Aos 52 anos e pai de uma filha, Pedro fez do Uber sua principal fonte de renda. Ele passa até 12 horas por dia no carro. As pausas são controladas: “Eu tenho metas. Se eu não trabalhar, não sou pago”, diz. Sem saber como funcionam os algoritmos que ditam os preços, ele fica refém do que a plataforma impõe. É obrigado a aceitar as promoções e impedido de cancelar corridas, mesmo que os passageiros se recusem a usar máscara ou colocar os cintos de segurança. “A Uber se comporta como se o carro fosse deles. Mas é meu”, ele declarou.
Os problemas de Pedro com a Uber são crônicos – e, agora, quantificáveis. A empresa tirou nota 1 na primeira avaliação feita no Brasil dos pesquisadores do projeto Fairwork, que estabeleceram cinco critérios de “trabalho decente” para avaliar o funcionamento das empresas que operam na chamada “economia de plataforma”, caso de Uber, iFood, 99 e outras. O relatório inédito, lançado hoje, dá uma nota de 0 a 10 para critérios como salário, condições de trabalho e transparência. Pedro foi um dos entrevistados pelos pesquisadores.
Nessa edição do relatório, a primeira feita no Brasil, foram avaliadas seis empresas – e a nota máxima foi 2, colocando o país entre os piores lugares do mundo para os trabalhadores de plataformas.
Rappi, GetNinjas e Uber Eats zeraram – isso significa que não pontuaram absolutamente nada nos critérios de “trabalho decente”. O Uber atingiu a mísera nota 1. O iFood e a 99, as empresas melhor avaliadas, conseguiram uma risível nota 2 – e isso depois de se movimentarem, ao saberem da existência do ranking, para cumprir alguns dos critérios levantados pelos pesquisadores.
O projeto Fairwork foi criado por pesquisadores da Universidade de Oxford, no Reino Unido, e da WZB Berlin Social Science Centre, da Alemanha. No Brasil, é liderado por Rafael Grohmann e outros pesquisadores do Digilabour, grupo de pesquisa ligado à Unisinos. O projeto avalia as empresas que operam no capitalismo de plataforma em cinco critérios diferentes. O primeiro é a remuneração justa: os trabalhadores devem ser pagos de forma decente, respeitando os salários mínimos e o custo de vida local. O segundo é sobre as condições de trabalho, como riscos à saúde e segurança. Depois, contratos justos: os termos e condições devem ser acessíveis e compreensíveis.
Há também o critério de gerenciamento justo – ou seja, trabalhadores devem ser ouvidos e informados sobre as decisões. O uso de algoritmos deve ser transparente, assim como os outros processos de inclusão ou desligamento. Por fim, há o critério de representação: os trabalhadores precisam ser ouvidos, inclusive através de organizações coletivas que devem ganhar o poder de negociar com as empresas.
Não é preciso muito esforço para saber porque as empresas se saíram tão mal no Brasil.
O mínimo do mínimo
No primeiro critério, sobre a remuneração, só uma das empresas analisadas conseguiu comprovar que garante o pagamento de um salário mínimo (R$ 1.212 hoje) aos trabalhadores: a 99. As outras não têm nenhuma base mínima de ganhos aos entregadores e prestadores de serviços.
Políticas de assistência à saúde e acidentes e oferta de equipamentos de proteção garantiram à Uber e à 99 a pontuação mínima no critério de condições de trabalho. Nas demais plataformas, os pesquisadores constataram que, além da dificuldade em conseguir equipamento de proteção, também há falta de infraestrutura básica como banheiros, áreas de descanso e água potável. Também há riscos de acidentes e saúde, estresse e problemas psicológicos.
A forma como os trabalhadores são contratados mostrou problemas em todas as plataformas analisadas. Em um primeiro momento, nenhuma delas tinha linguagem compreensível e acessível nos contratos. O iFood, após ser contatado pelos pesquisadores, alterou seus termos e condições, usando palavras mais acessíveis, conseguindo uma pontuação mínima.
Uma das maiores dificuldades, no entanto, é o gerenciamento – um dos maiores problemas da área no Brasil, segundo os pesquisadores. Nenhuma plataforma oferece canal de comunicação, transparência em casos de cancelamento e políticas antidiscriminação. É o caso dos motoristas que têm suas contas banidas e não são avisados, por exemplo. Além disso, as plataformas não oferecem uma pessoa – mas apenas robôs e mensagens automatizadas – para dialogar com os trabalhadores.
Um dos piores do mundo
Apesar de não terem o salário mínimo garantido, no Brasil trabalhadores de plataformas costumam trabalhar mais de 44 horas semanais, segundo o relatório. O controle da carga horária é feito de forma automatizada, com algoritmos, que também definem a remuneração seguindo critérios que raramente são transparentes. Mas, para os pesquisadores, o uso de robôs não tira a responsabilidade das empresas sobre os prestadores de serviço. “O controle algorítmico sobre os trabalhadores pode ser reconhecido como equivalente ao controle exercido por um superior imediato”, escreveram os pesquisadores. Além disso, para eles, há indicadores nas leis trabalhistas de que muitos trabalhadores de plataformas poderiam, na verdade, ser caracterizados como empregados.
A Justiça do Trabalho, no entanto, tem um entendimento diferente. Uma pesquisa de 2020, feita com 432 decisões judiciais, mostrou que só 42% delas foram favoráveis aos trabalhadores. “As plataformas digitais têm usado estatísticas judiciais para prevenir a formação de precedentes adversos que confirmem o status de empregados dos trabalhadores de plataformas”, escreveram os pesquisadores.
A Fairwork já fez análises semelhantes em 26 países. Segundo a organização, os resultados brasileiros são semelhantes a de outros países latino-americanos, como Colômbia e Chile, mas bem piores do que em outros continentes. Países norte-americanos, europeus e africanos têm empresas que atingiram a pontuação máxima, o que mostra que não são metas impossíveis de serem alcançadas.
“É uma situação que vemos em vários países da América Latina. As plataformas de delivery normalmente têm pontuação baixa quando trabalham com prestadores de serviço independentes, pagos por entrega”, me disse Tatiana López Ayala, pesquisadora da Fairwork no WZB Berlin Social Science Centre.
Na Alemanha, organização de trabalhadores fez sugirem leis que forçaram empresas a fornecer bicicletas, casacos e até internet móvel.
Segundo ela, os resultados são piores justamente em locais a prestação de serviço é feita por independentes, como no Brasil. Nesses casos, os trabalhadores não recebem nenhum tipo de equipamento, usam as próprias bicicletas, motos e carros no serviço e precisam cobrir todos os custos relacionados a ele. “Mesmo se ganham mais de um salário mínimo, especialmente quando trabalham muitas horas, é muito inseguro. Porque em um mês podem ganhar mais de um salário, mas no mês seguinte têm menos pedidos, ou custos são mais altos, como por exemplo com a gasolina, e não atingem o mínimo”.
Na Alemanha, por exemplo, a situação é diferente. Lá, empresas adotam medidas que as fazem chegar até a nota 9 no ranking. “A maioria dos trabalhadores têm um contrato regular, recebe férias e tem garantia de que receberá pelo menos um salário mínimo, mesmo que não tenha muitos pedidos”, me disse Ayala.
A principal razão, para a pesquisadora, não está apenas na regulação mas, principalmente, na organização e consequente pressão dos trabalhadores. “Na Alemanha houve vários processos trabalhistas, pressionaram as plataformas e com isso surgiram leis que, por exemplo, forçaram as empresas a fornecer material de trabalho, como bicicletas, casacos e capas de chuva”, ela explicou. Em alguns casos, até mesmo os gastos com a internet móvel, essencial para o trabalho, são cobertos.
Na Alemanha, além de a justiça ter estabelecido alguns padrões mínimos em decisões trabalhistas, os motoristas e entregadores de plataformas têm organizações fortes e poder de barganha junto às empresas. No Brasil, por enquanto, essa realidade está longe – a pesquisadora atribui ao clima político, mas olhar para fora pode indicar caminhos para a mudança por aqui também. “A luta é nas ruas e nos tribunais”, afirmou Ayala.
No Brasil, segundo o relatório, algumas plataformas estão fazendo mudanças em suas práticas baseadas em seu engajamento com a Fairwork. O iFood, por exemplo, incluiu em seu site uma atualização sobre as políticas para garantir uma remuneração mínima aos entregadores. O comunicado entrou no ar no sábado, cinco dias antes de o relatório ser publicado.
Em comunicado ao Intercept, a Uber reconheceu que “é preciso avançar em mecanismos que melhorem a proteção social dos trabalhadores de aplicativo para que esses profissionais independentes possam exercer plenamente sua atividade”. A empresa afirmou que “vem implementando várias medidas”, e diz lamentar que a Fairwork “ignorou os fatos” em três princípios. Um deles é a remuneração – a empresa afirma que os motoristas “que dirigem por volta de 40 horas têm ganhos de cerca de R$ 1.300 por semana”. A Uber também diz que a desativação de contas de motoristas “não acontece com frequência” e a empresa é a “única plataforma a disponibilizar processos”. Por fim, a empresa garante que os termos e condições “sempre permanece à disposição” e qualquer alteração precisa passar por revisão obrigatória.
Atualização – 17 de março de 2022, 15h52
O texto foi atualizado para incluir o posicionamento da Uber.
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