A política de poder, aquela cuja máxima é “manda quem pode, obedece quem tem juízo”, jamais deixou de existir nas relações internacionais. Desde o colapso da União Soviética em 1991, a era da unipolaridade dos Estados Unidos (quando havia apenas uma superpotência, inquestionável, na balança de poder global) manteve a estabilidade entre as grandes potências, garantindo que, ao menos no grande tabuleiro da política internacional, não houvesse guerra para a disputa do poder global.
Houve quem, precipitadamente e inadequadamente, dissesse que a História havia chegado ao fim. Segundo Francis Fukuyama, as grandes disputas ideológicas teriam terminado com o fim do socialismo soviético, e que seria uma questão de tempo até que todos os países se tornassem democracias liberais.
No entanto, a guerra da Ucrânia, que se iniciou nesta quinta, 24 de fevereiro, é o marco inequívoco de que os Estados Unidos não são mais a única superpotência global, com capacidade de iniciar ou vencer sozinhos qualquer país ou coalizão. Pela primeira vez desde a 2ª Guerra, um país europeu de grandes proporções é invadido integralmente por outro. Então, o que podemos esperar agora?
A possibilidade de uma 3º Guerra é improvável, ainda que não impossível. É improvável porque os EUA dificilmente entrarão na guerra em favor da Ucrânia, pois não há nenhum acordo de segurança coletiva firmado entre os dois países. Diferentemente de Polônia, República Tcheca, Letônia, Estônia, Lituânia, Romênia, Eslováquia, Albânia, Bulgária e Hungria, a Ucrânia não faz parte da OTAN, a Organização do Tratado do Atlântico Norte.
A OTAN é uma aliança militar cujo princípio fundamental é a defesa conjunta contra um agressor no caso de algum ataque militar contra qualquer um de seus membros – o que chamamos de segurança coletiva. Havia sim um interesse histórico da Ucrânia em aderir à OTAN, mas este processo foi longo, cheio de idas e vindas, e acabou não se concretizando. Logo, inexiste uma causa no direito internacional que force a entrada dos EUA na guerra.
Por outro lado, ela não é impossível, pois não sabemos até onde o governo de Vladimir Putin está disposto a ir como forma de retomar sua zona tampão e afastar as forças da OTAN de suas fronteiras. É evidente que essa política de expansão da OTAN, promovida pelos EUA, incomodou a Rússia – jamais deixaram de pontuar seu desconforto com isso.
A questão é que agora a Rússia, com sua força militar recomposta e de alta tecnologia, tem condições de dizer o “não” de maneira concreta, diferentemente do imediato pós-Guerra Fria. O cientista político John Mearsheimer apontou, na primeira crise ucraniana, quando houve a anexação da Crimeia pela Rússia, em 2014, que a culpa recaía sobre o Ocidente. A invasão completa da Ucrânia agora, portanto, é uma reação (extremada) às políticas ocidentais dos últimos 30 anos.
Uma vez que ressurge buscando retomar o controle do Leste Europeu, há a possibilidade de o apetite russo de afastar o Ocidente de suas fronteiras não se limite apenas à Ucrânia. O Kremlin tem hoje força e disposição para garantir a sua sobrevivência, e busca, através da guerra, recurso extremo da política internacional, retomar sua zona de influência e, provavelmente, de delinear uma “nova” Cortina de Ferro na Europa. O limite são os países que já fazem parte da OTAN, uma vez que, se um for atacado, todos os demais entrarão no conflito.
É importante apontar que há uma evidente aliança balanceadora entre Rússia e China contra os EUA, e ela só aumentará enquanto os estadunidenses mantiverem sua política de engajamento em áreas estratégicas chinesas e russas. Os três países têm, há vários anos, o que autores como Marco Cepik definem como inexpugnabilidade mútua: quando têm força suficiente para responderem militarmente e garantir que não serão atacados por um outro Estado, mantendo, assim, a integridade de seus territórios. E a expansão que os EUA fizeram no Leste Europeu também acontece no leste e sul da Ásia, em regiões que a China considera como prioritárias para a sua segurança.
‘Taiwan é o principal elemento de atenção pelo viés chinês, em uma analogia à Ucrânia para a Rússia’.
O que vemos agora é que a Rússia está disposta a ir além da inexpugnabilidade, atacando outros países para maximizar ainda mais as suas segurança e sobrevivência. As demandas históricas territoriais chinesas são semelhantes ao incômodo russo com a presença de forças ocidentais em locais estratégicos.
A julgar pela primeira (e breve) manifestação da China sobre a guerra da Ucrânia, a declaração que “se todas as partes tiverem promovido diálogos de paz, revisto o contexto histórico da questão da Ucrânia, respeitado e acomodado as preocupações de segurança de um e outro”, poderia facilmente ser aplicada em uma eventual retomada chinesa de Taiwan – que é uma questão de “quando” muito mais do que de “se” irá ocorrer.
A China, por ora, age com a estratégia de buckpassing, passando a batata quente para a Rússia. Ou mesmo de bait and bleed, atiçando Moscou a entrar em guerra e ficando distante enquanto os rivais se enfrentam. Isso a fortalece perante a ambos os lados, pois preserva sua força e vê os dois lados se enfraquecerem em uma guerra. Mas isto não quer dizer que ela não esteja observando tudo atentamente e se preparando para fazer o mesmo quando considerar que o momento é adequado – e notícias dão conta que já estão em aquecimento. Logo, o foco de atenção neste momento, além dos objetivos geopolíticos russos, deve também ser os da China.
Taiwan é o principal elemento de atenção pelo viés chinês, em uma analogia à Ucrânia para a Rússia. Talvez o interesse chinês seja ainda maior do que o russo, porque a Ucrânia emergiu com força política depois da Guerra Fria e se manteve um Estado soberano desde então. Os chineses consideram Taiwan até hoje como uma província rebelde e jamais aceitaram sua independência – garantida pela presença ostensiva dos Estados Unidos.
Ali, sim, pode haver um perigo real e mais direto de conflito entre EUA e China, e tudo nos leva a crer que com suporte da Rússia. Para que uma 3º guerra possa ser evitada, o apoio ocidental nessas regiões deve ser revisto, do contrário, pode haver uma grande guerra em duas frentes para afastar os EUA de seus quintais.
Ironicamente, a guerra da Ucrânia deverá fortalecer as alianças cooperativas ocidentais. OTAN e União Europeia, como reação, devem reforçar suas parcerias estratégicas para dissuadir inimigos. O medo é sempre um importante definidor de alianças em casos de guerra ou de ameaças externas.
Aliados na multipolaridade (contexto em que há três ou mais superpotências no mundo) são muito mais importantes do que na uni ou na bipolaridade (quando há apenas duas superpotências, como na Guerra Fria). Pela experiência história, ainda que mais instável, a multipolaridade tende a ser mais duradoura do que a bipolaridade ou a unipolaridade. Quanto menos polos, maior pressão por um equilíbrio de poder, e menor o período de estabilidade.
A guerra da Ucrânia pode, também, precipitar uma Guerra Fria do século 21, nessa multipolaridade entre EUA versus China e Rússia. Se ela ainda não está plenamente consolidada – e não está –, agora temos todas as condições para seu início. A Guerra Fria foi marcada, em um contexto de bipolaridade, por uma disputa militar, política e geoestratégia entre EUA e URSS, onde ambos os lados se enfrentavam de modo bastante equilibrado. Por mais que tenham se fortalecido econômica e militarmente, China e Rússia ainda não têm condições para enfrentarem os EUA em um conflito armado direto.
No entanto, com Rússia mostrando uma disposição e capacidade ofensiva para alterar o status quo político, e China com sua economia sólida e crescente – além do investimento pesado em armas de alta tecnologia e capacidades militares em geral –, é uma questão de tempo até que ambas, juntas, tenham força suficiente para enfrentar os EUA diretamente. Estamos, neste sentido, em um período que seria equivalente ao fim da 2ª Guerra, quando foram dados os primeiros passos que levaram à Guerra Fria.
Brasil isolado
Agora, mais do que nunca desde o pós-2ª Guerra, o distanciamento e condenação da guerra, marcas da política externa brasileira, seriam desejáveis. Escolher lados em uma guerra tem consequências, e a viagem de Bolsonaro à Rússia já deixou isso evidente. Historicamente, o Brasil teve constâncias em sua política externa, que enfatizavam a solução pacífica de controvérsias, a iniciativa de jamais fazer o uso da força a não ser em legítima defesa, o respeito à integridade territorial de todos os Estados e a não interferência em assuntos de outros países. Esses princípios são constitucionais.
Desde o início da gestão Bolsonaro, esses princípios foram sendo abandonados. E, ao dizer a Putin que “o Brasil é solidário à Rússia” a poucos dias do início de uma invasão de um país soberano, o recado foi dado. Em um momento em que seria importante seu discurso histórico contra guerras e pela manutenção da paz internacional, o Brasil mostra afinidade pelo lado agressor, e isto terá consequências graves para o país.
Por mais que houvesse uma parceria importante com a Rússia em anos recentes, tanto em cooperações bilaterais quanto em organizações multilaterais, como os BRICS, os russos estão longe de serem nossos maiores parceiros comerciais. China, Alemanha, Argentina, Estados Unidos, França e Chile já não viam o Brasil com bons olhos, haja visto que, unilateralmente, Bolsonaro se indispôs com líderes de todos eles. Ao apoiar, ainda que indiretamente, a Rússia agora, aumenta-se ainda mais esse distanciamento de grande parte do mundo Ocidental e nossos principais parceiros para com o Brasil.
‘A não condenação do uso da força pela Rússia representa, sim, a escolha de um lado: o lado agressor’.
A ausência de uma política externa minimamente responsável nos custará em áreas como o comércio internacional, parcerias estratégicas, convênios internacionais e relações diplomáticas. O país seguirá cada vez mais isolado, com poucos aliados e de média ou baixas relevâncias em comparação com os nossos históricos parceiros. O padrão de alianças com governos autoritários, antidemocráticos e contra dos direitos humanos, e não com Estados, como sempre conduzimos nossa política externa, seguirá nos deixando cada vez mais isolados.
Nas declarações que tivemos até o fechamento deste texto, vemos, uma vez mais, contradições fortes dentro do próprio governo. Enquanto aparentemente uma parte racional e pragmática do Itamaraty tenta recuperar, ainda que de maneira muito vaga, a posição histórica brasileira, que contou inclusive com apoio do vice-presidente Hamilton Mourão, Bolsonaro segue silente, o que indica que há, nos bastidores, uma disputa de narrativas em curso.
No entanto, mesmo a tímida nota do Itamaraty contém uma predisposição em tirar da Rússia a responsabilidade pela guerra. Ao dizer que a solução deve levar “em conta os legítimos interesses de segurança de todas as partes envolvidas”, nossa diplomacia implica que parte da responsabilidade pela guerra é da Ucrânia, negando-lhe os princípios de soberania, autodeterminação e integridade territorial, que, pela Constituição Federal, deveriam orientar a política externa brasileira.
Neste momento, a não condenação do uso da força pela Rússia representa, sim, a escolha de um lado: o lado agressor. Ou seja, o Brasil está apoiando a quebra dos princípios políticos e jurídicos que regem as relações internacionais desde o final da 2ª Guerra.
Mesmo com os descalabros de Bolsonaro, não há riscos da guerra chegar até o Brasil (a menos que o Brasil entre na guerra para apoiar a Rússia, o que certamente seria barrado pelos demais poderes). Como colocado, a não ser que a Rússia invada algum país da OTAN, nem mesmo a participação dos Estados Unidos é esperada na Ucrânia. No entanto, a falta de uma condenação da invasão russa trará sérias consequências.
Para o Brasil, mais do que nunca era importante que tivéssemos uma sólida cooperação regional e também relações sul-sul consolidadas. Com o norte global em guerra, haverá pouca atenção para o sul global. Sentiremos o peso do desmanche da Unasul e do enfraquecimento do Mercosul no aspecto regional.
Para que não fiquemos ainda mais isolados, o Brasil precisaria retomar a cooperação sul-sul, da qual era um dos protagonistas e principais participantes, e que ampliava a possibilidade de parcerias comerciais e políticas. Isto é improvável na gestão Bolsonaro, e só deverá ocorrer no caso de derrota do presidente nas próximas eleições.
É importante aguardarmos com atenção o que os demais presidenciáveis falarão sobre este assunto, pois este é um tema fundamental para a economia e para as relações internacionais do Brasil nos próximos anos.
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