Com agenda lotada, médicos influenciadores antivacina aproveitam a visibilidade da pandemia para conseguir pacientes e cobrar até R$ 2,1 mil por consulta.

Negacioni$mo

Médicos influenciadores cobram R$ 500 por atestado antivacina

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O Brasil atingiu 600 mil mortos por covid-19 no dia 8 de outubro. Quatro dias depois, o neurocirurgião Paulo Porto de Melo postou um aviso aos seus milhares de seguidores no Instagram: um de seus posts havia sido removido por violar as diretrizes da rede social. O médico não esmoreceu. Criou duas contas reserva e continuou divulgando o conteúdo que o tornou uma espécie de celebridade negacionista, levantando dúvidas sobre a eficácia da vacina, defendendo o já comprovadamente ineficaz “tratamento precoce” e criticando a Organização Mundial da Saúde.

Chefe de neurocirurgia do Hospital Militar de Área de São Paulo, ele tem um salário mensal de R$ 13.348,57, mas conseguiu uma renda extra na pandemia. Antes, seus conteúdos eram restritos à sua especialidade. Com a crise do novo coronavírus, se tornou um especialista de ocasião na covid. Hoje, cobra R$ 2,1 mil para uma consulta (ou teleconsulta) para covid-19, pós-covid-19 e “orientações sobre a vacina”. No início de fevereiro, sua agenda já estava lotada até março.

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Sua visibilidade na pandemia ganhou força em uma audiência pública no Senado em março do ano passado. Na ocasião, ele justificou sua participação afirmando que fez uma especialização em Harvard em que “um dos módulos era sobre manejo de situações de calamidade pública e pandemia”. Hoje, o médico tem um Instagram verificado com 148 mil seguidores e um canal no YouTube com 112 mil inscritos.

Em um dos vídeos, Porto oferece orientações sobre vacinas – a posição dele é que quem já se contaminou não “precisa tomar vacina agora”. “Você não deve tomar a vacina se você pegou covid, porque você fez sua vacina natural, digamos assim”, ele diz. “Em geral, a imunidade dura até 13 meses”, garante. Só esse vídeo foi visto por mais de 100 mil pessoas.

Em todas as suas participações e com frequência em seus canais, o médico defende posições contrárias às restrições de mobilidade, ao passaporte sanitário e afirma que a imunidade natural é superior à da vacina, como ocorre nesse vídeo no canal da apresentadora Leda Nagle, com 544 mil visualizações. Melo chegou a lançar um canal específico no YouTube e um e-book sobre o “pós-covid”.

“Não se trata da pior doença nem das piores alterações. A humanidade já venceu ameaças muito, muito maiores do que esta ‘peste chinesa’”, diz a introdução do livro, usado como cartão de visitas para pacientes com dúvidas sobre a doença.

Porto declinou nosso pedido de entrevista. Sua secretária, no entanto, afirmou que o médico não autoriza que o nome e os valores de suas consultas “obtidos por você de forma antiética, se fazendo passar por alguém interessado em uma consulta” sejam publicados. “Caso contrário, os advogados dele tomarão as medidas cabíveis”, insinuou.

Médicos influenciadores cobram R$ 500 por atestado antivacina

Secretária confirma valores de ‘todas as consultas’ do médico Paulo Porto.

Convicção ou lucro?

Paulo Porto de Melo não é o único. Encontrei uma rede de médicos que viu na pandemia uma grande oportunidade de fazer negócios e se projetar política e socialmente. Cursos e monetização de canais de YouTube garantiram renda extra para um grupo de médicos até então desconhecidos. Consultas inflacionaram em mais de 200% em alguns casos. Outros encontraram um novo nicho: consultas para emitir atestados contra a vacinação para covid.

Os médicos que surfaram a onda negacionista da pandemia podem atuar por convicção sincera de confronto ao consenso científico. Mas a CPI da Pandemia revelou que muitos deles ganharam incentivos financeiros para sustentar essas posições, alguns recebendo dinheiro da indústria dos medicamentos que propagandeavam. A biomédica Rute Alves Pereira e Costa recebeu R$ 9.418,78 da Vitamedic, produtora da ivermectina, em 21 de maio de 2021, segundo o relatório da CPI. Sete meses depois do pagamento, ela estava dando entrevistas defendendo a efetividade do vermífugo. Outro caso teria sido da médica Helen Araújo de Meneses Brandão Ramos, que segundo a CPI recebeu R$ 10 mil da farmacêutica.

O endocrinologista Flávio Adsuara Cadegiani também recebeu R$ 10 mil reais da Vitamedic, segundo as investigações. À CPI, o diretor da empresa, Jailton Batista, afirmou que o pagamento a Cadegiani era relativo a pesquisas sobre o medicamento. Mas o fato de ter estado na mira da CPI não atrapalhou os negócios. Com 85 mil seguidores no Instagram, Cadegiani se tornou um profissional concorrido: só tem consulta disponível para maio, ao preço de R$ 1.290.

Com 30 mil seguidores, a médica Lucy Kerr, especialista em ultrassonografia, cobra R$ 1.045 por consulta online e R$ 1.300 por consulta presencial para covid, pós-covid e “ajuda com vacinas”. A agenda dela também está lotada até o final de março. Kerr defende o uso de ivermectina para covid (tratamento comprovadamente ineficaz para a doença) e pós-covid-19 e emite atestado para quem não quer se vacinar.

Já o médico alagoano Marcos Falcão ficou famoso oferecendo laudos gratuitos para quem não quiser se vacinar. Por isso, foi banido do Instagram e do YouTube – mas, neste último, conseguiu na justiça o restabelecimento do canal. Mas é mesmo pelo Telegram que ele cultiva seu público: seu canal tem quase 19.800 inscritos.

No ano passado, o valor de sua consulta era de R$ 250. A fama fez o preço inflacionar: hoje, ele cobra R$ 800 para “orientar para as vacinas e atender pós-covid”. A agenda dele estava lotada na semana em que entramos em contato. Falcão já anunciou que é pré-candidato a deputado federal e afirmou no Twitter que não irá morar no Brasil se Lula vencer a eleição.

https://twitter.com/DrMarcosFalcao/status/1493066886380236804

Já o médico Alessandro Loiola, que ficou conhecido ao publicar no começo de 2021 o livro “Fraudemia – Uma visão pela janela do maior embuste de todos os tempos”, é ainda mais direto. Ao perguntar no WhatsApp de seu consultório sobre consultas e valores, ele já diz que o preço é R$ 500 e que manda o atestado contra vacinação para qualquer pessoa.

Outros são mais cuidadosos. Roberto Zeballos, por exemplo, que concede entrevistas com frequência à Jovem Pan e tem um Instagram com 476 mil seguidores, diz que só atende covid, pós-covid e emite atestado vacinal após exames que comprovem a necessidade. O valor da consulta é R$ 1.800. Mas quem emite o atestado para Zeballos é o médico Francisco Cardoso, que não indicou o CRM quando perguntei.

Ricardo Ariel Zimmerman é um dos poucos médicos com especialização em infectologia que integram o rol dos influenciadores negacionistas. Com 93,8 mil seguidores no Instagram, ele também oferece atestado contra vacinação. “Mas deixo claro que só forneço atestado se houver contraindicação”, pondera. “Receitas e exames são enviados por WhatsApp. O preço da consulta é R$ 850.

Certificado em medicina do esporte, Romualdo Lima, conhecido nas redes como Dr. Doc, também passou a fornecer o atestado na pandemia. Mas sua consulta, com a inclusão de exames, é mais cara: R$ 2.000, valor que pode pode ser parcelado em duas vezes.

A pós-covid é uma nova doença, caracterizada por uma sensação persistente de fadiga, problemas respiratórios e outros sintomas. Por isso, existe uma demanda para esse tipo de consultas, segundo José David Urbaez, presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia do Distrito Federal. O tratamento pode ser multidisciplinar e sintomático.

Quanto à prática de emitir atestados ou laudos contraindicando vacina, o infectologista é taxativo: “Isso beira uma prática criminosa, porque você está expondo as pessoas a se infectarem, terem casos graves e morrerem. As contraindicações para a vacina são mínimas, de menos de 1%. E dizem respeito fundamentalmente a processos alérgicos que a pessoa possa ter com o veículo da vacina. Fora isso, é muito pouco o número de pessoas que têm contraindicação”.

Dúvidas sobre vacinação de crianças também se tornaram um filão lucrativo. Flavio Ferreira, imunologista que bombou em um vídeo defendendo ivermectina ano passado, hoje oferece “orientação” para pais preocupados com a vacinação dos seus filhos. Ele foi alçado à fama em uma live com mais 800 ouvintes no canal do Telegram Médicos Pela Vida, que tem mais de 111 mil inscritos. Hoje, a consulta dele é R$ 1.300. Segundo a pessoa que me atendeu, “a demanda está muito alta, pois muito pai está preocupado com a questão da vacina, né, então a agenda está bem apertadinha”.

A responsável por projetar Ferreira foi Roberta Lacerda, infectologista do Rio Grande do Norte que se notabilizou na defesa do “tratamento precoce”  e hoje é uma das principais líderes do movimento antivax do país. Na semana passada, ela foi convidada por Eduardo Girão para falar no Senado, onde pôde expressar livremente suas opiniões de que a vacina pode provocar “lesão no coração por causa do RNA mensageiro” e “aumentar o número de casos de câncer”. Nada disso tem respaldo científico. Lacerda é também a médica por trás do Covidflix, uma página para reunir publicações antivacina e “fugir da censura das redes sociais”. Detalhe: seu site é financiado por anúncios fornecidos pelo Google, por meio do sistema AdSense.

Anúncios, views e consultas se somam a outra fonte lucrativa: cursos. Um dos pioneiros na prática foi Italo Marsili, psiquiatra, influencer com 1,6 milhões de seguidores, discípulo de Olavo de Carvalho e nome cotado para o Ministério da Saúde.

Outro que costuma faturar com o negacionismo científico é Guili Pech, médico que se notabilizou na defesa do “tratamento precoce“. Sua masterclass custa R$ 290. Hoje, Guili promove seus próprios cursos por meio de seu canal de YouTube, com 15 mil inscritos, que contém várias recomendações de remédios não comprovados contra a covid. O novo curso agora oferecido pela empresa Pech e Marsili de “imunidade blindada” custa R$ 990.

Plenário do Senado Federal durante sessão de debates temáticos destinada a debater a eficiência do passaporte sanitário ?no enfrentamento à Pandemia da covid-19 e seus reflexos nos direitos pessoais, trabalhistas, sociais e religiosos da população. Em discurso, à tribuna, médica infectologista - integrante da Associação Médica do Rio Grande do Norte (AMRN) o comitê científico da Federação dos Municípios do Estado (Femurn), Roberta Lacerda.

Roberta Lacerda associou vacinas a lesões no coração e câncer na tribuna do Senado.

Foto: Pedro França/Agência Senado

Marketing antivax

É comum que médicos transformem seus perfis em ferramentas de marketing. O primeiro problema é que, nesses casos, o discurso vai contra recomendações de saúde pública – e contraria as regras das próprias plataformas. Instagram, Twitter e YouTube criaram diretrizes específicas para coibir desinformação relacionada à pandemia. Mas elas parecem não se aplicar para os médicos que usam as plataformas para se promover com o medo.

“Do ponto de vista do ecossistema onde existem esses influencers, claramente existe essa persuasão irracional. Os pais estão com medo dos filhos serem prejudicados. E isso vem da onde? Desses ecossistemas conspiratórios que estão nas camadas mais profundas, mas interligadas a esses médicos”, me disse Letícia Cesarino, antropóloga e professora da Universidade Federal de Santa Catarina, que estuda bolsonarismo digital desde 2019 e os meios “alt-science” do tratamento precoce desde 2021.

“Não se trata necessariamente de uma negação da ciência. É um fenômeno que reforça esse valor tão presente na nossa sociedade da autoridade do médico para poder validar seus discursos, seus argumentos, seu ponto de vista”, me disse Thaiane Oliveira, professora de comunicação da Universidade Federal Fluminense.

Para Oliveira, a criação de um ecossistema online de médicos negacionistas faz parte de um problema maior: a contestação às instituições democráticas, como a ciência e o Judiciário. Nesse processo, ela explica, “se elegem novas autoridades a partir de outros valores, outros elementos, outros consensos”. Essa seria uma explicação possível para o hábito de defensores do “tratamento precoce” , por exemplo, de chamarem os outros de “verdadeiros negacionistas”.

Teorias conspiratórias do tipo têm na dinâmica das redes sociais um terreno fértil para se propagarem, segundo estudos internos do próprio Facebook. A CPI da Pandemia dedicou várias páginas em seu relatório final apontando a responsabilidade das redes sociais ao permitirem que conteúdos mentirosos sobre covid-19 se propagassem. Nada adiantou.

Mostrei ao YouTube, com ajuda da Novelo Data, que faz análises dos vídeos na plataforma, seis vídeos e três canais explicitamente antivax. Eles não nos responderam a tempo da publicação da reportagem e se limitaram a nos mandar suas regras de comunidade, que dizem limitar conteúdo desinformativo que possa causar danos graves. Mas um levantamento da Novelo mostra que muitos conteúdos que mencionam “tratamento precoce” continuam no ar, monetizados e com milhares de visualizações.

“O YouTube deleta vídeos a conta-gotas quando, para resolver definitivamente o problema de desinformação durante a pior pandemia do século, deveria fazê-lo no atacado”, me disse Guilherme Felitti, sócio da Novelo.

Também mostrei ao Instagram 15 postagens explicitamente antivacina ou que desestimulam a vacinação. A assessoria do Instagram se limitou a dizer que “Páginas, Grupos e contas do Instagram podem ser removidos caso compartilhem conteúdo que viola nossas políticas sobre COVID-19 e vacinação e tenham como objetivo compartilhar informações desencorajadoras sobre vacinação na plataforma”. Os conteúdos proibidos incluem a promoção de recusa a vacina, promoção de tratamentos alternativos e imunidade natural, entre outros.

Também mostramos ao Facebook uma live em que o médico Albert Dickson, deputado estadual do Pros pelo Rio Grande Norte e influencer, que receitava ivermectina em troca de inscrição no canal do YouTube, incentivou as pessoas a se contaminarem com a variante ômicron em vez de se vacinarem. A live foi realizada no Instagram e no Facebook no dia 13 de fevereiro às 21h e depois deletada.

‘O que está em jogo é contestar as instituições responsáveis por mediar relação entre sociedade e organismos públicos’.

A assessoria de imprensa da empresa respondeu mais uma vez de forma genérica. “Não permitimos desinformação grave sobre COVID-19 que possa colocar a vida das pessoas em risco, como declarações negando a existência da doença ou alegações de que as vacinas podem levar à morte, o que não é verdade”.

Mas as regras parecem não se aplicar aos influenciadores negacionistas.

Perguntamos ao Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária, o Conar, se esses conteúdos eram publicidade irregular. Eles afirmaram que “publicidade de serviços médicos é regida pelos respectivos conselhos, que se sobrepõem às normas do Conar”. Também perguntamos ao Conselho Federal de Medicina sobre a posição do órgão em relação às práticas dos médicos. O CFM afirmou apenas que “não comenta casos específicos”.

“No final das contas, o que está em jogo aqui não é não tomar vacina”, me disse Thaiane Oliveira. “É muito mais contestar essas instituições responsáveis por mediar relação entre sociedade e organismos públicos para se eleger novos organismos. De eleger novos sujeitos, novas autoridades”.

“Essa ideologia do bolsonarismo trabalha com o que já tem, como foi o caso do tratamento precoce com remédios que já existem. Mas, quando a relação se inverte, eles vão para o modo de impedir que algo pior aconteça, que é o que Bolsonaro tem a propor para próxima eleição: o terror da volta do PT”, afirmou Letícia Cesarino. “É o que se está propondo nesses ecossistemas: ‘você está com medo da pós-covid, eu vou te tratar’, ‘você está com medo do seu filho ser vacinado, eu vou te dar um atestado’. Isso tem muito no bolsonarismo político também”.

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