As casas de prostituição pipocaram por todo o Brasil a partir da devastação de vidas e de empregos provocada pela pandemia. Em Pernambuco, que liderava a lista dos estados com maiores taxas de desocupação do país em novembro de 2021 (19,3% da população), várias delas estão funcionando sob fachadas diversas, das já clássicas que se vendem como bares até as granjas e sítios voltados para “festas e confraternizações”.
Sabendo que diversos prostíbulos mantêm mulheres cisgêneras e transgêneras em condições bastante adversas (documentos pessoais são retidos pela cafetinagem, falta alimentação adequada, há agressões, aliciamento e presença de menores de idade) e que esse cenário havia piorado por conta da covid-19, um grupo que acompanha casos de tráfico de pessoas passou a se aproximar destes espaços.
Fernanda Falcão, técnica em enfermagem, coordenadora da Rede Nacional de Mulheres Travestis, Transexuais e Homens Trans Vivendo e Convivendo com HIV/Aids e integrante do Grupo de Trabalho Positivo (GTP+), fazia parte dele.
Por conta de uma denúncia, ela e outros colegas foram até um prostíbulo no bairro de Fosfato, em Abreu e Lima, cidade localizada na Região Metropolitana de Recife. Ali, estava Bianca. Poucos dias antes, Bianca, uma mulher transgênera, foi pega à força por outras pessoas, que a agrediram e rasparam sua cabeça. Depois, foi fotografada e sua imagem, em estado deplorável, passou a circular nas redes sociais. Ela queria sair do local, mas tinha medo de sofrer mais violência. O grupo ouviu tanto ela quanto outras mulheres que também queriam deixar o lugar. A polícia foi chamada para acompanhar o processo, mas não apareceu.
Nesse meio tempo, a autora da denúncia foi identificada por dois homens que administravam o local: era Joana, que já conhecia Fernanda anteriormente. Começaram a espancá-la em retaliação. O grupo continuou a chamar a polícia, que finalmente apareceu. Mas, ao ver o estado da denunciante, se recusaram a levá-la ao hospital. O motivo alegado: a jovem estava ensanguentada demais e iria sujar a viatura. “Eu me senti muito mal, muito culpada pelo que Joana sofreu”, conta Fernanda. A PM apenas acompanhou a saída de algumas das mulheres do prostíbulo. Bianca, intimidada pelo espetáculo de violência que presenciou, permaneceu.
No mesmo dia, à noite, Fernanda estava em casa e se preparava para dormir quando ouviu um barulho. Foi até a janela que dava para o quintal e viu um homem com uma arma na mão, dizendo que “ia calar a boca daquele viado”. Ela escutou outra pessoa e o som de uma moto. Correu e se escondeu dentro da própria casa quando passaram a chutar a porta. Ouviu as vozes de vizinhos e percebeu que havia gente conhecida na rua. Saiu correndo e pediu ajuda. Os homens montaram na moto e foram embora, ambos usando capacetes.
Tudo isso aconteceu em junho de 2021. Desde então, Fernanda, temendo ser assassinada, não voltou para casa e vive entre um canto e outro. Está na aterradora condição de jurada de morte.
Esta foi a segunda vez que ela falou sobre viver e morrer para mim: eu a conheci em 2015, enquanto apurava informações sobre pessoas que foram infectadas com o HIV dentro das unidades prisionais de Pernambuco. Foi o caso de Fernanda: ela e mais duas travestis foram presas em 2010 e colocadas em uma mesma cela com 99 homens. Estupros coletivos e outras barbáries aconteceram durante semanas sob a tutela do estado. No presídio, Fernanda contraiu o vírus, e, logo após a notícia, entrou em depressão profunda, virou um fiapo e quis morrer. Eu contei essa história aqui.
Sete anos depois, é o contrário: Fernanda quer se manter viva. Para isso, depois de realizar uma campanha de financiamento para comprar a passagem aérea, vai embora do país.
Maria me envia um áudio sucinto: “eu saí do Brasil porque não tinha a garantia do estado para me proteger”.
No outro lado do mundo, a ativista vai tentar encontrar outra mulher com corpo e história bastante semelhantes aos seus: é Maria Clara de Sena, refugiada no Canadá desde 2017, quando deixou o Brasil após também ser jurada de morte. Fazia parte do Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura do governo pernambucano quando, durante uma visita técnica ao presídio de Santa Cruz do Capibaribe, no agreste do estado, sofreu um atentado por parte de um agente penitenciário.
Naquele momento, Maria ainda não tinha o nome social registrado nos documentos e, quando se apresentou para realizar o trabalho no local, foi constrangida pelo agente, que insistiu em chamá-la pelo nome do registro. Ela o corrigiu e ele não gostou: chamou-a de “viado preto” e colocou um revólver na sua cabeça. A Secretaria de Justiça e Direitos Humanos (SJDH) foi notificada sobre a ameaça grave e abriu um Processo Administrativo Disciplinar (PAD) sobre o funcionário, que foi afastado das atividades por 30 dias.
Mas a história não terminou por aí: foi justamente por ter notificado o caso para o mesmo estado no qual trabalhava que Maria Clara passou a ser monitorada e assediada por outros agentes penitenciários. Nos presídios que visitava, dias e semanas após a ameaça, escutava gracejos e intimidações: chegavam a demonstrar espanto ao dizer que ela “ainda” permanecia viva.
Maria entendeu o recado: procurou ajuda dentro do próprio governo estadual e foi incluída no Programa Estadual de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos. Mas a única diferença prática entre a nova condição e a anterior foi um papel com seu nome. Além disso, não havia nada que efetivamente a protegesse das constantes ameaças.
Passou a ser seguida e a receber ligações não identificadas. Descobriram seu endereço. Ela saiu de casa, foi morar em outro local, foi descoberta de novo. Depois, por alguns meses, saiu do estado, mas precisou voltar. A vida se transformou em um susto, como ela conta neste relato para a Marco Zero Conteúdo.
Dentro de um metrô em Toronto, Maria me envia um áudio sucinto: “eu saí do Brasil porque não tinha a garantia do estado para me proteger”.
Essa é outra relação, para além da pele preta, do trabalho com direitos humanos e da transgeneridade, que Maria Clara possui com Fernanda: a técnica de enfermagem ameaçada dentro de casa também procurou o mesmo programa de proteção do governo. Em 22 de janeiro deste ano, finalmente recebeu um papel semelhante ao de Maria, além de R$ 200 disponibilizados durante três meses para um tratamento psicológico. E a proteção acabou por aí.
Através da rede LGBTQIA+, a ativista conseguiu apoio de uma ONG irlandesa criada para proteção de defensores de direitos humanos, a Front Line Defenders. Foi assim que conseguiu passar três meses fora do estado. Quando voltou, sem poder ir para casa, sem dinheiro para pagar aluguel e sem se alimentar direito, a técnica em enfermagem ainda sofreu uma tentativa de sequestro: tentaram colocá-la dentro de um carro quando ela caminhava na rua. Reagiu, teve os cabelos puxados, conseguiu sair correndo. Uma viatura da PM estava nas imediações e ela pediu ajuda. Amenizaram a situação e falaram que os “caras só deviam estar procurando por um programa”.
(…)
Naquele momento, vez de esperar ser assassinada, Fernanda decidiu que iria morrer por conta própria: primeiro, tentou o suicídio. Depois, a exemplo da ativista e publicitária Neon Cunha, que em 2016 pediu na Justiça o direito à morte assistida caso não pudesse mudar de nome e gênero em seus documentos sem ter que passar por cirurgias, tentou entrar com a mesma ação da Defensoria Pública Estadual, mas não foi atendida pelo órgão. O processo pedia um acompanhamento maior e, sem dinheiro para advogadas, Fernanda desistiu do pedido.
No dia em que a reencontrei, no GTP+, eu estava justamente com Neon Cunha, minha amiga, ao meu lado. Fiz algumas fotos das duas, cujas trajetórias contam muito sobre como cada dia de existência de uma travesti e de pessoas transexuais no Brasil é a conquista de um universo inteiro (e eu adoraria que isso fosse apenas um exagero fruto de escorpião com ascendente em câncer).
Tchau, Fernanda
Vivendo hoje na condição de refugiada no Canadá, Maria conta que está vendo aulas do curso Working with people in social sector, voltado para trabalhos relativos à assistência social, refugiados, imigrantes e cidadãos canadenses. Também está estudando inglês e planeja um livro escrito na nova língua que está aprendendo. Depois de se aproximar de movimentos de direitos humanos naquele país, ela consegue traçar o contraste gigante entre lá e cá. “No Canadá, as pessoas que trabalham com DH são ouvidas e conseguem fazer seu trabalho. No Brasil, o governo não irá fazer nada para mudar essa realidade se as pessoas afetadas não saberem do poder que elas têm”, diz.
Para Fernanda, abrir uma campanha de financiamento não foi fácil: ela via o ato como um quase acinte frente à realidade que ela presencia – e participa – das pessoas travestis e transexuais no país. Mas, sem alternativas que garantam sua sobrevivência, seguiu os conselhos de amigas próximas, que a ajudaram a abrir a vaquinha virtual. Em menos de 24 horas, conseguiu o valor das passagens aéreas. Semanas depois, um visto temporário de seis meses na Espanha. Nesse meio tempo no país europeu, ela planeja pedir asilo político no Canadá. “Estou organizando documentos, quero aprender outra língua, dar continuidade à minha vida. Aqui, eu não posso mais ir aos espaços LGBT, onde dialogava com os meus. Tenho conversado com as meninas, ensinando o que podem fazer para se fortalecer, os contatos das organizações. Eu vou embora, mas queria ficar. As minhas manas estão nas ruas, estão passando fome. É muito constrangedor, muito difícil pedir dinheiro para as pessoas em meio a essa situação. Mas eu não quero morrer, Fabiana, eu quero ficar viva. Eu também preciso cuidar de mim”.
Tentei falar com alguém da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos durante dias, mas o esforço empreendido pelo governo estadual nas redes sociais – com ênfase no Instagram – foi inversamente proporcional àquele dispensado à imprensa. Aliás, é um caso interessantíssimo: existe um email Imprensa Secretaria de Justiça e Direitos Humanos com o qual me comuniquei, existe um perfil da pasta no citado Instagram, existe um site da secretaria, mas a mesma não consta entre as listadas no site do governo.
Desde 2015, a pasta era encabeçada por Pedro Eurico, que pediu afastamento em dezembro após a economista Maria Eduarda Marques de Carvalho, sua ex-mulher, denunciar que era agredida e ameaçada de morte há 25 anos pelo ex-secretário. Eduardo Gomes de Figueiredo foi então apresentado como nova pessoa à frente da SJDH.
Como não consegui falar diretamente com uma pessoa responsável pelo programa instituído em 2012 pela Lei n. 14.912 pelo então governador Eduardo Campos, enviei as perguntas abaixo:
- Como funciona o programa de proteção?
- Quantas pessoas, atualmente, trabalham nele?
- Qual a verba anual?
- Qual a estrutura técnica?
- Pessoas como Maria Clara de Sena (hoje no Canadá) e Fernanda Falcão (indo para a Espanha) entraram no programa de proteção, mas a institucionalização não garantiu que, na prática, elas parassem de ser ameaçadas. Foram embora do país para se proteger. Por qual razão o mecanismo falha, usando estes casos como exemplos?
- O que seria necessário para que o programa funcionasse efetivamente? Vocês seguem algum modelo nacional ou internacional?
- Quantas pessoas estão hoje sendo protegidas pelo programa?
Como de praxe quando é procurado para dar informações sobre o programa de proteção – foi assim há anos quando o auto-exílio foi protagonizado por Maria Clara –, o governo estadual prezou pela transparência precária e enviou uma nota, que segue abaixo na íntegra:
“A Secretaria Executiva de Direitos Humanos (SEDH) informa que o Programa Estadual de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos (PEPDDH), criado por meio da Lei Estadual 14.912/2012, protege as pessoas ameaçadas de morte em função da atuação destas em defesa dos direitos humanos. Essa proteção se dá no local de militância do sujeito protegido e é estendida a familiares, grupos e comunidades. As iniciativas do programa versam de esforços para fortalecer a militância das pessoas protegidas, dando visibilidade às suas pautas e incidindo nas causas geradoras das ameaças. O PEPDDH está em plena atividade, protegendo, atualmente, 45 pessoas com o apoio da sua equipe disciplinar formada por assistente social, psicólogo, assessor jurídico, antropólogo, apoio administrativo e coordenadores.”
É isso: o programa funciona hoje assim, no papel. Para mim, ficou ainda mais claro porque Fernanda está indo embora.
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