Em janeiro de 2018, ano eleitoral, o então procurador da Lava Jato, Deltan Dallagnol, abriu o Telegram e iniciou uma conversa consigo mesmo sobre uma possível nova carreira política. O bate-papo com seu ego funcionou como um espaço de reflexão para o ex-procurador, que chegou a se considerar “provavelmente eleito” e sonhou com a possibilidade do “MPF lançar um candidato por estado”. Ali, no escurinho do Telegram, Dallagnol se sentiu à vontade para planejar uma carreira na política partidária para si e para seus colegas lavajatistas do Ministério Público Federal.
Outras conversas do Telegram já haviam revelado que Dallagnol e a Lava Jato perseguiam alguns políticos e poupavam outros. Lula era a presa preferida, enquanto políticos como Alvaro Dias, que costumava viajar no jatinho do ex-doleiro Alberto Youssef, eram poupados das investigações. Graças a essa blindagem fornecida por Dallagnol e sua turma, Alvaro Dias, do Podemos, pôde passar a campanha inteira se gabando por não ter sido alvo da Lava Jato.
No ano passado, os sonhos presentes nas conversas do ex-procurador no Telegram começavam a se realizar. Dallagnol e Moro entraram juntos para o Podemos, apadrinhados por …. Alvaro Dias. A carreira política de ambos era pavimentada enquanto perseguiam aqueles que viriam ser seus concorrentes políticos e poupavam possíveis aliados. Isso seria um escândalo de enormes proporções caso não tivéssemos uma imprensa majoritariamente comprometida com os objetivos políticos do lavajatismo.
Agora, longe do escurinho do Telegram, as coisas têm se complicado para o novo político do Podemos. Nesta semana, Dallagnol foi condenado pelo STJ por 4 votos a 1 a indenizar o ex-presidente Lula em R$ 75 mil por danos morais causados pela famigerada entrevista coletiva em que apelou para um PowerPoint tosco, cheio de suposições infundadas e cujo conteúdo não tinha relação com a denúncia que seria apresentada, a do triplex do Guarujá, que tempos depois seria anulada pelo STF.
Para o relator do caso no STJ, Lula foi apontado indevidamente como “comandante máximo do esquema de corrupção” e “maestro da organização criminosa”, quando essas questões nem sequer haviam sido objetos da denúncia oferecida pelo MPF. Dallagnol apresentou Lula para a imprensa como culpado quando ele ainda nem havia sido julgado.
São muitos os esqueletos no armário do ex-procurador. Faltariam balãozinhos no PowerPoint para denunciar Dallagnol com as irregularidades cometidas durante sua carreira no MPF. Não foram poucas. A atuação política no MPF fez com que Dallagnol fosse alvo de 52 processos no Conselho Nacional do Ministério Público, dos quais 49 eram reclamações disciplinares. O ex-procurador foi punido em apenas dois desses casos. Sua saída do MPF no ano passado foi providencial, fazendo com que todos os processos restantes fossem automaticamente extintos. Mas essa meia centena de processos precisa constar em um PowerPoint contra Deltan Dallagnol, não é mesmo?
O ex-procurador agora busca um mandato que lhe dê o conforto da imunidade parlamentar e a segurança do foro privilegiado.
Após ser condenado por difamação no processo movido por Lula, Dallagnol passou a promover, ainda que de maneira indireta, uma campanha para arrecadar dinheiro para o pagamento da indenização. Segundo ele, as pessoas descobriram seu PIX na internet e passaram a fazer doações espontaneamente. A arrecadação já ultrapassou R$ 300 mil, mas ele garante que doará o excedente para instituições que cuidam de pacientes com câncer. Ou seja, além de não precisar tirar dinheiro do bolso para pagar indenização, Dallagnol poderá posar de bom samaritano fazendo caridade às vésperas de uma eleição em que irá concorrer como deputado federal.
Não é que Deltan não tenha dinheiro para pagar a indenização. Ele faturou alto com palestras feitas graças à fama conquistada pela sua atuação na Lava Jato. “Palestras suspeitas” seria outro item do PowerPoint do lavajatista. Com base nas conversas do Telegram, o Intercept revelou que Dallagnol afirmou ter faturado quase R$ 400 mil com palestras e livros em 2018.
Diálogos de Dallagnol com os procuradores tratavam sobre como obter lucro realizando palestras pagas por empresas e entidades interessadas em associar suas imagens à Lava Jato. O fato motivou um dos processos contra Dallagnol no CNMP. As conversas do Telegram mostraram também que os procuradores articularam a criação de uma empresa de fachada para receber os pagamentos por essas palestras. O plano dos procuradores era colocar suas mulheres como sócias da empresa para evitar questionamentos. Em uma conversa com sua esposa, Dallagnol contou o plano de como faturar às custas da fama conquistada na Lava Jato: “Vamos organizar congressos e eventos e lucrar, ok? É um bom jeito de aproveitar nosso networking e visibilidade”.
Em 2017, Dallagnol cobrou um cachê de R$ 30 mil para dar uma palestra sobre combate à corrupção na Federação das Indústrias do Ceará. Além do cachê, o então procurador exigiu do contratante o pagamento de passagem e hospedagem no parque aquático Beach Park para ele, a mulher e os dois filhos. Um mês depois, chamou o então juiz Sergio Moro no Telegram para sugerir que ele também aceitasse o convite para palestrar lá: “Eu pedi pra pagarem passagens pra mim e família e estadia no Beach Park. As crianças adoraram. Além disso, eles pagaram um valor significativo, perto de uns 30k [R$ 30 mil]. Fica para você avaliar.”
A voracidade em faturar era grande, chegando ao ponto até mesmo de palestrar para empresas investigadas pela Lava Jato. Dallagnol recebeu R$ 33 mil da Neoway, uma companhia de tecnologia, quando ela já estava citada em uma das delações da força-tarefa. Em 2018, participou de um evento secreto da XP Investimentos que reuniu representantes de bancos e investidores influentes no Brasil e no exterior. Em conversa com o procurador Roberson Pozzobon, ele avaliou os ricos que esse encontro secreto poderia trazer à sua imagem: “Achamos que há risco sim, mas que o risco tá bem pago rs”.
Outro balãozinho que cairia bem em seu PPT é “Condenado por tuítes”. Não foi só no escurinho do Telegram que Deltan tentou interferir no jogo político partidário. O então procurador costuma usar o Twitter para fazer pressão pública no STF e influenciar até mesmo na eleição de presidente do Senado.
Se Renan for presidente do Senado, dificilmente veremos reforma contra corrupção aprovada. Tem contra si várias investigações por corrupção e lavagem de dinheiro. Muitos senadores podem votar nele escondido, mas não terão coragem de votar na luz do dia. https://t.co/VbDs3Z7weB
— Deltan Dallagnol (@deltanmd) January 9, 2019
Essa escancarada atuação política partidária foi condenada pelos conselheiros do CNPM, que aplicaram a pena de censura contra o procurador, confirmada posteriormente pelo STF. Na decisão, o relator destruiu o mundo de sonhos de Dallagnol: “não se pode ter o melhor dos dois mundos: não é possível ser um agente titular da ação penal e ainda ser um político”.
Em novembro de 2019, o CNMP aplicou uma penalidade de advertência contra Dallagnol depois que ele afirmou que o STF passava a mensagem de leniência a favor da corrupção. Agora, como político, ele se sente mais livre para continuar fazendo o mesmo tipo de ilação contra o STF — algo que os políticos bolsonaristas costumam fazer em seus ataques a contra democracia .
E vocês, já desvendaram esse mistério? pic.twitter.com/4veEtQicfi
— Deltan Dallagnol (@deltanmd) March 24, 2022
Outro balãozinho importante no PowerPoint de Deltan é o “Diárias”. Ele e sua turma da Lava Jato se lambuzaram na farra das diárias. Só o procurador Diogo Castor de Mattos recebeu pelo menos R$ 376 mil em diárias para trabalhar em Curitiba mesmo morando em… Curitiba. Castor não foi o que mais recebeu diárias, nem o único. E tudo isso foi feito sob a supervisão de Dallagnol. O TCU obrigou os procuradores lavajatistas a devolverem as diárias e hospedagens milionárias por entender que houve danos aos cofres públicos com despesas irregulares. A mamata acabou.
“FBI” é outro item que precisa constar no PowerPoint. Uma reportagem da Agência Pública, em parceria com Intercept, revelou que Dallagnol participou de um conluio com o FBI sem comunicar o Ministério Público e à revelia do Ministério da Justiça. Desde 2015 os procuradores lavajatistas mantinham conversas secretas com investigadores americanos, inclusive sobre casos envolvendo a Petrobras. Dallagnol chegou a receber uma delegação dos EUA composta por 17 pessoas, entre procuradores e agentes do FBI.
A partir de então, foram muitas as viagens de agentes do FBI ao Brasil para cooperar com as investigações da Lava Jato, chegando até mesmo a se reunir secretamente com advogados de delatores. Pela lei, é proibido a qualquer polícia estrangeira realizar investigações em solo brasileiro sem autorização expressa do governo. Mas o cumprimento das regras nunca foi um empecilho para Deltan, que sempre soube dos interesses dos americanos em assuntos envolvendo a Petrobras. O governo americano já havia espionado a estatal. O STJ mandou investigar essa colaboração secreta.
Outro item fundamental é o da “Fundação Lava Jato”, um clássico da cara de pau lavajatista. Talvez seja o mais absurdo de todos. Em janeiro de 2019, a Lava Jato comemorou um acordo bilionário para a Petrobras feito com a Justiça americana. Uma bolada de R$ 2,5 bilhões foram recuperados através de repatriações, multas, delações premiadas e acordos firmados. Dallagnol não quis que esse dinheirão todo fosse para os cofres públicos, mas para os cofres de uma entidade privada a ser criada e que ficaria sob o comando do Ministério Público Federal no Paraná e do Ministério Público do Paraná.
Trata-se de uma violação da legislação brasileira sob qualquer ponto de vista. Quem deve decidir o destino do dinheiro público são os parlamentares eleitos, como atestou o STF ao decidir pela suspensão da criação do fundo lavajatista.
O STF anulou todas as denúncias feitas por Dallagnol e sua turma contra o ex-presidente, que hoje recuperou seus direitos políticos e é considerado inocente perante a lei. E tudo indica que haverá novas derrotas jurídicas no horizonte de Dallagnol.
Diante desse cenário em que deixou de ser pedra para virar vidraça, o ex-procurador agora busca um mandato que lhe dê o conforto da imunidade parlamentar e a segurança do foro privilegiado. Para realizar esse objetivo escolheu se candidatar pelo Podemos, um dos partidos que mais apoiaram o governo Bolsonaro até agora.
Um levantamento do Congresso em Foco revelou que o partido de Dallagnol votou junto com Bolsonaro em 80% das vezes na Câmara e no Senado. Lembremos também que as arbitrariedades da Lava Jato contra políticos — mas só contra alguns políticos — pavimentaram o caminho para a vitória eleitoral de um extremista com discurso antipolítica que, como Alvaro Dias, se gabava de não aparecer nas investigações da força-tarefa. Agora Dallagnol está no mesmo partido de bolsonaristas ferrenhos, como Eduardo Girão e Marcos do Val, que formaram a tropa de choque bolsonarista na CPI da Covid.
O plano de Dallagnol seguia perfeito enquanto estava restrito à privacidade do Telegram. O vazamento das suas conversas jogaram tudo por água abaixo. Suas intenções políticas foram escancaradas, suas denúncias foram anuladas e desmoralizadas, o faturamento com palestras irregulares foi revelado e o sonho do fundo privado foi para as cucuias. Esse é o currículo que esse paladino da moral na vida pública construiu até aqui.
Resta saber o que Dallagnol será capaz de fazer quando estiver protegido por um mandato parlamentar.
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