absurdo e foi além: afirmou que a Alemanha cometeu um erro ao criminalizar partidos nazistas depois do Holocausto.
Segundo o deputado, jogar luz às ideias nazistas é a melhor forma de combatê-las. A barbaridade vem calçada por uma ideia que eles julgam ser libertária e nobre: a defesa liberdade de expressão absoluta. Em nome dessa causa, o deputado considera importante abrir a porta da democracia para nazistas difundirem seus discursos de ódio contra minorias e tentarem chegar ao poder através de eleições.
Kataguiri usou como exemplo os EUA, onde é permitido que nazistas se organizem politicamente. É como se o país que elegeu Trump e assistiu à invasão do Capitólio por neonazistas fosse um exemplo de zelo pelos direitos humanos. Segundo a lógica de Kim, a legalização da Ku Klux Klan nos EUA é saudável para a democracia norte-americana porque joga luz às ideias que antes estavam escondidas.
Sim, nos EUA as pessoas são livres para sair às ruas se autoproclamando nazistas e disseminar ódio contra negros, imigrantes, judeus e gays. Como se sabe, a luz jogada nessas ideias não diminuiu os conflitos raciais do país, muito pelo contrário. As tensões aumentaram nos últimos anos, com brancos saindo armados para ameaçar pretos que faziam protestos antirracistas. O deputado concorda de maneira absoluta com esse exemplo odioso dos americanos.
‘O deputado defende que a democracia financie aqueles cujo principal objetivo é destruí-la’.
Nada foi tirado de contexto, não houve ruídos ou distorções, como deu a entender o deputado. Ele se expressou de forma clara e direta que é a favor que os ideais nazistas possam ser difundidos legalmente. Se Kataguiri é a favor dos nazistas se organizarem em partidos políticos, isso significa que ele considera razoável que recebam verbas do fundo partidário para financiar atividades neonazistas. O deputado defende que a democracia financie aqueles cujo principal objetivo é destruí-la para promover o assassinato em massa de determinados grupos. Em resumo: em nome da liberdade de expressão, Kim Kataguiri topa correr o risco do fazer do Brasil o palco para um segundo Holocausto.
Um outro argumento também foi levantado para justificar a legalização dos partidos nazistas: o comunismo matou milhões, e os partidos comunistas permaneceram legalizados no mundo. De fato, regimes comunistas mataram muita gente, mas a essência da ideologia comunista está baseada na igualdade entre as pessoas. As barbaridades cometidas em regime comunistas não são compatíveis com os princípios do comunismo teórico, que não prega a morte de ninguém, mas a supressão das classes sociais.
O cristianismo, por exemplo, matou muita gente deturpando princípios bíblicos e nem por isso os cristãos foram criminalizados. Já os princípios da ideologia nazista estão sustentados pela ideia da supremacia da raça branca e o extermínio de determinados grupos. Não existe nazista que não considere a morte de judeus necessária. Não é à toa que os partidos nazistas foram banidos na Alemanha, enquanto os partidos comunistas seguem disputando eleições normalmente na Rússia — e em quase todo o mundo.
Não deveríamos nos espantar tanto com mais essa atrocidade do deputado. Kim tem histórico em defesa da intolerância. No segundo turno das últimas eleições, por exemplo, ele gravou um vídeo ao lado de Bolsonaro debochando de quem o chamava de intolerante. O MBL, do qual Kim é um dos líderes, é um movimento que já invadiu museu para protestar contra nudez em obras de arte, se colocou contra os antifascistas, defendeu o armamento da população e a redução da maioridade penal. Ele já pediu abertamente a criminalização do MST e do MTST, o que significa que ele é contra a liberdade de expressão de movimentos sociais que lutam por terra e moradia, mas é super a favor da legalização do nazismo no Brasil. Em 2015, chegou a subir no palanque para fazer a seguinte pregação: “tem que dar um tiro na cabeça do PT”.
O MBL sempre esteve alinhado à ideologia bolsonarista, tanto que todos os políticos com mandato do grupo se abrigaram em partidos fiéis aos projetos bolsonaristas no Congresso. O rompimento do grupo com Bolsonaro não se deu por divergência ideológica, mas por disputa interna na extrema direita.
Mesmo com a proibição de se organizarem em partidos no Brasil, os nazistas já se articulam politicamente. Há pelo menos 10 anos, grupos neonazistas se unem para defender políticos com os quais se identificam. Em 2011, um punhado de neonazistas devidamente uniformizados protagonizaram um ato em apoio ao então deputado Jair Bolsonaro no vão do MASP em São Paulo. Sete anos depois, Eduardo Thomaz, o líder neonazista que organizou esse ato, passou a organizar algumas motociatas em apoio ao presidente em São Paulo. Ele foi candidato a prefeito pelo PSL e fez toda a sua campanha referenciada no presidente.
O neonazista também gosta de exibir nas redes sociais fotos ao lado do general Augusto Heleno, ministro-chefe do GSI. Se somarmos a pororoca de conexões entre bolsonarismo e nazismo, dá para dizer sem medo de errar que Bolsonaro é o político preferido do neonazismo brasileiro. Também é possível dizer, portanto, que o deputado Kim Kataguiri e os neonazistas apoiaram a eleição do mesmo candidato.
A repercussão do episódio causou transtorno para a candidatura de Sergio Moro. Kim Kataguiri está prestes a se filiar ao seu partido, o Podemos, o partido mais fiel aos projetos bolsonaristas na Câmara em 2019 e que se manteve entre os líderes nos anos seguintes. No Twitter, o ex-superministro do governo dos fascistas condenou protocolarmente a defesa pela criação de partidos nazistas.
Depois, em uma entrevista, se soltou mais. Chamou a fala do seu aliado de “erro brutal”, mas logo em seguida amenizou a sua gravidade ao classificá-la uma mera “gafe verbal”. Ninguém pode se dizer surpreso com a postura do candidato que disputa o campo da extrema direita com Bolsonaro. É natural que ele considere a defesa da legalização do nazismo apenas uma “gafe”. Suas credenciais democráticas, éticas e morais são conhecidas desde as publicações da Vaza Jato. Trata-se de um político que não gosta de melindrar aliados desde os tempos em que vestia a toga. O Podemos, o partido que gosta de posar como moderado de direita, já sinalizou que aceitará a filiação de Kataguiri. Ao que parece, a defesa da existência do nazismo também é apenas uma “gafe” para o partido.
Monark alegou que estava bêbado, mas era tarde demais. Os patrocinadores caíram fora, e o podcast foi encerrado. O deputado Kim Kataguiri, que estava sóbrio e ainda assim concordou com as barbaridades ditas pelo apresentador, demorou mais para pedir desculpas. Ficou nas redes sociais usando o espantalho do comunismo e tentando emplacar a falácia de que estava apenas lutando por liberdade de expressão.
Só depois que a repercussão se tornou avassaladora é que ele pediu desculpas e desdisse tudo o que disse ao vivo e a cores. O PGR, Augusto Aras, determinou que seja apurado se o apresentador e o deputado cometeram o crime de apologia ao nazismo. Há também uma representação contra Kim Kataguiri no Conselho de Ética.
Monark perdeu o seu podcast, já Kim Kataguiri pode perder o mandato. É um bom sinal. A história mostra que não se deve abrir nenhuma fresta para o nazismo. Nos anos 30, a Alemanha tinha um excelente sistema de educação pública e ostentava a maior concentração de doutores do mundo na época. Mesmo assim, Hitler e o partido nazista venceram a eleição. Defender que nazistas se organizem politicamente em partidos é aceitar a possibilidade da implementação de um regime que tem na sua essência o extermínio de minorias étnicas.
O jovem Kim iniciou a vida política como um militante que pregava “tiro na cabeça do PT” e a criminalização de movimentos sociais. Depois cresceu e ajudou a eleger um presidente com tendências fascistas óbvias. Hoje, se tornou um deputado que defende abertamente o direito do nazismo existir. Lutar pela cassação do mandato de Kataguiri deveria ser uma obrigação de todos os que prezam pela vida e pela democracia.
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