Mensagens de WhatsApp revelam que o presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, o Ibama, Eduardo Fortunato Bim, pressionou o então superintendente do órgão no Pará para derrubar embargos contra a mineradora Gana Gold. A empresa extraiu mais de R$ 1 bilhão em ouro de uma unidade de conservação federal com licença ambiental irregular.
As mensagens foram compartilhadas por uma fonte anônima e verificadas pelo Intercept.
A Gana Gold foi embargada pelo Ibama em 9 de setembro do ano passado durante a operação Gold Rush, da Polícia Federal. Naquele dia, cerca de 30 agentes da PF cumpriram mandados de busca e apreensão de amostras de ouro na mineradora situada na região garimpeira Água Branca, em Itaituba, no sudoeste do Pará. Eles foram analisar se o ouro da mina tem as mesmas características geológicas de uma carga de 39 kg de ouro ilegal apreendida no aeroporto de Jundiaí, em São Paulo, no mês anterior. A PF chegou a prender um homem em flagrante por portar uma arma com numeração raspada.
Quatro dias depois, o celular de Washington Luís Rodrigues, um oficial da Polícia Militar paulista alçado a superintendente do Ibama no Pará por Ricardo Salles, começou a receber mensagens de texto e áudio disparadas de Brasília. As primeiras, no dia 13 de setembro, foram de Fernando Leme, chefe de gabinete da presidência do Ibama. Ele pediu uma audiência com Rodrigues e encaminhou uma mensagem do advogado da Gana Gold, Artur Mendonça Vargas Junior.
O superintendente perguntou o número do processo e respondeu: “Não vamos prometer nada né”. O chefe de gabinete concordou que a audiência seria “sem prometer nada”, mas pediu para “fazer o que é possível” e mandou uma cópia da petição apresentada pelo advogado e uma foto do cartão dele.
No dia seguinte, a pressão veio de cima. Eduardo Bim mandou uma foto da petição do advogado da Gana Gold, mesmo documento que havia sido enviado no dia anterior pelo chefe de gabinete.
Além de enviar a foto da petição, Bim escreveu para Rodrigues ver “rápido” a situação do processo. O superintendente respondeu que o processo da Gana Gold “está na Cofis”, a Coordenação de Fiscalização do órgão, em Brasília. Isso significa que o processo teve andamento após a fiscalização no dia 9. Ao invés de ficar contente com o funcionamento do instituto que preside, Bim demonstrou irritação: “Pqp”.
Na mesma conversa, Bim enviou dois áudios para Rodrigues: o primeiro perguntando o porquê de o processo de embargo ter sido encaminhado para a Cofis; o segundo já é mais direto sobre a intenção do presidente do Ibama.
“Ô Washington, dá um jeito nesse processo aí, cara, porque parece que tem uma licença estadual que foi expedida no dia do embargo. Eles [fiscais do Ibama] contestaram a licença municipal, mas mesmo que a licença municipal não valha, hoje tem a estadual, então fala pro pessoal analisar isso aí rápido”, disse o presidente do Ibama no áudio. Mostrei a gravação a duas pessoas que conhecem a cúpula do Ibama – ambas confirmaram se tratar da voz de Bim. Ouça os áudios no vídeo a seguir.
Conforme pode ser visto na movimentação do Sistema Eletrônico de Informações do Ibama, o SEI, em momento algum o procedimento da Gana Gold passou oficialmente pelo gabinete da presidência. Isso significa que todas as ações do presidente e do seu chefe de gabinete foram extraoficiais.
“À primeira vista, não há nada de incomum em um superior hierárquico solicitar algo a um servidor a ele subordinado. Todavia, os atos administrativos, por força constitucional, não podem prescindir de transparência e impessoalidade. Assim, diante do que se apresenta nesse caso concreto, seria importante investigar a observância desses princípios para avaliar se houve, ou não, alguma forma de privilégio e, até mesmo, tráfico de influência”, me disse Carolina Santana, doutoranda em Direito Constitucional pela UnB, a Universidade de Brasília, e advogada especialista em causas indígenas e ambientais.
Desde junho do ano passado, Bim é investigado, junto com o ex-ministro Ricardo Salles, no Supremo Tribunal Federal em inquérito que apura a possível prática de advocacia administrativa — quando um servidor atua a favor de interesses privados perante a administração pública —, além de obstrução à fiscalização e embaraço de investigação sobre organização criminosa.
A investigação envolve empresas que exportavam madeira ilegalmente da Amazônia, crime que foi denunciado pelo Intercept em março de 2020. Por causa desse inquérito, Bim chegou a ficar afastado do cargo de presidente do Ibama por 90 dias no ano passado, em decisão do ministro Alexandre de Moraes.
Em nota, o Ibama não negou os fatos denunciados, apenas citou que a presidência do órgão “pediu celeridade à superintendência estadual”. Na quinta-feira, 24 de março, três dias após pedirmos um posicionamento do Ibama citando a denúncia de Rodrigues, o governo publicou a exoneração dele do cargo de superintendente do órgão no Pará.
Conversei por telefone com Washington Luís Rodrigues na quinta-feira, após a publicação da sua exoneração. Ele afirmou que prestou depoimento voluntário na Polícia Federal em Belém, em 17 de novembro, e que na ocasião relatou a delegados da PF “informações sobre a conduta do presidente do Ibama, Eduardo Bim, após o embargo da Gana Gold”. O ex-superintendente também disse que entregou o conteúdo das conversas com Bim aos delegados da PF. Procurada, a Polícia Federal em Belém não respondeu as nossas perguntas sobre a denúncia feita por Rodrigues.
Esta reportagem faz parte do projeto Pistas do Desmatamento, que investiga os impactos ambientais relacionados a pistas de pouso clandestinas na Amazônia e que conta com o apoio da Rainforest Investigations Network, do Pulitzer Center. Saiba mais.
‘Falha processual’
Para operar em nível industrial, a Gana Gold precisava de uma licença emitida pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará, a Semas. Além disso, havia uma exigência adicional: como a mina fica na Área de Proteção Ambiental do Tapajós, a secretaria teria de consultar o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, o ICMBio, órgão responsável por gerenciar e fiscalizar as unidades de conservação do Brasil.
Mas a Gana Gold passou quase dois anos operando e lucrando sem licença da Semas ou anuência do ICMBio. E, justamente no dia em que a PF e o Ibama bateram à porta da mineradora, a coordenadoria regional de Itaituba da Semas emitiu uma licença ambiental para a empresa. O documento foi registrado às 15h33 da tarde, menos de duas horas após o embargo do Ibama. É a essa licença que Eduardo Bim se refere no áudio que enviou para o superintendente Rodrigues.
Em 16 de setembro, o Intercept publicou uma reportagem contando todos os detalhes do licenciamento ambiental irregular da Gana Gold. A licença foi suspensa quatro dias após a reportagem por “falha processual”.
Em 22 de setembro, a licença da Semas já estava cancelada. Com isso, a Gana Gold voltava à situação de não ter qualquer permissão ambiental válida. Mesmo assim, o presidente do Ibama entrou novamente em contato com Washington Rodrigues, primeiro em ligação pelo aplicativo de mensagens, às 16h26 – Rodrigues não atendeu. Então, Bim encaminhou uma nova petição do advogado da Gana Gold e questionou, com pontuação indicando pressa: “Alguma notícia daquela análise de desembargo!?”.
Rodrigues respondeu que não havia novidades. Às 22h42, o presidente do Ibama continuou enviando mensagens e demonstrou não ter qualquer noção sobre o tipo de permissão que a Gana Gold possui na Agência Nacional de Mineração, a ANM: “Vi a guia de autorização deles na ANM. É 50.000 toneladas de ouro mesmo. Nego está viajando em dizer que só pode ser 96kg ano”, escreveu Bim, possivelmente se referindo à reportagem do Intercept.
No texto, comprovei com documentação oficial que a autorização dada pela ANM permite que a mineradora extraia 50 mil toneladas de solo para encontrar ouro – e não 50 mil toneladas de ouro. Essa estimativa de produção de 96 kg ao ano leva em consideração o teor de ouro da região da mina — uma relação entre a quantidade do metal encontrada para cada tonelada de material do solo.
A suposição de Eduardo Bim de que o limite anual de extração da Gana Gold seria de 50 mil toneladas de ouro puro fica ainda mais absurda se considerarmos que este é o total de todas as reservas de ouro existentes no mundo, segundo o relatório de 2020 da USGS, instituição de geologia dos EUA que pesquisa sobre minérios no mundo.
‘Metade do Planalto está no meu pé’
A mesma fonte anônima que me entregou os áudios e chats disse que o ex-superintendente declarou à PF que Bim mencionou em conversa telefônica que “um deputado federal amigo” intercedeu a favor da Gana Gold.
A conversa telefônica não foi gravada, mas, ao depor na PF, Rodrigues também entregou o seu histórico de chamadas aos delegados. É certo que na manhã do dia 14, às 11h, Bim teve uma audiência com o deputado federal paraense Joaquim Passarinho, do PSD, um político próximo de garimpeiros da região de Itaituba. Em nota, a assessoria do parlamentar alegou que o encontro tratou de exportações de madeira no Pará e que o deputado nunca conversou com o Ibama sobre questões da Gana Gold.
No mesmo dia, Bim começou a enviar mensagens de texto e áudio para Rodrigues cobrando rapidez no processo da Gana Gold.
Em setembro de 2019, época em que a prefeitura de Itaituba deu a licença ambiental irregular para a Gana Gold, Passarinho ciceroneou – cheio de sorrisos – o consultor da mineradora Guilherme Aggens e o secretário municipal de Meio Ambiente de Itaituba, Bruno Rolim, em gabinetes no Planalto, como o do então ministro da Casa Civil, deputado Onyx Lorenzoni.
Rodrigues relatou uma nova investida por ligação telefônica de Eduardo Bim em favor da Gana Gold dias depois. Desta vez, o presidente do Ibama teria dito que “metade do Planalto está no meu pé, eu preciso dar uma resposta”. A resposta encaminhada pela assessoria do Ibama revela um novo personagem nesta história: o deputado federal paulista Marcio Tadeu Anhaia de Lemos, um policial militar que se apresenta como Coronel Tadeu, do partido União Brasil. Bolsonarista de primeira ordem e sem qualquer histórico parlamentar de defesa da mineração, ele fez uma solicitação por telefone à presidência do Ibama sobre o caso Gana Gold.
“Houve uma solicitação telefônica por parte do Deputado Federal Cel. Tadeu para que se analisasse o processo em questão. A presidência do Ibama pediu celeridade à Superintendência Estadual, tendo em vista a existência de licença ambiental, da SEMA/PA, o que poderia gerar um conflito federativo entre os órgãos do Sistema Nacional de Meio Ambiente – Sisnama”, informa a nota do Ibama.
Apesar de dar uma versão sobre o caso, a assessoria de imprensa do Ibama não enviou respostas às perguntas que apresentei a Eduardo Bim e ao chefe de gabinete Fernando Leme.
Questionamos também o gabinete do deputado Coronel Tadeu, mas não tivemos resposta até a publicação desta reportagem.
Gana Gold voltou a operar
Além da pressão em gabinetes de Brasília, os advogados da Gana Gold buscaram a Justiça Federal para tentar reverter os embargos aplicados pelo Ibama e pelo ICMBio. O órgão responsável pela gestão de unidades de conservação embargou a mina em 23 de setembro, uma semana após o Intercept revelar as falhas grosseiras no licenciamento da mineradora. Os dois órgãos ambientais federais já emitiram mais de R$ 15 milhões em multas contra a Gana Gold por causa da mina irregular de Itaituba.
Nada disso impediu a empresa de ter vitórias judiciais sobre os dois embargos no mês seguinte. Em outubro, a juíza Lorena Sousa Costa citou em sua decisão liminar a licença de operação 12.999/2021, concedida pela Semas e suspensa por falha processual no dia 21 do mesmo mês. Ou seja, quando a juíza suspendeu o embargo da Gana Gold, a licença que ela usou como justificativa para a decisão estava inválida há 17 dias.
Para a volta da operação, porém, ainda faltava derrubar um segundo embargo, o do ICMBio. A Gana Gold nem precisou esperar muito. Em 28 de outubro, o juiz federal Domingos Daniel Moutinho decidiu liminarmente que a empresa poderia operar sem licença por um prazo de seis meses.
Assim, a Gana Gold estaria livre para voltar a minerar. Porém, em 6 de dezembro, após recurso do Ibama, o desembargador federal Antônio de Souza Prudente, do TRF1, reativou um dos embargos.
Ainda assim, entre dezembro e fevereiro, a empresa já informou a produção de quase 100 kg de ouro puro na mina, mais de R$ 30 milhões na cotação atual do metal. Imagens de satélite de janeiro deste ano mostram que a empresa está em atividade, com escavadeiras e caminhões ao longo da mina. Além disso, as imagens revelam que a Gana Gold asfaltou em outubro a pista de pouso construída sem permissão da Agência Nacional de Aviação. A estrutura foi utilizada de forma clandestina por quase dois anos, até ser registrada na agência em janeiro deste ano.
Questionamos a assessoria do Ibama sobre a operação da Gana Gold, e a única resposta que tivemos foi uma citação ao agravo de instrumento favorável ao órgão.
Entre outubro e novembro, fiscais da Semas vistoriaram a Gana Gold e constataram diversas irregularidades, que resultaram em 17 autos de infração contra a empresa. No entanto, nenhum embargo foi aplicado. O órgão estadual não respondeu nosso questionamento sobre o motivo de a empresa continuar extraindo ouro sem ter licenciamento ambiental.
Segundo o advogado da empresa, Artur Mendonça Vargas Junior, a Gana Gold não foi notificada da suspensão do embargo dado pela Semas ou da decisão do TRF1. Por “não estar ciente dessas ações”, diz Vargas Junior, a empresa segue operando. Ele ainda afirma que no local havia um “garimpo ilegal histórico” e que a Gana Gold “equacionou esse problema”. Para o advogado, “a empresa faz o serviço social de tirar o garimpeiro da ilegalidade”.
Na conversa por telefone, Vargas Junior afirmou em diversos momentos que a Gana Gold só buscou licenciamento no município de Itaituba após orientação da Semas. Perguntei se ele teria um documento que pudesse comprovar a orientação. O que ouvi como resposta foi que “quando vai discutir algo tecnicamente, não fica buscando ata de tudo”.
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